image/svg+xml1Revista TOMOSão Cristóvão, v. 42, e18771, 2023Data de Publicação: Junho/2023DossiêDesmantelando sistemas de controle: o ato de criação queer como fabulação e resistênciaDaniel Oliveira1Resumo: Pensar em um cinema queer é refletir sobre como o audiovisual, com suas estratégias estético-narrativas, pode contribuir para uma proposta antinormativa de gênero e sexualidade. A partir de uma revisão siste-mática de literatura, centrada em pesquisadores/as do Sul global que, numa perspectiva decolonial, têm deglutido e reconfigurado os estudos queer para seus contextos específicos, este artigo investiga a noção de que uma série de filmes contemporâneos tem concretizado esse propósito com a encenação de um ato de criação queer (Silva, 2021). Para isso, a análise elabora um diálogo entre as provocações desses/as te-óricos/as, com o intuito de indagar em que medida pode-se pensar tal ato de criação no âmbito brasileiro. Com base nessa reflexão, conclui apontando, a título de instigação e prelúdio para investigações futuras, produções nacionais contemporâneas em que seria possível identificar e analisar esse gesto artístico de autofabulação.Palavras-chave: Ato de criação queer. Cinema queer contemporâneo. Cinema queer brasileiro.Introdução“Imaginação é a chave para romper as fronteiras entre nações. Nós podemos romper as estruturas existentes de governo. O trabalho que qualquer pessoa faz como artista, se não refletir resistência, está ajudando um sistema de controle a se tornar mais perfeito”. Essa declaração foi feita pelo ar-tista, ensaísta e ativista norte-americano David Wojnarowicz em uma de suas diversas gravações pessoais, usadas pelo cineasta Chris McKim no documentário “Wojnarowicz: F--k You F-ggot F—ker” (2020). É uma proclamação que não apenas sintetiza a atitude filosófica e o programa polí-tico da arte queer do início dos anos 1990 – da qual Wojnarowicz, que morreu de complicações causadas pela Aids em 1992, permanece uma grande referência –, mas que ressalta o poder, e a importância, do gesto criativo.Arte, pinturas, filmes, músicas e livros nos ajudam a imaginar o(s) novo(s) mundo(s) por vir. Eles nos permitem vislumbrar o que ainda não é possível. São fundamentais para a forma como a hu-manidade concebe, e projeta, o futuro. Porque não se contentam com a realidade como ela é. Eles 1Universidade da Beira Interior. Faculdade de Artes e Letras, Departamento de Artes, Covilhã, Castelo Branco, Portugal. Email: do.silva@ubi.pt https://orcid.org/0000-0002-2185-2355 Artigo de pesquisa financiada pela Fundação pela Ciência e a Tecnologia. Dossiê
image/svg+xml2Daniel Oliveirapartem dela, apenas para extrapolá-la. Como Gilles Deleuze pontificou na conferência “O Que é o Ato de Criação” (1999), não existe arte que não convoque “um povo que ainda não existe”.Silva (2021) usa essa conferência deleuziana como uma das bases para propor um conceito que ele chama de “ato de criação queer”, surgido a partir da análise de três longas-metragem queer contemporâneos – “Weekend”(Andrew Haigh, 2011), “Retrato de uma Jovem em Chamas” (Céline Sciamma, 2019) e “Pariah” (Dee Rees, 2011). O trio de filmes retrata protagonistas que, confronta-dos com os impedimentos e obstáculos de uma vida não-normativa em um mundo violentamente normativo, recorrem à criação artística para “queerizarem” suas existências. Por meio de crônicas confessionais, da pintura e da poesia, os/as personagens dessas tramas reimaginam e fabulam suas narrativas pessoais com uma plenitude queer que suas realidades não lhes permitem. Ao identificar esse mesmo recurso em uma série de outras produções queer contemporâneas, o autor chama tal gesto de autonarrativização de “ato de criação queer” que, nesses longas, representa uma reconfiguração espaço-temporal que, com base na sua noção de historicidade e de espaço, abandona a ideia de arte (e de cinema) como mera representação de uma categoria, rumo a uma proposta de exploração de novas subjetividades, múltiplas, não-fixas, em constante construção e mutação, que se expressam e dão sentido a essa perpétua instabilidade apenas por meio da produção artís-tica. (Silva, 2021, p. 104).Esse conceito, no entanto, foi proposto com base em três longas produzidos no Norte global (Reino Unido, França e EUA, respectivamente), mesma localização socioeconomicamente privilegiada das origens da Teoria Queer. E o objetivo deste artigo é, por meio de uma revisão sistemática de litera-tura centrada numa série de pesquisadores do Sul global que, numa perspectiva decolonial, têm de-glutido e reconfigurado as ideias dos estudos queer para seus contextos específicos (Colling, 2018; Costa, 2018; Pelúcio, 2014; Sarmet, 2014), verificar em que medida é possível pensar ou identificar um “ato de criação queer”, colocando à prova sua validade e relevância, no âmbito brasileiro. Sem a pretensão de adentrar na análise fílmica de produções específicas, a investigação a seguir se propõe a elaborar um diálogo entre vários teóricos que têm pensado a teoria queer no contexto latino-americano e brasileiro, com o intuito de questionar se é possível falar de uma arte queer/kuir/cuir/cu no país. E, se sim, no que ela consistiria, quem a produz, para quem fala, quais são os corpos e os movimentos que coloca em evidência. Com base nessa reflexão, conclui apontando, a título de instigação e prelúdio para investigações futuras, produções nacionais contemporâneas em que seria possível identificar e analisar esse gesto artístico de autofabulação, com o intuito de melhor compreender a ideia de um “cinema queer” no Brasil. Antes de nos focarmos nesses estudos decoloniais, porém, façamos uma (muito) breve incursão por alguns escritos recentes do Norte global sobre a relação entre teoria queer e produção artística. 1. Corpo, território e disputaSegundo Halberstam (2005, p. 6), queer se refere a uma série de “lógicas e organizações não-nor-mativas de comunidade, identidade sexual, corporificação e atividade no espaço e tempo”2. Para o 2Tradução do autor. No original: “‘queer’ refers to nonnormative logics and organizations of community, sexual identity, embodiment, and activity in space and time”.
