image/svg+xml1Revista TOMOSão Cristóvão, v. 42, e18801, 2023Data de Publicação: Junho/2023DossiêConservadorismo, discursos antigênero e disputas narrativas em torno das artes contemporâneas no Brasil1Danielle Parfentief de Noronha2Maria Cristina Simões Viviani3Resumo: Nos últimos anos, houve um crescimento importante na propagação de discursos antigênero nos mais dis-tintos campos sociais, com especial atenção aos campos da política, da educação e das artes, constituindo um fenômeno de dimensões globais. No Brasil, tais discursos, que podem ser compreendidos como um dos pilares que sustentam a argumentação do conservadorismo contemporâneo, passaram a protagonizar diversas disputas narrativas em torno das políticas de gênero e de sexualidade. Nesse sentido, este artigo busca investigar o papel dos discursos antigênero na articulação do conservadorismo no Brasil e das dispu-tas narrativas produzidas em torno do tema no sistema das artes. Para isso, sob perspectivas decoloniais e feministas, em diálogo com as ciências sociais, apresentamos na primeira parte do texto uma revisão biblio-gráfica para, na sequência, articulá-la a eventos artísticos relacionados ao gênero e a pautas LGBTQIAPN+ que foram alvo de investidas conservadoras em 2017, véspera de ano eleitoral.Palavras-chave: Antigênero. Arte. Conservadorismo. Discursos. Disputas políticas. IntroduçãoNos últimos anos, temos acompanhado o crescimento de discursos e pautas antigênero, movimen-to que pode ser percebido em diversos locais do globo (Carvalho, 2019). Segundo Sonia Corrêa e Richard Parker (2021), os efeitos desse tipo de discurso, para além de promoverem leis, políticas e narrativas retrógradas e distorcidas em relação ao gênero e à sexualidade, têm total relação com a erosão democrática e guinada à direita que assolam atualmente a América Latina e diversas outras partes do planeta. Dialogando com Wendy Brown (2006), que pensa “as dinâmicas políticas nos Estados Unidos e interpreta a desdemocratização como um efeito combinado do neoliberalismo e da repolitização do campo religioso” (Corrêa; Parker, 2021, p. 6, tradução nossa), a autora e o au-tor explicam que esses discursos se alimentam e são alimentados pelos processos desdemocrati-1Trabalho desenvolvido a partir de comunicação apresentada no 45° Encontro Anual da ANPOCS em 2021.2Universidade Federal Fluminense. Programa de Pós-graduação em Cinema e Audiovisual. Niterói, Rio de Janeiro, Brasil. Bolsista de pós-doutorado da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ). E-mail: danielledeno-ronha@gmail.com. https://orcid.org/0000-0002-9167-9674 3Universidade Federal do Pará. Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. Programa de Pós-Graduação em Antropologia. Belém, Pará, Brasil. E-mail: maria.viviani@ifch.ufpa.br. https://orcid.org/0000-0001-8009-8199. Dossiê
image/svg+xml2Danielle Parfentief de Noronha; Maria Cristina Simões Vivianizantes em curso na América Latina “que, ao contrário de mudanças autoritárias de regime vividas no passado, ameaçam as democracias por dentro, sem recorrer a golpes de Estado clássicos e sem necessariamente implicar na suspensão de procedimentos democráticos formais” (Corrêa; Parker, 2021, p. 15, tradução nossa). Ao olharmos especificamente para o Brasil e o contexto latino-americano, podemos notar algu-mas particularidades que são relacionadas aos modos como o sistema-mundo moderno/colonial (Wallerstein; Quijano, 1992) é organizado e aos impactos da colonialidade4na região. Nesse sen-tido, diversas pesquisadoras e pesquisadores de variadas disciplinas – como as ciências sociais, a comunicação e o direito – têm se debruçado para buscar compreender o fenômeno e também sua relação com o avanço do conservadorismo e sua influência na difusão de valores antidemocráticos na América Latina, questões que apontam para a transdisciplinaridade que envolve a temática. Neste artigo, nossa principal atenção está na presença desses discursos no sistema das artes e as estratégias utilizadas para engajar apoio e difundir a narrativa. Partimos do pressuposto de que o conservadorismo não é um movimento homogêneo e evoca o vínculo entre diversas mobilizações reacionárias e setores sociopolíticos “que defendem a per-manência de valores ou ordenamentos considerados tradicionais ou estruturantes de uma certa ordem social permanente ou mesmo fixa” (Serrano, 2021, p. 22). Essa perspectiva se mostrou como uma das principais bandeiras na campanha de Jair Bolsonaro nas eleições de 2018, em que pautas moralistas acerca do gênero e da sexualidade5, principalmente relacionadas às mulheres e aos grupos LGBTQIAPN+, foram defendidas em nome dos “costumes”, da “tradicional família cristã brasileira” (o que pressupõe a manutenção das relações de poder patriarcais e sexistas) e contra uma suposta – e inexistente – “ideologia de gênero”. Em meio a esse contexto, as artes se tornaram alvo de uma perspectiva política que se coloca como moralizada e moralizante. Manifestações artísticas passaram a ser atacadas de diferentes formas, por meio de protestos tanto virtuais como presenciais. Obras e exposições foram descon-textualizadas no intuito de causar revolta e atrair atenção a pautas e a candidatos conservadores, ampliando a disputa narrativa em torno do tema. 4Nas palavras de Aníbal Quijano (2007, p. 93, tradução nossa): “A colonialidade é um dos elementos constitutivos e especí-ficos do padrão mundial do poder capitalista. Baseia-se na imposição de uma classificação racial/étnica da população do mundo como a pedra angular deste padrão de poder”, construída e difundida mundialmente a partir do “descobrimento” e criação da América. Sua proposta parte do pressuposto de que, com a conquista da América, foi incluída a questão feno-típica nas classificações sociais utilizadas como elementos discriminatórios nas relações de poder. Nesse sentido, para o autor, as relações de poder constituídas a partir da “criação” da América e da implementação do capitalismo histórico são baseadas no domínio da outra e do outro, o que possibilitou a criação desse sistema mundial, caracterizado pela “colonia-lidade do poder”. O padrão colonial é o centro da colonialidade do poder, além do dispositivo que constitui e (re)produz a “diferença colonial” (Mignolo, 2013). Além disso, María Lugones (2008) sugere incluir o gênero como outro marcador fun-damental na construção da lógica moderna/colonial, pois a colonialidade do gênero foi responsável por reduzir as pessoas colonizadas a seres primitivos, classificadas enquanto machos ou fêmeas, e trouxe as lógicas patriarcais e diferenciações relacionadas ao gênero que já eram operadas nas sociedades europeias, que se fundiram com os sistemas e classificações que já existiam na região.5Para conceituar gênero e sexualidade, partimos das premissas de que o significado dos conceitos não é universal e de que se tratam de construções sociais e políticas. Entendemos como conceitos em disputa, em que a versão hegemônica busca impor um significado baseado na crença política ocidental de que há uma base universal para o feminino (Butler, 2007; Lugones, 2019), bem como para o masculino, que é construída a partir de uma percepção que: 1) ignora as parti-cularidades das culturas e mesmo a existência de organizações sociais que não levam em conta o gênero; e 2) promove a homogeneização da compreensão do que é feminino e masculino no imaginário e na vida prática das pessoas, o que inclui padrões de influência, a construção de identidades, a forma de compreender o corpo e as dominações exercidas pelo patriarcado.