image/svg+xml3Desmantelando sistemas de controleteórico, a especificidade das experiências de mundo e das histórias de vida dos sujeitos não-hete-rossexuais implica em percepções e construções diferentes de espaço e tempo, instaurando novas formas de ser e estar para essas pessoas: “Tempo queer” é um termo para aqueles modelos específicos de temporalidade que surgem a partir do pós-modernismo, quando se abandona a lógica temporal burguesa da reprodu-ção, família, longevidade, risco/segurança e herança. “Espaço queer” se refere às práticas de construção de espaço dentro do pós-modernismo, nas quais as pessoas queer se envolvem e também descreve as novas concepções de espaço possibilitadas pela produção de contra-públicos queer3(Halberstam, 2005, p. 6). Assim, é possível dizer, no contexto brasileiro, que com seus espetáculos provocadores e debocha-dos, os Dzi Croquettes desestabilizavam o momento histórico da ditadura civil-militar, por exem-plo, possibilitando novas lógicas temporais de r/existência para o público da época, a partir de práticas de gênero e sexualidade específicas. Ou que um cantor como Ney Matogrosso subverte o machismo e a homofobia inerentes à cultura tradicional do país, a partir de uma provocação que instaura formas queer de ocupar e ressignificar o espaço por meio de experiências não-normativas.Nessa perspectiva, portanto, a arte passa a ser menos um meio de expressão de identidades/sub-jetividades e mais uma ferramenta num cenário de disputa de narrativas: entre um projeto he-terossexista e normatizante e outro disruptor e antinormativo. Ela se torna mais uma forma de, literalmente, imaginar e conceber essas novas lógicas de espaço e tempo, fora do discurso e dos parâmetros heteronormativos. Trata-se de desestabilizar não apenas o palco, a página ou a tela, mas de reimaginar a casa, a escola, a periferia, o casamento, o passado, o futuro, a partir de experiências não-normativas porque, como explica Preciado (2014, p. 31), “os contextos sexuais se estabelecem por meio de delimitações es-paço-temporais oblíquas. A arquitetura é política. É ela que organiza as práticas e as qualifica: públicas ou privadas, institucionais ou domésticas, sociais ou íntimas”. Desse modo, se a narrativa heterossexista historicamente associou a periferia a um lugar de violência e insegurança homo e transfóbica, por exemplo, trata-se de pensar como o corpo da cantora Linn da Quebrada reocupa esse espaço e inverte essa lógica com sua performance, tornando-se “não somente um lugar de poder, mas, sobretudo, o espaço de uma criação na qual se sucedem e se justapõem os movimentos feministas, homossexuais, transexuais, intersexuais, transgêneros, chicanas, pós-coloniais” (Pre-ciado, 2011, p. 14). Porque, nessa lógica “sexopolítica, […] o corpo não é um dado passivo sobre o qual age o biopoder, mas antes a potência mesma que torna possível a incorporação prostética dos gêneros” (Preciado, 2011, p. 14).Nessa disputa de narrativas, portanto, o artista, sua obra, sua performance e seu corpo não são meras vítimas de opressão ou censura, mas agentes de um trabalho de “desterritorialização da heterossexualidade, que afeta tanto o espaço urbano (é preciso, então, falar de desterritorialização do espaço majoritário, e não do gueto) quanto o espaço corporal” (Preciado, 2011, p. 14). Nesse contexto, não faz mais sentido falar em representação, mas, sim, em ocupação, desconstrução, der-rubada de paredes, redesenho a partir da planta, uma vez que, numa perspectiva queer, não existe 3Tradução do autor. No original: “‘Queer time’ is a term for those specific models of temporality that emerge within postmo-dernism once one leaves the temporal frames of bourgeois reproduction and family, longevity, risk/safety, and inheritance. ‘Queer space’ refers to the place-making practices within postmodernism in which queer people engage and it also descri-bes the new understandings of space enabled by the production of queer counterpublics”.
image/svg+xml4Daniel Oliveiramais uma mera diferença sexual. Mas, sim, uma multiplicidade instável e constantemente reconfi-gurada de gêneros, sexualidades e subjetividades que não param de se reinventar e se redescobrir, encontrando novas formas de ser e estar no mundo. “Uma transversalidade de relações de poder, uma diversidade de potências de vida” que “não são ‘representáveis’ porque são ‘monstruosas’” (Preciado, 2011, p. 18), não cabendo mais nos sistemas e lógicas artístico-criativos tradicionais, precisando, portanto, questioná-los, subvertê-los e reinventá-los, encontrando novas formas de autoria, de performance, de ocupar o palco e o enquadramento da câmera. É a história dessa criação das condições de um exercício total de enunciação, a história de uma inversão da força performativa dos discursos e de uma reapropriação das tecnologias sexopolíticas de produção dos corpos dos “anormais”. A tomada da palavra pelas minorias queer é um advento não tanto pós-moderno como pós-humano: uma transformação na produção, na circulação dos discursos nas instituições modernas (da escola à família, pas-sando pelo cinema ou pela arte) e uma mutação dos corpos (Preciado, 2011, p. 17).Pensar o cinema nessa chave de reelaboração de lógicas de espaço e tempo não-normativas, ocupa-das por novos corpos que as reconfiguram com novas performances, novos modos de ser e estar, é fundamental. Porque o cinema narrativo, como gesto fílmico, como ato criativo, consiste basicamente em construir mundos diegéticos a partir de recortes espácio-temporais. Por isso, é uma ferramenta extremamente poderosa nesse cenário de disputa e na concepção dessas narrativas queer do lado de lá e de cá da tela – na medida em que, por exemplo, “o espaço público é disputado por pessoas queer, e o cinema cria espaços que negociam entre o público e o privado. Os espaços que ele cria na tela são imaginários, mas referem-se, na maioria das vezes, a pró-fílmicos reais”4(Galt; Schoonover, 2015, p. 92). Tensionado e executado a partir de uma perspectiva queer, o cinema tem o potencial não apenas de imaginar novos mundos, mas de criar “modos novos e dissidentes de afeto e prazer, bem como novos estilos fílmicos”5(Galt; Schoonover, 2015, p. 89). Refletir sobre como isso é possível. Refletir sobre quais lógicas espácio-temporais podem ser reconfiguradas, no contexto pós-colonial do Sul global, em especial o brasileiro, é o que vamos fazer na seção seguinte.2. Um cu decolonialEntre as décadas de 1960 e 1980, o escritor alemão Hubert Fichte esteve no Brasil várias ve-zes, chegando a permanecer por meses numa única visita. Interessado pelas religiões de matriz afro-brasileira, produziu uma série de escritos etnográficos sobre o tema, cuja qualidade literária rendeu às obras a alcunha de “etnopoesia”. Além deles, Fichte – que vivia numa espécie de relação estável com a fotógrafa Leonore Mau – também escreveu vários romances inspirados nas suas aventuras sexuais com homens brasileiros. Em livros como “Ensaio sobre a puberdade”(1986), o alemão descreveu suas experiências intensamente lascivas no carnaval brasileiro, em banheiros públicos, cinemas e outros locais de pegação no contexto da ditadura civil-militar, chegando a de-dicar páginas e páginas a um tratado celebratório da beleza do… derrière nacional6. Dotada de uma libertinagem e uma sensorialidade profundamente queer, transitando tropegamente numa linha 4Tradução do autor. No original: “Public space is contested for queer people and cinema creates spaces that negotiate betwe-en public and private. The spaces it creates onscreen are imaginary yet they refer, most often, to real profilmics”.5Tradução do autor. No original: “new and dissident modes of affection and pleasure as well as new modes of cinematic style”.6 Sou grato a Trevisan (2018) por me direcionar a esse exemplo e à obra de Fichte.