image/svg+xml3Conservadorismo, discursos antigênero e disputas narrativas em torno das artes contemporâneas no BrasilApenas entre 2019 e 2021 foram registrados no país cerca de 211 casos de censura artística e ata-ques à cultura (Valente, 2022)6. Porém, esse número ainda pode ser maior, já que a censura pode se dar de diferentes formas, que vão desde proibições, falta de apoio financeiro e logístico por parte do Estado e das iniciativas privadas, passando por curadorias e acessos com perfis homo-gêneos de raça, classe e gênero, até ameaças e violências às e aos artistas. Dessa forma, apesar de facilmente lembramos da censura à arte instaurada durante a ditadura civil-militar (1964-1985) no Brasil, essa prática não está restrita apenas a esse período de nossa história e no governo do ex--presidente Jair Bolsonaro esteve muito presente na antipolítica cultural7(de Noronha; Ezequiel, 2022) que esteve instaurada nos últimos quatro anos. Com o intuito de contribuir para essa discussão, neste trabalho, iremos investigar o papel dos discursos antigênero no desenvolvimento e na manutenção do conservadorismo no Brasil e o papel das disputas narrativas produzidas em torno do sistema das artes8. Para isso, sob pers-pectivas feministas e decoloniais, que dialogam com as ciências sociais, além desta introdução e das considerações finais, o texto está dividido em duas partes. Na primeira apresentamos uma revisão bibliográfica de estudos recentes, principalmente de autoras latino-americanas, sobre a relação entre conservadorismo e discursos antigênero na América Latina na atualidade. Na se-quência, iremos articular essa bibliografia com alguns eventos artísticos relacionados ao gênero e à sexualidade que foram alvo de investidas conservadoras em 2017, véspera de ano eleitoral.Destacamos eventos que tiveram episódios com grande repercussão e que foram pautados por questionamentos sobre gênero e sexualidade feitos principalmente por grupos conservadores fundamentalistas, com grande protagonismo das mídias digitais9(com seus novos modelos cor-porativos e respaldo das mídias tradicionais). Por meio de três exemplos, com características e formatos distintos, buscamos refletir sobre o atual contexto de “guerra cultural10” (Rocha, 2021) e ascensão do conservadorismo em relação a eventos de arte que têm sido alvos como parte de um complexo campo de disputas narrativas e políticas. Sem a intenção de analisar artisticamente os eventos, tampouco definir a produção artística de forma homogênea, o primeiro caso apresentado é a exposição “Queermuseu: Cartografias da diferença na arte brasileira”, que aconteceu no Santander Cultural de Porto Alegre e ficou conhecida por ter sido encerrada antes do previsto por pressão de grupos conservadores, como o Movimento Brasil Livre (MBL), um dos grandes articuladores da ofensiva contra o evento. Depois, abordaremos a performance “La Bête”, do artista Wagner Schwartz, realizada no 35º Panorama de Arte Brasileira no Museu de Arte 6É possível acompanhar alguns casos de censura a produções artísticas no Observatório de Censura à Arte: http://censuranaarte.nonada.com.br7Como exemplo, ver a notícia “Produções LGBT enfrentam a censura do governo de Jair Bolsonaro”. Disponível em: https://istoe.com.br/producoes-lgbt-enfrentam-a-censura-do-governo-de-jair-bolsonaro/.8O “sistema das artes” compõe museus, galerias e demais espaços institucionalizados voltados à arte que reforçam e dão legitimidade ao próprio sistema.9Como exemplo sobre esse tema, ver Anna Paula Vencato e Regina Stela Vieira (2021).10Em sua análise sobre as especificidades da guerra cultural bolsonarista, João Cezar Rocha (2021, p. 214) explica que a guerra cultural implica no desejo de eliminação da diferença, em que a “intolerância é sua marca d’água; o ódio, o núcleo duro de sua retórica”. Além disso, o autor também pontua que a guerra cultural sempre requer a disputa de valores, com base na alegada superioridade dos princípios de um determinado grupo, compreendidos de forma binária e maniqueísta, e que, apesar de não ser um fenômeno novo, carrega na atualidade um grande protagonismo das mídias digitais. Sobre isso, o autor chama atenção para uma questão importante para a discussão que pretendemos neste artigo, que no Brasil há uma fissura geracional, “nem sempre observada com atenção”, que originou um fenômeno novo: “a emergência de uma expressiva juventude de direita, ágil no uso das redes sociais e hábil na disputa das ruas – território tradicionalmente ocupado pela esquerda” (Rocha, 2021, p. 20). Para um reflexão sobre “o ódio como política”, ver Esther Solano Gallego (2018).
image/svg+xml4Danielle Parfentief de Noronha; Maria Cristina Simões VivianiModerna de São Paulo apenas duas semanas após o encerramento do “Queermuseu”. A performance também foi alvo dos mesmos grupos que se organizaram novamente para denunciar o que eles ale-gavam ser “mais um caso de pedofilia” na arte contemporânea. Por fim, apresentamos a polêmica em torno da votação popular do Prêmio PIPA em que a artista Musa Michelle Mattiuzzi, favorita ao prêmio, recebeu ataques racistas e perdeu para um artista branco em uma virada motivada por grupos conser-vadores que, ao desaprovarem seu trabalho, se organizaram a fim de impedir que ganhasse a votação.2. Conservadorismo e discursos antigênero na América LatinaComo explica Luciana Galzerano (2021), há um certo consenso entre diversas autoras e diversos autores sobre a ampliação da “disseminação da recente ofensiva antigênero como uma reação de setores conservadores e religiosos às iniciativas feministas que tiveram êxito na inserção da categoria gênero nas conferências sociais da Organização das Nações Unidas a partir da década de 1990”11. Essa reação chega também à América Latina – numa complexa manutenção das colo-nialidades do poder e do gênero – e influencia “as disputas relacionadas às temáticas de gênero e sexualidade nas políticas sociais” (Galzerano, 2021, p. 92) a partir do desenvolvimento da ideia de “ideologia de gênero”, seguida do seu necessário combate. De acordo com a autora, esses setores, ao difundirem o conceito de “ideologia de gênero”, estão desconsiderando (de forma deliberada) o amplo e complexo campo de estudos sobre gênero a partir da tentativa de ideologizar a temática, dificultando que ela seja debatida e enfrentada de forma ampla pela ciência e pela sociedade como um todo: “Ao disseminarem o combate a uma su-posta ideologia, esses setores defendem sua própria posição ideológica: antigênero e anticiência” (Galzerano, 2021, p. 89), além de, devemos acrescentar, antidemocrática12.Entretanto, em concordância com Priscila de Carvalho (2019, p. 3), ao olharmos para a atualidade, podemos apontar que o gênero ganhou nova relevância nos processos políticos, em que alcançou “patamar inédito de exposição e difusão em debates públicos”, como também “tem se tornado ele-mento estruturador de discursos conservadores contemporâneos”. Em suas palavras, os debates relacionados ao gênero têm propiciado a construção de “um discurso conservador que encontra expressão eleitoral em uma (renovada) direita na medida em que contribuiu para canalizar um “conservadorismo difuso” na sociedade, oferecendo uma linguagem comum de atores com esse perfil em diversos países” (de Carvalho, 2021, p. 3-4). O livro “Políticas Antigênero na América Latina”, organizado por Sonia Côrrea e Isabela Kalil (2021), traz um panorama que demonstra a intensa relação entre neoliberalismo e conservado-rismo, que tiveram seus discursos e práticas intensificados, em parte, como uma resposta ao ciclo 11Segundo Galzerano (2021, p. 89), em especial, “duas conferências chamaram a atenção da Igreja Católica: uma sobre po-pulação e desenvolvimento, realizada no Cairo, em 1994, e outra sobre as mulheres, em Pequim, em 1995”. Nesse artigo a autora apresenta uma cronologia da construção doutrinária contrária ao gênero e à sexualidade.12Como pondera Flavia Freidenberg em entrevista: “Os discursos antigênero são discursos antidemocráticos. Por um lado, as lutas pelos direitos das mulheres são avanços democratizantes que vão além de uma ideologia ou do feminismo e têm a ver com os direitos humanos. Por outro lado, deve-se destacar que os acordos políticos sobre questões de participação e direitos político-eleitorais das mulheres alcançados em alguns países têm sido muito importantes. Teria sido impossível promover a presença de mulheres em instituições sem as leis e sem as coalizões de gênero que exigissem o cumprimento das leis. Mas quando outras questões são colocadas em pauta, quando se trata de outras agendas, quando se fala em direi-tos reprodutivos ou quando são questões relacionadas aos direitos da diversidade, os acordos começam a se liquefazer, as ações se dividem e se são questionadas” (Camusso, 2022, p. 252, tradução nossa).
image/svg+xml5Conservadorismo, discursos antigênero e disputas narrativas em torno das artes contemporâneas no Brasilprogressista vivenciado na América Latina principalmente entre os anos 2000 e 2010, que, entre outras coisas, promoveu discussões e reformas educacionais e legais em torno das temáticas de gênero e da sexualidade (Miskolci; Campana, 2017). Os estudos apresentados no livro – que traz alguns resultados de pesquisas desenvolvidas no âm-bito do Observatório de Sexualidade e Política13– mostram que foi principalmente a partir de 2013 – com ampliação em 2016 devido aos contextos eleitorais – que o combate à “ideologia de gênero” se tornou proeminente na região, apesar de, como vimos acima, já ser difundida por gru-pos católicos em alguns países latino-americanos desde 1995, como uma resposta também ao desenvolvimento e à ampliação do conceito de gênero, das teorias, das práticas e dos corpos queer e de outras compreensões vinculadas a sexualidades, resultantes dos (ainda pequenos) avanços das políticas de gênero. Segundo Sonia Corrêa e Richard Parker (2021, p. 3):A fórmula “ideologia de gênero” foi inventada no curso dessa extensa lucubração. Não se trata de um conceito, mas sim de um dispositivo que, intrigantemente, recorre à concepção marxista de ideologia para acusar a teoria feminista do gênero de falsificação. Ou seja, os inventores desse truque afirmam que o conceito de gênero é um engodo porque clama pela igualdade entre homens e mulheres para borrar a diferença sexual “natural”, concebida como dimensão ontológica e imutável do humano. O dispositivo também faz supor que, as teóricas e ativistas do gênero - e quem mais recorre ao conceito - simplesmente propagam ideologia, enquanto quem o critica estaria totalmente isento de vieses ideológicos.Para a autora e o autor (2021, p. 4), os discursos antigênero possuem uma “linguagem popular, versátil e do senso comum”, que ganha força por meio da disseminação de fake news e das possibi-lidades oferecidas nas redes sociais. O referido livro traz estudos de casos de nove países14latino--americanos que, apesar de possuírem particularidades próprias de seus contextos, apresentam aspectos comuns em relação à ascensão do conservadorismo e ao uso de narrativas em torno do gênero e da sexualidade, como 1) “a sobreposição entre uma antiga infraestrutura política de cunho católico especialmente voltada para se opor ao aborto e um conjunto muito mais heterogê-neo de atores religiosos e seculares que constituem ou orbitam formações antigênero mais recen-tes” e 2) o “contorno ‘ecumênico’ das políticas antigênero que, em todos os lugares, se organizam originalmente a partir de núcleo cristão composto por forças e instituições ultracatólicas e evan-gélicas fundamentalistas15”. Esse núcleo conta com apoio e participação de políticos conservado-res, profissionais e grandes empresários – ultraneoliberais, especialistas e ativistas –, além de, “em menor prevalência, grupos abertamente nazistas e fascistas”. A autora e o autor também apontam que especificamente no Brasil e no Uruguai registra-se a adesão de militares16e no Brasil também da direita judaica ligada ao evangelismo conservador” (Corrêa; Parker, 2021, p. 5, tradução nossa).No caso brasileiro especificamente, os discursos antigênero começaram a ser pauta de grupos conservadores desde, pelo menos, os anos 2000, em especial vinculados à narrativa antiaborto e a movimentos católicos, como demonstramos, “numa tentativa de retorno à naturalização e biologi-zação do gênero” (Galzerano, 2021, p. 63). Entretanto, foi a partir de 2013, com um grande prota-13Disponível em: https://sxpolitics.org/ptbr14Argentina, Brasil, Chile, Colômbia, Costa Rica, Equador, México, Paraguai e Uruguai.15Sobre esse tema, ver Gabriela Ramírez (2021).16Apesar de não focarmos nessa questão, gostaríamos de chamar atenção para este ponto: da participação e do papel dos mi-litares no atual avanço conservador, que nos parece fundamental para compreender a dinâmica específica desse fenômeno no Brasil. Sobre isso, por exemplo, é importante mencionar que a presença de militares ocupando cargos civis subiu 70% no governo Bolsonaro, que também é ex-militar (Schmidt, 2022).
image/svg+xml6Danielle Parfentief de Noronha; Maria Cristina Simões Vivianigonismo das redes digitais – e esse é um ponto que ainda merece mais atenção e pesquisas –, que grupos evangélicos fundamentalistas também se engajaram na mobilização política antigênero, questão que se tornou peça-chave no conjunto político que impulsionou os ataques aos discursos e às práticas relacionadas ao gênero no processo eleitoral de 2018 e que levou à presidência o candidato de extrema-direita Jair Bolsonaro (Corrêa; Kalil, 2021, p. 70). Corrêa e Kalil (2021) realizam um extenso estudo sobre os contextos que impulsionaram o desen-volvimento dos discursos antigênero no país. Segundo os dados levantados, o termo “ideologia de gênero”, com suas múltiplas associações, foi introduzido no Brasil a partir de 2007, por parte de atores e instituições católicas, se manteve com baixa intensidade até 2013, quando a propagação se expande vertiginosamente, em que o tema também começa a ser pauta de grupos evangélicos. É importante notar que a ampliação da divulgação dessa terminologia coincide com as manifesta-ções de direita a partir de junho daquele ano, e se amplia em 2017 e 2018, devido à proximidade com a eleição. Conjuntamente passa a ganhar espaço tanto na mídia comercial, como nos jornais Folha de S. Paulo e O Globo, como nas redes digitais (Corrêa; Kalil, 2021). Segunda a perspectiva desenvolvida:Debates sobre direitos LGBTT, HIV-AIDS, casamento igualitário, família, direito ao abor-to e gênero e sexualidade na educação que ocorreram entre 2002 e 2018 constituem um pano de fundo de tensões precursoras, ou laterais, que contribuem para localizar melhor o desembarque e a disseminação cada vez mais intensa das cruzadas antigênero no Brasil desde 2013 (Corrêa; Kalil, 2021, p. 68, tradução nossa).Para Flávia Biroli, Maria das Dores Machado e Juan Marco Vaggione (2020), a reação conservadora na América Latina na atualidade está relacionada justamente com uma temporalidade marcada por esses avanços dos movimentos feministas e LGBTQIAPN+ e expressa coalizações políticas de grupos cristãos com setores não religiosos de direita, apontando para mudanças na correlação de forças tanto no campo religioso (Biroli et al., 2020) como também no político17. Com a intenção de compre-ender as novas configurações do conservadorismo religioso e os conflitos em torno das agendas de igualdade de gênero e de sexualidade na América Latina, as autoras e o autor propõem o uso do con-ceito “neoconservadorismo” como uma forma de identificar as suas diferentes dimensões no con-temporâneo. Enfatiza-se, em especial, seu caráter transnacional – que entendemos como parte da colonialidade – e a possibilidade de “jogar luz sobre as alianças e afinidades entre diferentes setores”.A leitura apresentada destaca algumas características fundamentais desse “neoconservadorismo”. A primeira delas, também apontada por outras pesquisadoras e outros pesquisadores, é a conver-gência entre católicos e evangélicos, num contexto de declínio do catolicismo e de expansão do 17Como explica Galzerano (2021, p. 93): “Machado (2006) destaca que o fundamentalismo religioso se tornou uma força política no Brasil a partir da década de 1990, sobretudo com o investimento das igrejas neopentecostais para eleger seus pastores. O fundamentalismo advém da percepção de que há uma única verdade, divina e inconteste, que anula qualquer possibilidade de debates (...). O fortalecimento político dos pentecostais na Câmara de Deputados com a indicação do de-putado e pastor Marco Feliciano (PSC-SP) para a presidência da Comissão de Direitos Humanos e Minorias, em 2013 e, após, com a eleição de Eduardo Cunha (PMDB) para a presidência da casa, em 2015, também favoreceu os grupos católicos comprometidos com a luta contra a ideologia de gênero, que passaram a ser convidados a expressar suas ideias em diversas situações (Machado, 2018). Ambos os segmentos (católicos e pentecostais) têm se aliado a diversas forças conservadoras no Congresso, com destaque para os latifundiários e os defensores dos armamentos. A ação conjunta desses setores costu-ma ser designada pela mídia como Bancada BBB, que significa boi, bala e Bíblia”. Nesse ponto, também vale ressaltar que a eleição de Bolsonaro ampliou ainda mais a presença de políticos identificados como do campo religioso no governo.