image/svg+xml5Desmantelando sistemas de controleentre a realidade brutal e a imaginação desvairada, é uma obra bem próxima do que procuramos conceituar aqui como o “ato de criação queer”. Contudo, embora se passe no Brasil e dialogue diretamente com experiências não-normativas bas-tante características do contexto do país, o trabalho de Fichte é marcado por um aspecto funda-mental, que não pode passar despercebido: ele é a voz de um homem branco e europeu sobre esse universo. Nas suas narrativas, os sujeitos queer brasileiros e latinos – negros gostosos, mulatos vo-luptuosos, morenos insaciáveis – são quase sempre objetos do desejo/prazer do alemão. A voz e a experiência deles são, no melhor dos casos, marginais – no pior, simplesmente ignoradas ou emu-decidas. Uma estrutura que – apesar das intenções originais de teóricas pioneiras como Teresa de Lauretis e Judith Butler de que os estudos queer colocassem gênero e sexualidade em diálogo com questões socioeconômicas, coloniais e raciais – não é nada incomum. Uma das principais críticas à teoria, já no contexto da sua concepção nos anos 1990, é que sua perspectiva era extremamente branca, masculina e norte-americana/europeia. “No imaginário amplamente difundido de homens brancos e aristocráticos à procura de rapazes proletários e/ou latinos, árabes, indianos e africanos, são os primeiros que tendem a ser pensados como queers, não os últimos”7(Dyer, 2002, p. 6). O que a afirmação de Dyer e o exemplo de Fichte deixam claro, porém, é que se existem sujeitos não-brancos despertando esse desejo caucasiano, e correspondendo a esse desejo, é óbvio que há uma comunidade queer abaixo da linha do Equador. Só que, historicamente, suas vozes e suas experiências não tiveram o mesmo espaço, ou a mesma visibilidade e reconhecimento, no cânone da teoria. Mesmo no Brasil, o exemplo de Fichte não é único: quando se fala em cultura ou artistas queer na história do país, muitas vezes o trabalho de estrangeiros que viveram aqui – como o fo-tógrafo francês Pierre Verger ou a poeta norte-americana Elizabeth Bishop – ganha mais legitimi-dade e aclamação que Madame Satã ou Mazzaropi. Um dos principais motivos por trás disso, como aponta o sociólogo porto-riquenho Ramón Gros-foguel (2008), é a concepção equivocada, que persiste ainda hoje, da experiência branca anglo-eu-ropeia como universal – enquanto todo o resto se torna algo de nicho, étnico, exótico, diferente, “diverso”. Isso não acontece só nas artes, sendo perpetuado no pensamento e na produção cien-tífica pela insistência no apagamento do sujeito enunciador por trás dos trabalhos de pesquisa e investigação: Na filosofia e nas ciências ocidentais, aquele que fala está sempre escondido, oculto, apa-gado da análise. A ‘egopolítica do conhecimento’ da filosofia ocidental sempre privilegiou o mito de um ‘Ego’ não situado. O lugar epistêmico étnicorracial/sexual/de gênero e o sujeito enunciador encontram-se, sempre, desvinculados. Ao quebrar a ligação entre o sujeito da enunciação e o lugar epistêmico étnicorracial/sexual/de gênero, a filosofia e as ciências ocidentais conseguem gerar um mito sobre um conhecimento universal Verdadeiro que en-cobre, isto é, que oculta não só aquele que fala como também o lugar epistêmico geopolítico e corpo-político das estruturas de poder/conhecimento colonial, a partir do qual o sujeito se pronuncia (Grosfoguel, 2008, p. 46).O resultado histórico disso é uma estrutura em que alguém (branco, caucasiano, geralmente mas-culino) fala, enquanto outros/as não apenas ouvem, mas são falados por e falados de – um proces-so que a teórica indiana Gayatri Spivak (2010) definiu como “subalternização”. Superar essa lógica 7 Tradução do autor. No original: “In the widespread image of aristocratic and white men pursuing working-class and/or Latin, Arab, Indian and African men, it is the former who tend to be thought of as the queers, not the latter”.