image/svg+xml7Conservadorismo, discursos antigênero e disputas narrativas em torno das artes contemporâneas no Brasilpentecostalismo na América Latina, em que “novas alianças entre católicos e evangélicos têm sido firmadas para o combate aos direitos reprodutivos e sexuais”. Nesse sentido, “eles convergem no interesse mais amplo de renaturalização da moral religiosa como ética pública (e a batalha contra o gênero serve bem a esse interesse), mas há divergências que podem se manifestar em disputas concretas por espaços e recursos” (Biroli et al., 2020, p. 10). Em segundo lugar, essas manifesta-ções emergem em contextos democráticos, ao mesmo tempo que são parte fundamental para os processos de erosão da democracia.Também destacam a cada vez mais importante atuação do campo jurídico nas relações atuais das religiões com a política na região a partir do conceito de “juridificação”, que diz respeito ao uso do direito por atores seculares e religiosos na defesa de “princípios morais” e dos “valores familiares”, que consideram violados pelas demandas dos movimentos de mulheres e LGBTQIAPN+. Nesse ponto, como já destacamos, chamam atenção novamente as alianças formadas por grupos dos diferentes campos, como políticos, religiosos e empresariais. Nesse sentido, assim como na leitura de Corrêa e Kalil (2021), também é enfatizada a aproximação na atualidade do conservadorismo cristão e do individualismo liberal. Para as autoras e o autor, “Na América Latina, é na análise de cristãos conservadores, particularmente evangélicos, que alguns autores têm explorado as afi-nidades eletivas com políticas neoliberais na forma da ‘teologia da prosperidade’, de uma ênfase ampliada no mérito individual e no ‘empreendedorismo’” (Biroli et al., 2020, p. 25). Além disso, em diálogo com as autoras e o autor, é importante salientar que o “recurso à “ideolo-gia de gênero” como estratégia política tem sido uma forma de incidir sobre processos políticos mesmo quando o que está em questão não são diretrizes públicas específicas” (Biroli et al., 2020, p. 23). Sobre isso, também é importante salientar queas disputas envolvendo as questões de gênero e de sexualidade possuem base material: o trabalho e sua divisão social. As relações sociais ora destacadas têm se materializado em políticas sociais que tendem a reproduzir e legitimar essa correlação de forças que favorece os interesses de grupos religiosos e conservadores e que perpetua a dominação, a opres-são e a exploração. A biologização do gênero que naturaliza e atribui vontade divina aos supostos papéis sociais a serem desenvolvidos por homens e mulheres contribui para a intensificação e legitimação da divisão sexual do trabalho que confina as mulheres à esfera reprodutiva (Galzerano, 2021, p. 91-92).Como bem demonstrou Silvia Federici (2017), o disciplinamento dos corpos, a divisão sexual do trabalho e a defesa da família nuclear (e sua importância para a lógica da propriedade) foram e são essenciais para o desenvolvimento e manutenção do capitalismo e da divisão do trabalho do sistema mundo moderno/colonial (Wallerstein; Quijano, 1992). Ao olharmos para esse processo a partir da América Latina, desde uma perspectiva decolonial, podemos compreender que essa disputa em torno do gênero e da sexualidade é parte da tensão “oprimir – resistir”, problemati-zada por María Lugones (2019), existente na região desde a colonização que se inicia em 1492, que impôs um modelo patriarcal excludente. Ainda, é preciso considerar todas as especificidades decorrentes da intersecção entre marcadores sociais da diferença como raça, classe e território e os modos como qualquer avanço no campo dos direitos das “minorias sociais” é respondido por aqueles que não estão interessados em mudar as estruturas que mantêm as bases da opressão e das desigualdades sociais. Por sua vez, esses grupos mais uma vez resistem18.18Sobre resistências aos discursos e às práticas antigênero, ver Flávia Melo (2020).
image/svg+xml8Danielle Parfentief de Noronha; Maria Cristina Simões VivianiEm todos os campos da vida social essa disputa e tensão se fazem presentes. Vemos esse debate, por exemplo, e em especial, no campo da educação19, na mídia (tradicional e digital), como tam-bém nas artes, isto é, podemos identificar um protagonismo daqueles espaços considerados im-portantes para a construção de reflexões e narrativas em torno de temas sociais. Sabemos que as artes são heterogêneas e um espaço de múltiplas interpretações, como já bem demonstraram os estudos relacionados à semiótica, por exemplo. Da mesma forma, também são espaços políticos, que podem tanto servir como resistência quanto podem favorecer a manutenção do status quo, que dizem muito sobre questões individuais, mas sobretudo coletivas. Nesse sentido, considera-mos como um espaço de tensão, que está em constante disputa. Vale ressaltar, mais uma vez, que nos últimos quatro anos toda a cultura (de Noronha; Ezequiel, 2022) foi alvo constante de ataques do governo Bolsonaro, o que pode colocar as artes como um campo privilegiado para (re)produzir essas disputas discursivas, como demonstraremos a seguir.2. “Ideologia de gênero” nas artes e intervenções conservadorasAs artes possibilitam, por meio da linguagem, da estética, do simbólico e da memória, a constru-ção de narrativas que dialogam com o contexto das quais fazem parte e provocam reflexões que atingem as pessoas de maneiras distintas, a depender das trajetórias e vivências de cada uma. Nesse sentido, se tornam um espaço privilegiado para trazer debates em torno de temas ainda controversos na sociedade, como é o caso do gênero e da sexualidade. Neste tópico, como parte do processo de “oprimir – resistir” (Lugones, 2019), vamos apresentar três eventos que foram alvo de investidas conservadoras no segundo semestre de 2017, véspera de ano eleitoral, numa tensa disputa entre a defesa “dos valores cristãos e da família” contra a falácia da “ideologia de gênero” e suas derivações. Queremos demonstrar que essas disputas em torno das questões de gênero e de sexualidade estão completamente relacionadas com as disputas no campo político e com o projeto de manutenção das colonialidade do poder e do gênero. Como pondera Rafael Zen (2018, p. 132):A construção da experiência estética, ética e política mediante o contato com as artes passa a ser alvo de destruição em contextos autoritários. Admitindo que o caráter autoritário desenvolve-se sempre que se abre um espaço coletivo de imposição, afirma-se que pessoas e instituições podem fomentar modos antidemocráticos de expressão por promover o apa-gamento e silenciamento do outro. Nesse contexto, por ser inerentemente uma ferramenta discursiva que não se contém diante do autoritarismo, a arte torna-se insuportável porque diz aquilo que se quer negar ou esconder.O primeiro caso é o “Queermuseu: Cartografias da diferença na arte brasileira”, que aconteceu no Santander Cultural de Porto Alegre. A exposição, de curadoria de Galdêncio Fidélix, foi um dos exemplos da atuação da esfera privada/político/religiosa no campo artístico cultural, que denun-ciou fortemente o evento como divulgador de obras contendo alusões à pedofilia e à zoofilia, além de desrespeito aos símbolos religiosos judaico-cristãos.19Como exemplo, ver o estudo de Cláudia Vianna e Alexandre Bortolini (2020).
image/svg+xml9Conservadorismo, discursos antigênero e disputas narrativas em torno das artes contemporâneas no BrasilFigura 01: “Travesti da Lambada e Deusa das Águas” de Bia Leite no QueermuseuFonte: Revista Veja (2017). Disponível em: https://veja.abril.com.br/blog/rio- grande-do-sul/veja-imagens-da-exposicao-cancelada--pelo- santander-no-rs/Figura 02: “Cenas do Interior” de Adriana Varejão no Queermuseu.Fonte: Revista Cult (2017). Disponível em: https://revistacult.uol.com.br/home/queermuseu-censura-avanco-conservador-democracia/A pesquisadora Sara Silva (2019) traçou a ordem dos acontecimentos que desencadearam nas manifestações e encerramento precoce da mostra20. A autora conta que um texto com uma análise indignada da mostra escrito pelo advogado César Cavazzola Júnior e publicado pelo portal Lócus21no dia 6 de setembro de 2017 ganhou visibilidade e começou a ser compartilhado por grupos de maior alcance. Com o aumento da atenção que a exposição tomou por parte da ala conservadora, influenciadores digitais começaram a ir ao “Queermuseu”fazer suas próprias denúncias acusando o museu e o Banco Santander (patrocinador da mostra) de fazerem apologia à pedofilia, à zoofilia 20Poucos vídeos citados na pesquisa de Silva (2019) ainda estão acessíveis nos links divulgados em sua dissertação. Porém, um vídeo na página do Facebook do MBL após a decisão do Santander em fechar a exposição ainda pode ser encontrado. Nele, o hoje deputado federal Kim Kataguiri comemora o encerramento do “Queermuseu” repetindo diversas vezes que se tratava de um incentivo à pedofilia, à zoofilia e à profanação de símbolos religiosos fomentado com dinheiro público voltado a crianças de escolas públicas e particulares e que, graças aos esforços do MBL, havia sido finalizada antes da data prevista. Disponível em: https://www.facebook.com/watch/?v=680258218764991.21Disponível em: https://www.locusonline.com.br/2017/09/06/santander-cultural-promove-pedofilia- porno-grafia-e-arte-profana-em-porto-alegre.