image/svg+xml6Daniel Oliveiranão significa simplesmente “dar voz” a esses sujeitos marginalizados, algo inviável e infrutífero dentro de um sistema corrompido, alicerçado sobre “a imposição de uma episteme que torna a fala do subalterno, de antemão, ‘silenciosa’, vale dizer, desqualificada” (Costa, 2006, p. 12). Para esses indivíduos, nas palavras de Halberstam (2005, p. 35), essa forma institucionalizada de ser e pensar que a civilização ocidental denomina como “democracia é apenas o nome de sua exclu-são”8. Mudar, ou subverter, essas engrenagens implica um esforço de elaborar e promover “outra gramática, outra epistemologia, outras referências que não aquelas que aprendemos a ver como as ‘verdadeiras’ e, até mesmo, as únicas dignas de serem aprendidas e respeitadas” (Pelúcio, 2012, p. 399).Uma parte desse conjunto de esforços e estratégias é o que vem sendo definido no universo acadê-mico das últimas décadas como pensamento decolonial. Segundo seus/uas teóricos/as9, a estru-tura descrita acima – de subalternizantes e subalternizados – é fundada a partir do colonialismo, como período histórico deflagrado pelas invasões europeias a partir de fins do século XV, e da consequente colonialidade, como forma de gestão do poder político, socioeconômico e do conhe-cimento que marginaliza e subordina certos sujeitos e regiões do globo, enquanto eleva outros sujeitos e regiões (Pereira, 2015). Baseada numa perspectiva crítica dessa lógica histórica, a teoria decolonial propõe uma desconstrução da colonialidade e de seus efeitos, partindo do desprendi-mento do aparato que atribui prestígio e sentido à Europa: Noutras palavras, decolonização é uma operação que consiste em se despegar do eurocen-trismo e, no mesmo movimento em que se desprende de sua lógica e de seu aparato, abrir-se a outras experiências, histórias e teorias, abrir-se aos Outros encobertos pela lógica da colo-nialidade – esses Outros tornados menores, abjetos, desqualificados (Pereira, 2015, p. 414).Um bom exemplo dessa atitude de desapego e inversão dos polos de conhecimento e autoridade, no contexto da história de gênero e sexualidade, pode ser encontrado na revisão do processo de colonização portuguesa no Brasil. Grande parte do discurso da colonialidade é alicerçado no argu-mento do chamado “projeto civilizatório”, a ideia de que um conjunto de homens brancos, sábios e evoluídos chegou na América e trouxe a ciência, o progresso e o Estado de direito em resposta à barbárie indígena. Com relação à questão das sexualidades normativas, porém, Trevisan (2018) relata que a existência de relacionamentos entre dois homens ou duas mulheres, ou mesmo de homens que se vestiam e se comportavam como mulheres, e vice-versa, era algo extremamen-te comum – socialmente aceito e naturalizado – em várias tribos no país. O que os portugueses trouxeram, na verdade, é o que chamamos hoje de homo/bi/transfobia: são as ideias do pecado, do errado, do crime e da violência de gênero e de sexo contra esses indivíduos, condenadas pela própria Europa de hoje. No contexto da Contrarreforma e da minoridade de d. Sebastião, em que Portugal era governado pelo inquisidor-geral d. Henrique, o que chega ao Brasil é a violência bru-tal do Santo Ofício contra “crimes” como o “pecado nefando” e a “sodomia” que, num período de aproximadamente 300 anos, processou cerca de 40 mil pessoas, queimou pelo menos 1.800 e con-denou outras 30 mil a punições diversas (Trevisan, 2018, p. 122). O que Portugal traz é a barbárie, não a civilização.8Tradução do autor. No original: “democracy is simply the name of their exclusion”.9A título de exemplo, ver os trabalhos de Castro-Gómez e Grosfoguel (2007), Quintero (2010), Ballestrin (2013) e, no con-texto específico dos estudos fílmicos, Sales, Cunha e Leroux (2019), Sarmet (2014) e Marconi (2021).
image/svg+xml7Desmantelando sistemas de controleAo se impor às sociedades colonizadas esse arcabouço de práticas, cabe às justificativas morais e filosóficas fundamentar o esvaziamento desses povos de si mesmos. Trata-se de lhes ensinar como sua cultura é equivocada, seus afetos são errados, sua sociedade é atra-sada e iletrada, sua religião não tem fé, sua cor é escura demais, seu amor é uma espécie de perversão e, enquanto se mantiverem sendo e parecendo com o que são e parecem, re-presentarão um atraso no progresso humano, ou um lar apropriado para o capeta, ou uma subversão da ordem das coisas (Fernandes, 2017, p. 16).Enquanto isso, indígenas como os Mehináku, habitantes do Alto Xingu, já entendiam e praticavam gênero como performance e prática social, séculos antes de Judith Butler defender a ideia. Além de uma série de rituais em que homens e mulheres se travestiam e adotavam as tarefas do gênero oposto, um dos principais mitos de origem da tribo narrava que: a “casa dos homens” era habitada só por mulheres, que tocavam a flauta sagrada lá dentro. Os homens tomavam conta das crianças, que mamavam em seus peitos, e passavam a maior parte do tempo dentro de casa, enquanto as mulheres plantavam, pescavam e caçavam. Até que um dia os homens se insurgiram e se apossaram das flautas mágicas, trocando os papéis. Tudo isso, segundo Thomas Gregor (1982), evidenciava como as diferenças entre os sexos eram “parcialmente produto da escolha e intenções dos indivíduos”, deixando clara a presença da pessoa “atrás da máscara social”. (Trevisan, 2018, p. 191). Na sequência dessa história (de)colonial, Trevisan narra como a Inquisição fez pouco para impe-dir a chamada “sodomia” no território brasileiro, com indígenas e negros/as recusando-se a sub-meter seus corpos e sexualidades livres à arbitrariedade moralista da cultura europeia – a ideia de que sujeitos queer não foram meramente vítimas da história, mas resistiram por meio da irreve-rência, da desobediência e do prazer. Os portugueses também não resistiram, apenas adicionando a esse caldeirão lascivo o ingrediente da culpa cristã, constituindo até hoje a lógica “carnavalesca” da existência queer brasileira, marcada por uma profunda liberdade e sensualidade dos corpos, indissociável da inerente culpa católica a ser subsumida na Quarta-Feira de Cinzas10. Como conse-quência disso, o Brasil excluiu a “sodomia” da sua lista de crimes e contravenções na elaboração do Código Penal de 1830 que, por sinal, viria a influenciar o Código Penal espanhol e de alguns países da América Latina (Trevisan, 2018, p. 148). Nesse ponto, é importante ressaltar que não se trata de afirmar aqui que a cultura brasileira sem-pre foi extremamente tolerante, ou que violências homo/trans/bifóbicas nunca existiram no país – o que seria uma grande falácia11. Repensar a história nesses termos significa antes questionar de onde vêm essas violências, de onde realmente vêm a civilização e a barbárie, indagando “as hierar-quias