image/svg+xml10Danielle Parfentief de Noronha; Maria Cristina Simões Vivianie de profanarem símbolos cristãos. O Movimento Brasil Livre (MBL) também endossou as denún-cias e, com um alcance muito maior, fez a pressão necessária para que o Santander publicasse uma nota22no dia 10 de setembro encerrando a mostra. O banco argumenta que:O objetivo do Santander Cultural é incentivar as artes e promover o debate sobre as grandes questões do mundo contemporâneo, e não gerar qualquer tipo de desrespeito e discórdia. [...] Desta vez, no entanto, ouvimos as manifestações e entendemos que al-gumas das obras da exposição Queermuseu desrespeitavam símbolos, crenças e pesso-as, o que não está em linha com a nossa visão de mundo. Quando a arte não é capaz de gerar inclusão e reflexão positiva, perde seu propósito maior, que é elevar a condição humana.Um dos principais objetivos da exposição em retratar diversidades de corpos e sexualidades, visi-bilizando grupos e experiências que encontram pouco espaço nas representações vinculadas nos espaços hegemônicos de produção cultural, foi interrompido quando o banco Santander cedeu à pressão do movimento conservador. Nesse sentido, ao encerrar a exposição um mês antes de sua data oficial legitimam-se discursos contrários à diversidade, produzindo socialmente uma narra-tiva que positiva os papéis hegemônicos e excludentes de gênero. Além disso, a nota e a postura do banco também alimentam um debate sobre o que é arte, privilegiando uma visão homogênea e universal em torno do campo artístico. O MBL, parte relevante das manifestações de junho de 2013, utilizou as redes digitais de forma sistemática para promover pautas conservadoras e políticas neoliberais com discursos que repe-tidamente difamam perspectivas progressistas e as vinculam a uma esquerda inimiga da pátria23, do interesse público e dos valores familiares. Dessa forma, é importante destacar que muitos de seus membros se candidataram e foram eleitos como representantes governamentais. Com Kim Kataguiri, por exemplo, não foi diferente. Um dos principais porta-vozes do MBL nas redes sociais foi eleito deputado federal pelo Partido Democratas (DEM) com expressiva quantidade de votos no ano seguinte das polêmicas do “Queermuseu”, o qual ele se expôs frequentemente reivindican-do seu fechamento. Segundo Silva (2019), mais de 15 vídeos foram lançados pelo canal do movi-mento acerca do tema, mesmo após o encerramento da mostra.Para Maria da Glória Gohn (2019, p. 126), nas “organizações movimentalistas” as tecnologias “são ferramentas básicas da própria existência do grupo”, que as utilizam para estruturação e organi-zação. Com isso, a participação online é decisiva para a construção e desenrolar de ações coleti-vas. Esse canal de comunicação serve tanto para que as pessoas se sintam mais participativas e escutadas em suas demandas como também para uma promoção pessoal e política de seus por-ta-vozes. Assim, vídeos do MBL como de outros canais conservadores que denunciavam as obras do “Queermuseu”também serviam de propaganda pessoal e política, colocando as pautas como autopromoção para angariar votos, ao mesmo tempo que serviam de base para fortalecimento do discurso (neo)conservador pautado em bases cristãs moralistas e liberais.Gohn (2019) acredita que as pretensões políticas desses grupos se tornaram explícitas desde que começaram a se candidatar às eleições. Ficou evidente que seus membros se aproveitaram de 22Disponível em: https://www.facebook.com/santanderbrasil/posts/10154720373470588.23As disputas em torno dos processos identitários e dos sentidos de nação também são parte fundamental na estruturação de uma narrativa comum construída por grupos conservadores. Sobre esse tema, ver Danielle Parfentieff de Noronha, Frank Marcon e Marco Aurélio Souza (2022).
image/svg+xml11Conservadorismo, discursos antigênero e disputas narrativas em torno das artes contemporâneas no Brasilpolêmicas para se elegerem com programas neoliberais muito menos populares que as pautas conservadoras em que focaram suas campanhas. Para a autora (Gohn, 2019, p. 154):O MBL também passou a agir segundo metas para o pleito de 2018, com seu líder Kim Kataguiri vindo a ser eleito deputado federal, um dos mais votados, assim como articulou atos isolados, a favor do projeto Escola Sem Partido, contra exposições em museus com temática de gênero, diversidade sexual etc. – como o boicote em Porto Alegre, em exposi-ção que acabou sendo cancelada; e contra a visita da feminista Judith Butler no Brasil, com atos ofensivos aos direitos humanos em sua palestra no Sesc (São Paulo) e no aeroporto de Congonhas, ao sair do país, em novembro de 2017.Apenas duas semanas depois do fechamento do “Queermuseu”,surgira uma nova oportunidade da promoção da agenda conservadora no Brasil por meio de disputas no campo artístico: a perfor-mance “La Bête” (“O Bicho”, em francês), de Wagner Schwartz, no 35º Panorama de Arte Brasileira no Museu de Arte Moderna de São Paulo. A performance consistia em uma participação ativa do público, na qual a espectadora ou o espectador tinha a possibilidade de manipular o corpo do artista em referência às figuras geométricas com dobradiças da série “Bichos” de Lygia Clark. Con-tudo, mesmo após diversas apresentações pelo Brasil e em diversos lugares do mundo, o artista foi surpreendido com uma foto descontextualizada em que tinha seus tornozelos tocados por uma menina ao lado de sua mãe. Mais uma vez o MBL ganha protagonismo e usa suas redes para le-vantar polêmicas em torno da performance. A reinterpretação da imagem pela ala conservadora brasileira foi compartilhada como uma situação recorrente de pedofilia que estava sendo aceita no meio artístico em um claro olhar moralizante para o corpo nu.Figura 03: O artista Wagner Schwartz, numa das posições em que seu corpo foi colocado pelo público durante a performance “La Bête”, segura a réplica de um dos “bichos” de Lygia Clark.Figura 04: A performance “La Bête” se inicia com o artista no centro, manipulando a réplica de uma das figuras geomé-tricas de Lygia Clark.’Fonte: Humberto Araújo (2018). Disponível em: https://brasil.el-pais.com/brasil/2018/02/12/opinion/1518444964_080093.htmlFoto: Humberto Araújo (2018). Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2018/02/12/opinion/ 15Em outubro de 2019, por iniciativa do Ministério Público, foi determinado que o Google retirasse do ar os vídeos da performance (Tiburi, 2019). “O MP também deverá receber os registros dos provedores e dos responsáveis pela difusão das imagens e dos vídeos que circularam com imagens do artista que protagonizava a performance e de crianças que a assistiam” (Tiburi, 2019, n.p.). É possível refletir que não existe interesse em produzir uma discussão sobre o conteúdo, mas o foco é a possibilidade de veicular uma narrativa “universal” – sobre o corpo, sobre os gêneros e sobre
image/svg+xml12Danielle Parfentief de Noronha; Maria Cristina Simões Viviania arte – que seja capaz de produzir benefícios políticos e argumentos em favor da manutenção de conceitos e práticas conservadoras, que apontem de modo binário para o “outro” e para a “outra” como problemas sociais. Para Márcia Tiburi (2019, n.p.): “Marxismo cultural” e “ideologia de gênero” são novos produtos criados para o lucro con-temporâneo de ideólogos que escondem suas ideologias atrás do ataque ao que eles afir-mam ser a ideologia dos outros. Pastores, gurus, políticos profissionais são de um modo geral vendedores e, para que a venda aconteça, é preciso que haja publicidade.Nessa lógica, a diferença – que na perspectiva da guerra cultural deve ser aniquilada (Rocha, 2021) – fica no centro da disputa, que, nos casos aqui analisados, têm o gênero e a sexualidade como principais eixos. As agressões à filósofa feminista Judith Butler também ocorreram em 2017, quando o MBL se aproveitou da visita da pesquisadora ao país para atacá-la e causar repercussão. Desse modo, percebe-se que há uma estratégia sistemática por parte dos grupos conservadores em se utilizar de eventos com viés progressistas para criticar e distorcer seus objetivos no intuito de aumentar seu próprio capital político. Ainda, ao atacar Butler e sua teoria, ataca-se concomi-tantemente a própria ciência, transformando-a em apenas ideologia para, mais uma vez, invalidar a possibilidade de debate. A teoria queer – que nomeia a exposição que causou comoção e que tem Butler como um de seus principais nomes, sendo alvo de discursos de ódio – discorre sobre a performatividade de gênero, isto é, como o gênero é construído a partir de um binarismo sexista arbitrário construído por uma ciência médica biologizante. Assim, Butler (2018) defende que o gênero é uma identidade instável e constantemente construída, em que a identidade generificada é constituída performativamente pelos gestos corporais e estilização do corpo, podendo, inclusive, transformar-se. Para a autora, a realidade de gênero é plural e só é real na medida em que é performada, não existindo uma definição determinante diante de tantas possibilidades. Entretanto, é uma construção que regu-larmente oculta a sua própria gênese, causando equívocos em que muitas vezes a ficção social é julgada como fenômeno natural. Como o gênero não se constitui de um fato, são os próprios atos de gênero que constroem continuamente a sua ideia, sendo inclusive um projeto de sobrevivência cultural, em que caso sua performatividade não seja realizada de forma adequada pode ser punida socialmente. Em suas palavras:Assim, o gênero é feito em conformidade com um modelo de verdade e falsidade que não só contradiz a sua própria fluidez performativa, mas serve a uma política social de regulação e controle do gênero. Performar o gênero de modo inadequado desencadeia uma série de punições ao mesmo tempo óbvias e indiretas, e performá-lo bem proporciona uma sensa-ção de garantia de que existe, afinal de contas, um essencialismo na identidade de gênero. (Butler, 2018, p. 13).Grupos conservadores que defendem os papéis de gênero bem delimitados acreditam que a pes-quisa e os debates acerca de gênero destruiriam a suposta família tradicional, constituída de um homem e uma mulher e seus filhos e filhas (sendo todos e todas cisgênero), questão que respon-de a diversos interesses, como elucidamos no tópico anterior. Porém, as contradições expostas a partir do essencialismo de gênero – bem demonstradas por diversas correntes feministas – inco-modam aquelas pessoas que acreditam no conceito como um dogma e não o percebem como uma construção. A insistência desse pensamento se deve, também, pelo receio de que a ampliação da pluralidade de gênero e de sexualidade acarrete em uma perda de privilégios para a classe con-servadora dominante hegemônica, que, no caso latino-americano, vem desde 1492 construindo
image/svg+xml13Conservadorismo, discursos antigênero e disputas narrativas em torno das artes contemporâneas no Brasiluma política baseada no encobrimento e aniquilação da outra e do outro (Dussel, 1993). Como argumenta Zen (2018, p. 142):Sejam feministas, queer, raciais, dentre outros, o que todos esses movimentos identitários possuem em comum é uma luta contra o poder (totalitário, normatizante, impraticável) e pelo reconhecimento (da subjetividade, das formas de existir, da liberdade de transitar e de expressar-se). O poder, como condição invasiva que mina toda e qualquer condição justa de reconhecimento, rebaixa determinados grupos e indivíduos diminuindo sua subjetividade pela comparação com o modelo normativo.Essa reflexão também pode ser realizada no último caso que apresentaremos neste trabalho, da artista Musa Michelle Mattiuzzi, que também foi vítima de ataques virtuais quando concorreu ao Prêmio PIPA em 2017. Nesse caso, queremos demonstrar que os discursos antigênero estão completamente relacionados com os discursos racistas e contrários à diferença, pilar fundamental para o desenvolvimento do conservadorismo na América Latina. O prêmio, organizado pelo insti-tuto de mesmo nome, começou em 2010 e ocorre anualmente desde então. Toda a programação e participação do público ocorrem de maneira online, o que faz do prêmio uma plataforma impor-tante para pesquisadoras, pesquisadores, curadoras, curadores e artistas interessadas e interessa-dos em arte contemporânea brasileira.Porém, na votação da categoria “Pipa Online” em 2017 houve uma movimentação inesperada. Gru-pos conservadores que desaprovavam a obra de Mattiuzzi (preferida ao prêmio até o momento) se organizaram para votar em massa em um outro concorrente. A obra da paulistana radicada em Salvador reúne elementos performáticos em que questiona o racismo, o sexismo e o sistema colo-nial ainda vigentes. Em “Merci beaucoup, blanco!”, uma de suas muitas performances, a artista se apresenta nua e pinta seu corpo com tinta branca ao mesmo tempo em que sorri acenando gracio-samente para o público. A obra critica o “embranquecimento” imposto pela racialização colonial dos corpos negros em que são subalternizados e exotizados.Dessa forma, sendo uma obra provocadora em diversos aspectos, a reação conservadora foi se unir a fim de acumular votos a um outro artista que tivesse um trabalho mais palatável às suas ideologias. Ao contrário do que indicaria um prêmio de arte – a votar no seu favorito – esses gru-pos conservadores se organizaram para votar em outro artista apenas com o objetivo final de que Mattiuzzi não fosse a ganhadora do prêmio. Concomitantemente ao aumento de votos repentinos ao artista Jorge Luiz Fonseca, homem branco com uma poética completamente distinta de Mattiu-zzi, ela começou a receber ataques racistas em suas redes sociais.O Instituto PIPA se manifestou dizendo ter verificado os IPs24dos votantes e garantiu que não houve fraude. Dessa forma, o artista que havia alavancado mais de mil votos nas horas finais de disputa recebeu o prêmio e se posicionou dizendo que ficava triste que uma parcela desses votos poderia ser de pessoas com discursos dos quais discordava e que não o representavam, mas que estava feliz com o resultado e com a confirmação da lisura do processo da premiação.24IPs significa “internet protocol” ou “protocolo de rede” em português. Auxilia a rastrear de quais aparelhos eletrônicos partiram ações feitas na internet.
image/svg+xml14Danielle Parfentief de Noronha; Maria Cristina Simões VivianiFigura 05: Performance Merci beaucoup, banco! de Musa Michelle MattiuzziFoto: Hirosuke Kitamura (2010). Disponível em: https://musamattiuzzi.wixsite.com/musamattiuzzi/portraitslFigura 06: Performance Merci beaucoup, blanco! de Musa Michelle MattiuzziFoto: Alex Oliveira (2017). Disponível em: https://atarde.uol.com.br/muito/noticias/1 887965-arte-do-corpoO caso do Prêmio Pipa é um terceiro evento em véspera de ano eleitoral que levou a uma grande mobilização da ala conservadora para reafirmar suas crenças e valores, também com objetivos políticos. A forte exploração da imagem de pessoas públicas atreladas a esses discursos já pres-crevia as campanhas para 2018. A visibilidade causada por esses tipos de polêmicas alavancava o engajamento necessário para que os futuros candidatos se autopromovessem como figuras que iriam representar as narrativas de uma pátria com fundamentos cristãos e valores tradicionais.O impacto e a indignação causados pela obra de Mattiuzzi na ala conservadora podem ter diver-sos motivos. Para além do corpo da mulher nua, o fator racial também é relevante não só em sua performance, mas também para a percepção dela. Diferentemente das demais obras tratadas aqui, Mattiuzzi não está abordando diretamente o gênero e a sexualidade, apesar de dialogar com
image/svg+xml15Conservadorismo, discursos antigênero e disputas narrativas em torno das artes contemporâneas no Brasilo tema. Entretanto, nos parece relevante que uma mulher negra artista tenha sido alvo de uma investida conservadora e tenha perdido o prêmio justamente para um homem branco. Será que é possível, para esses grupos, que uma mulher – e em especial uma mulher negra – possa ser vista para além do seu corpo e ser considerada artista?A articulação do racismo com o sexismo produz efeitos violentos sobre a mulher negra em par-ticular (González, 2019). Para Sueli Carneiro (2019, p. 325), o que deveria ser considerado como história ou reminiscências do período colonial permanece vivo no imaginário social e “adquire novos contornos e funções em uma ordem social supostamente democrática, que mantém intactas as relações de gênero segundo a cor ou a raça instituídas no período da escravidão”. Um feminismo negro, assim, construído em contextos multirraciais, pluriculturais e racistas como são as socie-dades latino-americanas, tem como principal eixo articulador o racismo e seu impacto sobre as relações de gênero, uma vez que “ele determina a própria hierarquia de gênero em nossas socie-dades” (Carneiro, 2019, p. 327).Em geral, a unidade na luta das mulheres nas sociedades não depende apenas de nossa capacidade de superar as desigualdades geradas pela histórica hegemonia masculina, mas exige também a superação de ideologias complementares desse sistema de opressão, como é o caso do racismo. O racismo estabelece a inferioridade social dos segmentos negros da população em geral e das mulheres negras em especial, operando ademais como fator de divisão na luta das mulheres pelos privilégios que se instituem para as mulheres brancas. Nessa perspectiva, a luta das mulheres negras contra a opressão de gênero e de raça vem desenhando novos contornos para a ação política feminista e antirracista, enriquecendo tanto a discussão da questão racial como a questão de gênero na sociedade brasileira. (Car-neiro, 2019, p. 327).Carneiro (2019) defende que esse olhar feminista e antirracista, ao integrar em si tanto as tradi-ções de luta do movimento negro como a tradição de luta do movimento de mulheres, afirma uma nova identidade política decorrente da condição específica do ser mulher negra. A filósofa acredita na construção de uma sociedade multirracial e pluricultural, na qual a diferença seja vivida como equivalência e não mais como inferioridade, em que seja possível “ser negro sem ser somente negro, ser mulher sem ser somente mulher, ser mulher negra sem ser somente mulher negra” (Carneiro, 2019, p. 332). Para a autora, “alcançar a igualdade de direitos é converter-se em um ser