naturalizadas do conhecimento, assinalando os silenciamentos e obliterações das teorias do Norte global, fazendo-as falar de outro modo” (Pereira, 2015, p. 429). O que vem a ser exatamente a proposta de uma leitura decolonial dos estudos queer, uma dessas “hierarquias naturalizadas do conhecimento” surgidas acima do Equador. Se o queer é essa atitude epistemológica “perversa, subversiva, impertinente, irreverente, profana, desrespeitosa […] que não se restringe à identi-dade e ao conhecimento sexuais” (Louro, 2004, p. 107) e que pretende repensar, desestabilizar 10Segundo Trevisan (2018, p. 345), “pode-se compreender, a partir daí, que a homossexualidade no Brasil também faz parte da vivência carnavalizada, já pelo fato de beneficiar-se de desvios na estrutura do próprio catolicismo, esse que foi e, em certa medida, continua sendo um dos grandes pilares da vida brasileira, queira-se ou não”.11O Brasil é o país que mais mata pessoas trans e travestis no mundo. Apenas no ano de 2020, foram 161 assassinatos, de um total de 237 mortes violentas entre a população LGBTQIA+. Fonte: https://observatoriomorteseviolenciaslgbtibrasil.org/dossie/mortes-lgbt-2020/. Acesso em 29 nov. 2022
image/svg+xml8Daniel Oliveirae suscitar novas lógicas de corporificação, espaço e tempo para seus sujeitos, seria inconcebível imaginar essas lógicas – presentes e futuras – sem levar em conta todo esse contexto histórico colonial, todas essas formas de violência sobre corpos não-brancos, bem como todas as formas de sobrevivência, resistência e irreverências dos/as donos/as desses corpos. Ou sem considerar que esses modos de perseverança, oposição, gozo, prazer e safadeza, como as práticas e ritos dos Mehináku, por exemplo, também produziram – e produzem – conhecimento, sendo protagonistas ativos e transformadores “das disputas, das negociações e dos conflitos constitutivos das posições que os sujeitos ocupam” (Louro, 2004, p. 49), em seus contextos específicos. Como Pereira (2015) preconiza, nesse encontro de duas linhas de pensamento que propõem cons-tantemente desestabilizar e reconfigurar as relações históricas entre corpo, espaço e tempo, não se trata nem de assimilar e aplicar indistintamente os pressupostos da teoria queer elaborados no Norte global a recortes geográficos diversos, nem de taxativamente rejeitar essas ideias. Mas, sim, de localizar geograficamente e historicizar os conceitos, de enxergar os corpos e sujeitos que os produzem e aos quais se dirigem, decolonizando e queerizando a própria lógica pedagógica do pensamento científico, absorvendo miscigenada e promiscuamente – numa tradição bastante brasileira – aquilo que não só é coerente a cada situação, mas que promove e abre a porta para novas formas de saber e de pensar. “O desafio é ler os textos queer decolonialmente e, da mesma maneira e com a mesma intensidade, queerizar os textos do pensamento decolonial” (Pereira, 2015, p. 428), reinventando e reconstruindo práticas e estratégias científicas por meio dessa orgia intelectual em que o gozo, os gemidos e os urros dos subalternizados são, agora, a voz – perversa, profana, irreverente e prazerosa – que se ouve. É a partir dessa perspectiva de tensionar o queer de um ponto de vista decolonial – não como uma série de estudos que “dê voz” aos marginalizados, mas como uma atitude de questionamento e reconstrução das próprias estruturas que decidem quem tem voz ou não – que vários pesquisadores do Sul global têm deglutido e reconfigurado as ideias da teoria para seus contextos específicos. Leandro Colling (2018), por exemplo, advoga pensar o queer com base numa noção de dissidência sexual – e não de diversidade, termo que, segundo ele, está associado pelo seu uso histórico a uma ideia de assimilação institucional, e não de ocupação ou transformação. O que isso significa, para o pesquisador, é reconhecer – e refletir sobre – o conhecimento gerado, provocado e subvertido por práticas de gênero e sexualidade realmente desviantes. Isso implica sair dos contextos dos gays e das lésbicas assimilados acadêmica ou socialmente e ir ao encontro de novas manifestações culturais que têm realmente promovido o princípio disruptor e mutante inerente ao queer, como no contexto periférico brasileiro descrito por Rocha e Rezende (2019, p. 26):algumas práticas juvenis contemporâneas, especialmente aquelas protagonizadas por jo-vens marginalizados, dissidentes e estigmatizados e que, enfrentando a subalternidade da subalternidade, questionam, invertem e subvertem as lógicas normativas de gênero e se-xualidade. Essa juventude lança luz a outros modos de re-existência, cuja pluralidade de sentidos é viabilizada pela experimentação de corpos em transe e em trânsito, que se apro-priam de e politizam/polinizam narrativas midiáticas, experiências do entretenimento e da cultura pop. Nomes como Linn da Quebrada, Jaloo, Liniker e Johnny Hooker, na música, ou o cineasta Diego Paulino e seu curta Negrum3(2018) são exemplos dessa atual cena cultural periférica que tem construído uma nova narrativa queer no Brasil. Trevisan (2018, p. 519) define a potência dessa ge-ração como uma “poética da desmunhecação”, um “fenômeno que se poderia chamar de transguei
image/svg+xml9Desmantelando sistemas de controleou transviada, levando em conta uma expressividade assumidamente afetada e performática. Sua peculiaridade nasceu de uma escolha pela desmunhecação como estilo de compor, cantar e se ex-pressar”, protagonizado por um grupo de artistas caracterizado por sua “maturidade precoce, com um projeto de música de resistência, sem desprezar a possibilidade de inserção no mercado guei ou não, de farto consumo em festivais, shows, Carnavais ou no YouTube” (Trevisan, 2018, p. 519).Se Colling, Rocha e Rezende partem de uma noção de tensionamento e deslocação geográficos, San-tos (2016) resgata a noção do tempo histórico para argumentar a impossibilidade de pensar gênero e sexualidade no Brasil com base numa concepção genérica de “queer” global, que não leva em conta as citadas violências contra corpos não-brancos e ignora os conhecimentos produzidos por eles. É por isso que, com base na herança sociocultural de indígenas como os Mehináku, ele propõe o uso do termo kuir para identificar os estudos que efetivamente tensionem questões sexuais e pós-identitá-rias a partir dessa consciência histórica e desses conhecimentos e experiências locais.Nessa mesma linha, Pelúcio (2014, p. 79-80) considera que é necessário entendermos que “nossa drag, por exemplo, não é a mesma do capítulo 3 do ‘Problemas de Gênero’ de Judith Butler (2003)”, que a história da nossa homossexualidade não é exatamente aquela narrada por Halperin (1990), que “nosso armário não tem o mesmo ‘formato’ daquele discutido por Eve K. Sedgwick”, e que, portanto, os pressupostos da teoria queer canônica não podem ser automaticamente aplicados ao Sul global. Em resposta a isso, ela propõe pensar as tensões e as disputas específicas que fazem sentido no contexto brasileiro – as provocações, as máculas e as subversões históricas capazes de ressoar e desestabilizar, de reinventar atitudes e modos de enxergar e pensar gênero e sexualida-de – com o mesmo impacto que a reapropriação do termo queerteve no cenário dos EUA do início dos anos 1990, em meio à pandemia da Aids. É com base nisso que a teórica provoca a urgência de elaborarmos uma teoria cu: Falar em uma teoria cu é acima de tudo um exercício antropofágico, de se nutrir dessas contribuições tão impressionantes de pensadoras e pensadores do chamado norte, de pen-sar com elas, mas também de localizar nosso lugar nessa “tradição”, porque acredito que estamos sim contribuindo para gestar esse conjunto farto de conhecimentos sobre corpos, sexualidades, desejos, biopolíticas e geopolíticas também (Pelúcio, 2014, p. 71).É coerente, e curioso, que Pelúcio recorra ao imaginário do icônico movimento antropofágico, paradigmático do modernismo brasileiro, para amparar e descrever seu conceito. Coerente porque esse ato de deglutição do que vem de fora, para regurgitar como algo desbundado e tropicalizado, é algo profundamente nacional, um “gesto canibalesco — tão comum na vida brasileira — de digerir o estrangeiro para garantir uma identidade periclitante” (Trevisan, 2018, p. 295). E porque o próprio termo cu é uma “tentativa de evidenciar nossa antropofagia, a partir da ênfase estrutural entre boca e ânus, entre ânus e produção marginal” (Pelúcio, 2014, p. 85). Mas também curioso porque Oswald de Andrade, líder e grande idealizador do movimento antropofágico, está historicamente associado, pelo menos no que tange a seu contemporâneo Mário de Andrade, a atitudes violenta e inquestionavelmente homofóbicas12.O que não quer dizer que isso diminui a proposta de Pelúcio. Pelo contrário. Como postulado por Pereira (2015), é fundamental também queerizar o decolonial, para além de decolonizar o queer. É necessário queerizar a antropofagia, e o eventual machismo e homofobia de seus inte-12Para mais sobre a contenciosa relação entre Oswald e Mário de Andrade, ver: Trevisan, 2018.
image/svg+xml10Daniel Oliveiragrantes. É exatamente esse ato de enviadar os cânones que nos encaminha à próxima, e última, seção deste artigo. 3. Do direito de enrabar Deleuze e outros encaminhamentosComo delineado na introdução, a investigação deste artigo partiu de uma série de filmes con-temporâneos que coloca em cena personagens queer que processam e reverberam todas essas teorias e esse histórico descritos acima por meio de gestos artístico-criativos de autofabulação. Ao fazerem isso, eles/as não apenas expressam suas subjetividades, mas imaginam, divisam, pro-jetam novas lógicas narrativo-existenciais que superam as limitações heteronormativas de seus contextos específicos, abrindo-se para a possibilidade de novos espaço-tempos. A esse gesto, Silva (2021) dá o nome de “ato de criação queer”. Um conceito emprestado e adaptado – antropofa-gizado, tropicalizado – de um teórico não-queer, Gilles Deleuze. É necessário tratar aqui, ainda que brevemente, do direito, da coerência acadêmica, de propor um conceito dentro dos estudos fílmicos queer a partir de um autor que não se alinha, pelo menos não diretamente, nessa escola de pensamento. Para isso, é necessário recorrer mais uma vez a Paul Preciado (2014, p. 191), quando ele recorda que, apesar de o filósofo francês ser (ao menos publicamente) heterossexual, um dos conceitos basilares de seu pensamento é a “homossexualidade molecular”. No livro “O Anti-Édipo” (Deleuze; Guattari, 2010), Deleuze elabora essa teoria a partir da ideia de que o/a homossexual, um ser “po-linizador”, é dotado/a de uma capacidade criativa de gerar e fecundar conhecimento e história, a partir do cruzamento entre seres que, a princípio, deveria ser estéril. Com base nisso, ele imagina para si, e para outros acadêmicos, esse traço – habilidade, característica, tendência – que ele cha-ma de homossexualidade molecular, de transar intelectualmente com alguém do mesmo sexo, com o intuito de elaborar teorias e produção acadêmica. Como (bem) descrito por Preciado (2014, p. 192), “a molecularidade restringe a homossexualida-de à fecundação, à geração e à criatividade. Nesse sentido, um ato de criação supõe certa “fecunda-ção estéril” entre “autores” do sexo masculino, uma geração inocente, vegetal, mecânica, virginal, mas... anal”. Essa obsessão anal/homossexual de Deleuze viria a aparecer em outros escritos do autor, que chegou a descrever a criação filosófica como uma “inseminação pelas costas”: “conce-bendo a história da filosofia como uma espécie de enrabada (encoulage), ou, o que dá no mesmo, de imaculada concepção. Eu me imaginava chegando pelas costas de um autor e lhe fazendo um filho, que seria seu e, no entanto, seria monstruoso” (Deleuze, 1992, p. 14).Pois bem. Se Deleuze se vê no direito – e ele o tem – de heterossexualizar (ou dessexualizar) a homossexualidade para fins acadêmicos, nada mais justo que se fazer o percurso contrário: que-erizar um conceito não-queer com objetivos igualmente científicos. A inversão/subversão é, in-clusive, coerente e alinhada ao próprio pensamento do filósofo francês. Porque fica bastante claro nessa sua elaboração do conceito de homossexualidade molecular que ele enxerga alguma asso-ciação entre as práticas e sexualidades não-normativas e um ato de criação que não é puramente sexual ou biológico. Ao propor, e investigar, a ideia de um ato de criação queer, o que esse conceito faz é deslocar essa premissa geradora/criativa para o campo das artes. É uma enrabada, para usar o termo dele próprio, honesta e declarada. Silva identifica esse conceito numa série de filmes do Norte global, mas encontrá-lo na arte queer brasileira não é difícil. Há o caso do fluminense Alair Gomes (1921-1992), fotógrafo que realizou,