humano pleno e cheio de possibilidades e oportunidades para além de sua condição de raça e de gênero. Esse é o sentido final dessa luta” (Carneiro, 2019, p. 332). Fica evidente, então, pelo discur-so de Sueli Carneiro e tantas outras feministas não brancas, que é impossível pensar nas políticas de gênero e sexualidade sem vinculá-las às lutas antirracistas.Nos três casos, vemos exemplos de como os eventos relacionados a temáticas de gênero e de se-xualidade – que ocorreram dentro de espaços institucionalizados das artes – possibilitaram que o discurso conservador pudesse ser promovido, em especial, por meio das mídias tradicionais e di-gitais – tendo como agravante a proximidade do ano eleitoral. Esse fato demonstra que os discur-sos encontram espaço nas próprias ferramentas disponíveis nos contextos democráticos (Biroli et al., 2020) para naturalizar narrativas antidemocráticas de forma desigual quando comparamos com a veiculação de outros pontos de vista. Por meio de uma interpretação moral hegemônica e colonial, fundada no cristianismo, na binaridade de gênero e na cis-heteronormatividade, grupos que atuam em distintas áreas se aliam em torno de uma disputa narrativa com interesses e objeti-vos políticos. Esses objetivos são tanto relacionados ao nível pessoal de agentes envolvidos, mas, e principalmente, parte de um processo amplo de disputa política que visa barrar os avanços nas
image/svg+xml16Danielle Parfentief de Noronha; Maria Cristina Simões Vivianidiscussões e nas políticas de gênero e sexualidade conquistadas – com muito esforço e resistência – nas últimas décadas e implementar ou fortalecer políticas liberais e conservadoras.Considerações finaisEm diálogo com Brown (2019), o contexto mundial que possibilitou a ascensão do conservadoris-mo extremista e fundamentalista nos últimos anos, em vários lugares do mundo, assim como no Brasil, é resultado do neoliberalismo e seu ataque ao social, que geram “uma cultura antidemocrá-tica desde baixo, ao mesmo tempo em que constrói e legitima formas antidemocráticas de poder estatal desde cima” (Brown, 2019, p. 39). Essa cultura neoliberal intensificou o niilismo, o fatalis-mo e o ressentimento rancoroso já presentes na cultura moderna(colonial), que se apresentam de formas muito específicas quando analisamos a realidade de países da América Latina, que sofrem até hoje com a lógica hierárquica desigual do sistema-mundo.Defendemos que as manifestações feitas contra os eventos abordados, em ano de véspera elei-toral, foram utilizadas de forma oportunista a fim de fortalecer politicamente um conservado-rismo fundamentalista religioso neoliberal, que tem como objetivo primário disputar com os discursos e as práticas progressistas que abordam a diversidade sexual e de gênero nos mais diversos espaços sociais. Essa disputa é responsável por promover diversas arbitrariedades, inclusive no que diz respeito à proteção e à defesa dos direitos humanos nos mais diversos âm-bitos sociais25. O resultado desse processo, além de fortalecer o discurso conservador e barrar o avanço das políticas de gênero e de sexualidade – como também daquelas relacionadas às minorias sociais de forma geral – é a representatividade pouco plural nas instituições públicas (Carvalho, 2019) e a implementação de políticas liberais que servem ao projeto política da mo-dernidade/colonialidade capitalista. O estudo de Carvalho (2019) ainda chama atenção para mais um padrão de emergência em tor-no dos embates relativos ao gênero, relacionado às imagens, às representações e às referências produzidas por lideranças de nova direita conservadora às mulheres, que, acrescentamos, com-preendem as mulheres equivocadamente de forma homogênea e universal. Nas palavras da pes-quisadora:Trata-se de reiteradas falas sobre a beleza feminina – ou as críticas pela falta de beleza –, as referências ao papel que nós mulheres deveríamos cumprir na sociedade, não raro as-sociadas a demonstrações de raiva e a justificação de atos violentos, aliadas ainda a ações de constrangimento público direcionada a mulheres. Pelo volume e recorrência, tais men-ções às mulheres não podem ser entendidas como desvios pessoais de lideranças políticas, mas como um discurso compartilhado que, em meu entender, busca recolocar as mulheres determinadas posições na vida pública e privada, ao mesmo tempo em que desqualifica a ação feminista e abre espaço para a violência de gênero. Longe de falas fortuitas, a rei-teração dessas ideias emerge, mais uma vez, como um elemento articulador do conjunto de pautas morais conservadoras e tem consequências políticas, agregando pessoas que de alguma forma se aproximam daquelas ideias e referendando (ou incentivando) sua circula-ção no campo político (Carvalho, 2019, p. 13).25Além dos casos contra artistas e outras pessoas que foram envolvidas nas polêmicas aqui analisadas, há situações ainda mais graves e extremas, como é o caso da tentativa de impedir o aborto de uma criança que havia sido estuprada. Disponí-vel em: https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2020/09/ministra-damares-alves-agiu-para-impedir-aborto-de-crian-ca-de-10-anos.shtml.
image/svg+xml17Conservadorismo, discursos antigênero e disputas narrativas em torno das artes contemporâneas no BrasilO protagonismo das mídias e redes digitais é um tema que merece atenção para compreender-mos os novos processos vinculados a esse fortalecimento do conservadorismo na atualidade, pois, como nos exemplos aqui apresentados, é um espaço fundamental para a produção, a dis-tribuição e a formação de redes relacionadas a narrativas conservadoras, como as pautas anti-gênero. Sabemos que as artes são apenas uma das perspectivas possíveis de analisar a guinada conserva-dora política brasileira, entre muitas possíveis, e é apenas um dos espaços que estão permeando essas disputas, não apenas na interpretação como também na produção. Com esses exemplos, entre tantos possíveis, esses grupos também estão tentando produzir um discurso sobre o que é ou não é arte, compreendida de forma homogênea e aceita apenas quando carregada da ideologia que eles defendem26. Não podemos esquecer, por exemplo, dos esforços que a produtora de extre-ma-direita Brasil Paralelo27vem implementando no audiovisual para narrar uma versão “paralela” e conservadora da história, inclusive em relação ao gênero e à sexualidade como no caso dos “do-cumentários” produzidos sobre o feminismo (Holanda, 2022). Entretanto, a arte, para além da função estética, pode ser crítica e questionadora, e frequentemen-te é temida e atacada por grupos autoritários e fundamentalistas quando assume o papel de trazer para o debate pontos de vista silenciados da sociedade, normalmente contrários às normativas instituídas responsáveis pela manutenção das desigualdades, produzidos por aquelas e aqueles que percebem a arte como uma possibilidade de prática política emancipatória. Referências Biroli, Flávia; Machado, Maria das Dores Campos; Vaggione, Juan Marco. Gênero, neoconservadorismo e democracia: Disputas e retrocessos na América Latina. São Paulo: Boitempo, 2020.Brown, Wendy. The American Nightmare: Neo-Liberalism, Neo-Conservatism, and the De-Democratization of the United States. Political Theory, 34(6), 2006, p. 690-714.Butler, Judith. El género en disputa. El feminismo y Ia subversión de la identidad. Barcelona: Paidós, 2007.Butler, Judith. “Os atos performativos e a constituição do gênero: um ensaio sobre fenomenologia e teoria feminista”. Trad. Jamille Pinheiro Dias. Caderno de leiturasn. 78. Ed. Chão da Feira. Jun/2018.Camusso, M. Entrevista a Flavia Freidenberg y Virginia García Beaudoux. Violencia política, nuevos lidera-zgos y comunicación en América Latina. Apuntes desde una perspectiva de género. InMediaciones de la Comunicación, 17(2), 241-254, 2022. DOI: https://doi.org/10.18861/ic.2022.17.2.3337Carneiro, Sueli. “Enegrecer o feminismo: a situação da mulher negra na América Latina a partir de uma perspectiva de gênero”. In: Hollanda, Heloísa Buarque de. (org). Pensamento Feminista: Conceitos Fun-damentais. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2019.Carvalho, Priscila Delgado de. O discurso anti-gênero como elemento estruturador dos conservadorismos contemporâneos. 43º Encontro Anual da Anpocs. Caxambu, 2019.26Sobre isso, vale relembrar o discurso do ex-secretário de cultura do governo Bolsonaro, Roberto Alvim, que copiou trechos de discurso nazista do ministro da propaganda de Hitler: “A arte brasileira da próxima década será heroica e será nacional. Será dotada de grande capacidade de envolvimento emocional e será igualmente imperativa [...] ou então não será nada”. Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2020-01-17/secretario-da-cultura-de-bolsonaro-imita-discurso-de-na-zista-goebbels-e-revolta-presidentes-da-camara-e-do-stf.html27A empresa Brasil Paralelo busca narrar temáticas e momentos da história brasileira a partir de uma perspectiva de extre-ma-direita e neoliberal, em que, entre outras coisas, não há espaço para dissidências de corpo e gênero. Como o site da produtora indica, o grupo busca “resgatar os bons valores, ideias e sentimentos nos brasileiros”.