image/svg+xml11Desmantelando sistemas de controledurante toda a sua carreira, belos registros de corpos masculinos nas praias do Rio de Janeiro. Apesar da beleza e do talento inquestionável de suas imagens, seu trabalho só obteve reconheci-mento após sua morte – o que não é de se estranhar, visto que grande parte da sua obra foi realiza-da no contexto homofóbico e repressor da ditadura civil-militar no Brasil. Mesmo em meio a essa conjuntura pouco ideal, contudo, Gomes não deixou de experienciar o prazer promovido por sua existência e sua arte queer. Ao longo de sua vida, ele manteve diários, escritos em língua inglesa codificada e combinada com abreviação e caracteres gregos por motivos de autopreservação, nos quais descrevia e fabulava, de forma intensamente erótica e prazerosa, a experiência das sessões fotográficas com seus modelos. Em entrevista a Trevisan (2018), Luciana Muniz de Sousa, cura-dora da coleção Alair Gomes na Biblioteca Nacional, explica que esses relatos “estavam repletos de erotização, ali, bem próximos, para serem lidos e relidos, num exercício de repetição intensa do prazer dos encontros, da mesma forma como se deleitava, infinitamente, revendo e revendo as fotografias” (apudTrevisan, 2018, pp. 529-530). Também no cinema esse prazer possibilitado pelo ato de criação queer pode ser identificado. Ape-sar de argentino de nascença, Hector Babenco radicou-se e viveu quase a vida toda no Brasil, e sua trajetória esteve intimamente associada ao cinema do país. Uma de suas obras mais conhecidas, “O Beijo da Mulher Aranha”(1985), adaptado da peça do dramaturgo gay Manuel Puig, também argentino, traz um protagonista profundamente queer, Luis Molina (William Hurt), que, confron-tado pela realidade violenta, opressora e homofóbica de uma cela de cadeia, imagina uma outra existência por meio de memórias e reinvenções dos filmes que ama. Sobre essa estrutura do longa, dividida entre a realidade brutal e o poder da fabulação criativa, reflexo das circunstâncias de Puig no contexto da ditadura argentina, Pontes (2021, p. 146) considera: esta correlação entre a imagem fílmica e a narrativa criativa de Molina representa também um símbolo de resistência do próprio personagem – e, de certa forma, da homossexualida-de que ele encarna, pois, através de seu “voo” imaginário, Molina busca manter-se íntegro e livre para ser o que deseja ser e sonhar, apesar da coerção social que o aprisiona de forma objetiva e subjetiva e o faz sofrer e subsumir. Puig foi um escritor homossexual e que teve que sair da Argentina por conta de sua postura transgressora. Molina, apesar de preso por sua homossexualidade, tenta se “libertar” das grades da prisão através de seu universo de criação imaginária.Ainda assim é importante destacar que, embora potentes e intensamente queers, os dois exemplos acima dialogam com um contexto não-exclusivamente brasileiro: Alair Gomes recorre ao inglês para proteger seus escritos, Babenco e Puig são argentinos e o “Beijo da Mulher Aranha” é uma coprodução do Brasil com os EUA, falada em inglês, com um ator norte-americano e um porto-ri-quenho. É necessário pensar, a partir de um recorte fílmico contemporâneo, como os longas brasileiros atuais propõem lógicas não-normativas de corpo, espaço e tempo diretamente relacionadas ao contexto queer do país: como a transexualidade é retratada como autoinvenção e narrativa em “Lembro mais dos Corvos” (Gustavo Vinagre, 2018). Como o legado histórico brasileiro do desbunde é queerizado em “Tatuagem”(Hilton Lacerda, 2013). Como Leonilson traduz a tragédia e a solidão da epidemia da Aids com seu discurso confessional e suas obras minimalistas em “A Paixão de JL”(Carlos Nader, 2015). Ou como Linn da Quebrada desafia convenções de gênero, de corpo e de sexualidade com um discurso político centrado em um lugar tradicionalmente subalternizado e marginalizado em “Bixa Travesty”(Cláudia Priscilla e Kiko Goifman, 2018).
image/svg+xml12Daniel OliveiraTodos esses filmes são desmunhecados, são desavergonhados e são declarada e abertamente par-te de seus contextos históricos, políticos e geográficos, encarando suas conjunturas por vezes ad-versas, mas propondo lógicas e tensionamentos não-normativos, assumindo seu papel na disputa de narrativas, por meio do ato criativo. São desdobramentos de, e colocam em cena, isso que a contemporaneidade vem chamando de artivismo, um movimento que:partindo de estratégias estéticas, culturais e simbólicas que ampliavam o debate políti-co, novos grupos e coletivos se organizaram para transformar a participação cidadã num fator de experimentação igualmente estética. Ação política e ação artística se tornavam um amálgama explosivo, em ritmo de guerrilha cultural. Mediadas pela tecnologia, vieram eclodindo experimentações que mesclavam linguagens e recursos de expressão criativa (Trevisan, 2018, p. 499-500).Escutar essa geração de artistas, de criadores, que cresceram com discursos e concepções acadêmicas e políticas já bastante consolidadas de sexualidades gays, lésbicas, trans, bi, queer, e que realizam suas obras com isso tudo em mente, é o caminho para buscar entender quais as teorias e propostas – deco-loniais, queer, subalternas, subversivas – esses/as realizadores/as estão construindo com seus proces-sos criativos. É partir do princípio, decolonial, de que eles/as também estão produzindo conhecimento com suas movimentações criativas, também estão desestabilizando e despertando novas lógicas espá-cio-temporais com seus filmes. Considerando que o cinema é constituído basicamente de três vértices – o/a diretor/a, o/a espectador/a, o/a protagonista (e seus olhares) –, cabe pensar em que medida os atos de criação encenados nesses longas queerizam a realidade de cada um deles, extrapolando os limites da diegese fílmica. É um desafio e uma provocação que fica para futuros trabalhos que analisem e investiguem mais a fundo o ato de criação queer em cada um desses filmes. Em suma, é fazer parte de um novo momento dos estudos queer, que Halberstam (2005, p. 163) descreve como uma “geração deixando para trás a divisão entre a teoria queer densamente teórica e psicanalítica, de um lado, e a pesquisa queer estritamente etnográfica, de outro – os novos estu-dos culturais queer se retroalimentam de produções subculturais”13. É com essa noção em mente, de que os gestos e as obras culturais também produzem teoria e conhecimento, e levando em conta que “o cinema poderia ser pensado retroativamente como uma prótese do sonho” (Precia-do, 2014, p. 164), que cabe encerrar nossa reflexão com uma provocação: quais os novos corpos, espaços e tempos que vêm sendo sonhados pelo cinema queer brasileiro contemporâneo?ReferênciasBallestrin, Luciana. América Latina e o giro decolonial.Revista Brasileira de Ciência Política, 11, 89-117, 2013. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S0103-33522013000200004. Acesso em 12 abr. 2023.Butler, Judith. Problemas de Gênero:feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.Castro-Gómez, Santiago; Grosfoguel, Ramón (org.). El giro decolonial: reflexiones para una diversidad epistémica más allá del capitalismo global. Bogotá: Siglo del Hombre, Universidad Central, Instituto de Estudios Sociales Contemporáneos, Pontificia Universidad Javeriana, Instituto Pensar, 2007. 13Tradução do autor. No original: “a generation moving on from the split between densely theoretical queer theory in a psychoanalytic mode, on the one hand, and strictly ethnographic queer research, on the other—new queer cultural studies feeds off of and back into subcultural production”.