image/svg+xml18Danielle Parfentief de Noronha; Maria Cristina Simões VivianiCorrêa, Sonia; Kalil, Isabela (eds.). Políticas antigênero na América Latina. Rio de Janeiro: Associação Brasileira Interdisciplinas de Aids - ABIA, 2021Corrêa, Sonia; Parker, Richard. “Prefácio”. In: Corrêa, Sonia; Kalil, Isabela (eds.). Políticas antigênero na América Latina. Rio de Janeiro: Associação Brasileira Interdisciplinas de Aids, 2021Corrêa, Sonia; Isabella Kalil. “Brasil”. In: Corrêa, Sonia; Kalil, Isabela (eds.). Políticas antigênero na Améri-ca Latina. Rio de Janeiro: Associação Brasileira Interdisciplinas de Aids, 2021.De Noronha, Danielle Parfentieff; Ezequiel, Maíra. Relatos sobre a (anti)política do governo Bolsonaro para o cinema e o audiovisual. In: Depieri, Andréa; Souza, Marco; Vitória, Paulo Renato. OBSERVATÓRIO DA DEMOCRACIA UFS: 25 registros de ataques e ameaças à democracia brasileira (2019-2021).São Cristóvão: Editora UFS, 2022.De Noronha, Danielle Parfentieff; Marcon, Frank; Souza, Marco Aurélio Dias de. Processos Identitários: Sentidos de Nação e Democracia. São Cristóvão/SE: Editora UFS, 2022.Dussel, Enrique. O encobrimento do outro: a origem do mito da modernidade. Petrópolis, Vozes, 1993.Federici, Silvia. Calibã e a bruxa. São Paulo: Elefante, 2017.Lugones, María. Rumo a um feminismo descolonial. In: In: Hollanda, Heloísa Buarque de. (org). Pensamen-to Feminista: Conceitos Fundamentais. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2019.Lugones, María. Colonialidad y género. Tabula Rasa, nº 9, 2008, p. 75-101.Gallego, Esther Solano. O ódio como política: a reinvenção das direitas no Brasil. São Paulo: Boitempo, 2018.Galzerano, Luciana Sardenha. A ofensiva antigênero na sociedade brasileira. Trabalho necessário, v. 19, n. 38, 2021.Gohn, Maria da Glória. Participação e Democracia no Brasil; Da Década de 1960 aos impactos pós-ju-nho de 2013. Editora Vozes. 2019.Gonzalez, Lélia. “Racismo e sexismo na cultura brasileira”. In: Interseccionalidades: Pioneiras do feminis-mo negro brasileiro. Org. Heloisa Buarque de Hollanda. Bazar do Tempo, Rio de Janeiro/RJ, 2019.Holanda, Karla. Feminismo paralelo sob a linguagem da destruição. Apresentação de trabalho no XXV Encontro Socine, São Paulo, 2022.Machado, Maria das Dores Campos. O discurso cristão sobre a “ideologia de gênero”. Estudos Feministas, Florianópolis, v. 26, n. 2, 2018, p. 1-18.Melo, Flávia. Não é fumaça, é fogo! Cruzada antigênero e resistências feministas no Brasil. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, 28(3): e72564 DOI: 10.1590/1806-9584-2020v28n372564Mignolo, Walter. Historias locales/diseños globales: colonialidad, conocimientos subalternos y pen-samiento fronterizo. Madrid: Akal, 2013.Quijano, Aníbal. “Colonialidad del poder y clasificación social”. In: Castro- Gómez, Santiago y Grosfoguel, Ramón (orgs.). El giro decolonial: reflexiones para una diversidad epistémica más allá del capitalis-mo global. Bogotá: Siglo del Hombre, 2007, p. 285-327.Ramírez, Gabriela. “Ideologia de gênero”, neointegrismo católico e fundamentalismo evangélico: a vocação antidemocrática. In: Corrêa, Sonia; Kalil, Isabela (eds.). Políticas antigênero na América Latina. Rio de Janeiro: Associação Brasileira Interdisciplinas de Aids, 2021.Rocha, João Cesar de Castro. Guerra cultural e retórica do ódio. Goiânia: Caminhos, 2021.Serrano, Francisco. “Políticas Antigênero: um olhar panorâmico”. In: Corrêa, Sonia; Kalil, Isabela (eds.). Polí-ticas antigênero na América Latina. Rio de Janeiro: Associação Brasileira Interdisciplinas de Aids - ABIA, 2021Silva, Sara Raquel de Andrade. Reação, mobilização e produção de sentidos na arte: um olhar sobre a trajetória da exposição Queermuseu. Dissertação do programa de pós-graduação em sociologia da UFF. Niterói, 2019.Tiburi, Márcia. La Bête: a quem interessava transformar a performance em escândalo? Cult, 2019. Disponível em: https://revistacult.uol.com.br/home/la-bete-dois-anos-depois-wagner-schwartz. Acesso em 13 fev. 2023.
image/svg+xml19Conservadorismo, discursos antigênero e disputas narrativas em torno das artes contemporâneas no BrasilWallerstein, Immanuel; Quijano, Aníbal. 1992. “La Americanidad como concepto, o América en el moderno sistema mundial”. Rics, 44(4), 1992, p. 583-91.Valente, Rubens. País teve 211 casos de censura e ataques à cultura em 3 anos, diz relatório. UOL, 2022. Dis-ponível em: https://noticias.uol.com.br/colunas/rubens-valente/2022/03/17/cultura-censura-ataques--governo-bolsonaro.htm. Acesso em 12 fev. 2023.Vencato, Anna Paula; Vieira, Regina Steta. Uma virada conservadora: pânico moral, mídias digitais, (des)ilusões e (des)afetos no Brasil dos anos 2010. Revista Eletrônica Interações Sociais – REIS, v. 5, n. 1, 2021, p. 10-29.Vianna, Claudia; Bortolini, Alexandre. Discurso antigênero e agendas feministas e LGBT nos planos estadu-ais de educação: tensões e disputas. Educ. Pesqui., São Paulo, v. 46, e221756, 2020.Zen, Rafael Luiz. A supressão do outro no episódio do Queermuseu: a liberdade de expressão sob coerção e o que pode o artivismo queer. Palíndromo, v.10 nº 21, 2018, p. 130-154.
image/svg+xml20Danielle Parfentief de Noronha; Maria Cristina Simões VivianiHISTÓRICO Recebido: Fevereiro/23Parecer: Abril/23Parecer: Abril/23Aceito: Maio/23Revisado Autor: Maio/23Revisão Gramatical/Ortográfica e ABNT: Maio/23Revisado Autor: Maio/23Diagramação: Junho/23Publicado: Junho/23Equipe Editorial Revista TOMO envolvida no processo editorial deste artigoMarina de Souza Sartore (Editora-Chefe)Gabriela Losekan (Editora assistente júnior)Conservatism, anti-gender discourses and narrative disputes around the contemporary arts in BrazilAbstract: In recent years, there has been an important growth in the propagation of anti-gender discourses in the most diverse social fields, with special attention to the fields of politics, education and the arts, con-stituting a phenomenon of global dimensions. In Brazil, such discourses, which can be understood as one of the pillars that support the arguments of contemporary conservatism, have come to play a leading role in various narrative disputes around gender and sexuality policies. In this sense, this article seeks to investigate the role of anti-gender discourses in the articulation of conservatism in Brazil and the narrative disputes produced around the theme in the arts system. For this, from decolo-nial and feminist perspectives, in dialogue with the social sciences, we present in the first part of the text a bibliographical review to, in the sequence, articulate it to artistic events related to gender and LGBTQIAPN+ agendas that were the target of con-servative attacks in 2017, election year eve.Keywords:Antigenre. Art. Conservatism. Speech-es. Political disputes.Conservadurismo, discursos antigénero y disputas narrativas en torno a las artes contemporáneas en BrasilResumen: En los últimos años se ha producido un importan-te crecimiento en la propagación de discursos an-tigénero en los más diversos campos sociales, con especial atención a los campos de la política, la educación y las artes, constituyendo un fenómeno de dimensiones globales. En Brasil, tales discursos, que pueden ser entendidos como uno de los pilares que sustentan los argumentos del conservaduris-mo contemporáneo, han llegado a desempeñar un papel protagónico en diversas disputas narrativas en torno a las políticas de género y sexualidad. En ese sentido, este artículo busca investigar el papel de los discursos antigénero en la articulación del conservadurismo en Brasil y de las disputas narra-tivas producidas en torno al tema en el sistema de las artes. Para ello, desde perspectivas decoloniales y feministas, en diálogo con las ciencias sociales, presentamos en la primera parte del texto una re-visión bibliográfica para, en la secuencia, articularla a eventos artísticos relacionados con las agendas de género y LGBTQIAPN+ que fueron objeto de ataques conservadores en 2017, víspera de año electoral.Palabras clave: Antígénero. Arte. Conservatismo. Discursos. Disputas políticas.