image/svg+xml13Desmantelando sistemas de controleColling, Leandro. A emergência dos artivismos das dissidências sexuais e de gêneros no Brasil da atualida-de. Sala Preta, 18(1), 2018, p. 152-167. 2018. Disponível em: https://doi.org/10.11606/issn.2238-3867.v18i1p152-167. Acesso em 05 dez. 2021.Costa, Pedra. Manifesto Cu do Sul. EntreFrestas | Curso Circuito de Arte em Rede. 2018. Disponível em: https://issuu.com/sesc_sorocaba/docs/zine_04_07_-_web. Acesso em 05 dez. 2021.Costa, Sérgio. Desprovincializando a sociologia: a contribuição pós-colonial. Revista brasileira de ciências sociais, 21, 2006, p. 117-134. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S0102-69092006000100007. Aces-so em 13 fev. 2023.Deleuze, Gilles. Conversações. São Paulo: Editora 34, 1992.Deleuze, Gilles. O ato de criação. Conferência na FEMIS. Edição brasileira: Folha de São Paulo [1987]. Trad. José Marcos Macedo. 1999.Deleuze, Gilles; Guattari, Félix. O Anti-Édipo. Tradução de Luiz B. L. Orlandi. São Paulo: Editora 34, 2010.Dyer, Richard. The culture of queers. Londres: Routledge, 2002.Fernandes, Estevão R. “Existe índio gay?”:A colonização das sexualidades indígenas no Brasil. Curitiba: Prismas, 2017.Fichte, Hubert. Ensaio sobre a puberdade. São Paulo: Brasiliense, 1986.Galt, Rosalind; Schoonover, Karl. Os mundos do cinema queer: da estética ao ativismo. Artcultura: Revista de História, Cultura e Arte, 17(30), 2015, p. 97-108. Disponível em: https://dialnet.unirioja.es/servlet/articulo?codigo=8302992. Acesso em 13 fev. 2023. Grosfoguel, Ramón. Para descolonizar os estudos de economia política e os estudos pós-coloniais: transmo-dernidade, pensamento de fronteira e colonialidade global. Revista crítica de ciências sociais, (80), 2008, p. 115-147. Disponível em: https://doi.org/10.4000/rccs.697. Acesso em 13 fev. 2023.Halberstam, Jack. In a Queer Time and Place:transgender bodies, subcultural lives. New York Univer-sity Press, 2005.Halperin, David. One Hundred Years of Homosexuality. Nova York: Routledge, 1990.Louro, Guacira L. Um Corpo estranhoensaios sobre sexualidade e teoria queer. Belo Horizonte: Au-têntica, 2004.Marconi, Dieison. Ensaios sobre autoria queer no cinema brasileiro contemporâneo. Tese (Doutorado em Comunicação) – Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2021, 174f. Disponível em: ht-tps://seloppgcomufmg.com.br/wp-content/uploads/2021/09/Autorias-queer-Selo-PPGCOM-UFMG.pdf. Acesso em 12 abr. 2023.Pelúcio, Larissa. Subalterno quem, cara pálida? Apontamentos às margens sobre pós-colonialismos, femi-nismos e estudos queer. Contemporânea-Revista de Sociologia da UFSCar, 2(2), 2012, p. 395-395. Dispo-nível em: https://www.contemporanea.ufscar.br/index.php/contemporanea/article/view/89. Acesso em 13 fev. 2023.Pelúcio, Larissa. Traduções e torções ou o que se quer dizer quando dizemos queer no Brasil?. Revista Periódicus, 1(1), 2014, p. 68-91. Disponível em: https://periodicos.ufba.br/index.php/revistaperiodicus/article/download/10150/7254. Acesso em 02 dez. 2021.Pereira, Pedro P. G. Queer decolonial: quando as teorias viajam. Contemporânea-Revista de Sociologia da UFSCar, 5(2), 2015, p. 411-411. Disponível em: https://www.contemporanea.ufscar.br/index.php/contem-poranea/article/view/340. Acesso em 132023.Pontes, Carlos F. B. O beijo da mulher aranha (1981/1985) e as identificações e desidentificações pelas quais nos constituímos subjetivamente. Rebeca-Revista Brasileira de Estudos de Cinema e Audiovisual, 10(1), 2021, p. 136-158. Disponível em: https://doi.org/10.22475/rebeca.v10n1.703. Acesso em 13 fev. 2023.Preciado, Paul. Multidões queer: notas para uma política dos ‘anormais’. Revista Estudos Feministas, 19, 2011, p. 11-20. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S0104-026X2011000100002. Acesso em 13 fev. 2023.Preciado, Paul. Manifesto Contrassexual: Práticas subversivas de identidade sexual. Tradução de Maria Paula Gurgel Ribeiro. São Paulo: n-1 Edições, 2014.
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image/svg+xml15Desmantelando sistemas de controleDismantling systems of control: the queer act of creation as resistance in contemporary Brazilian cinemaAbstract: Thinking of a queer cinema means reflecting on how film, using its aesthetic-narrative strategies, can contribute to the antinormative standards of gender and sexuality. Based on a systematic litera-ture review, centered on researchers from the glo-bal South who, from a decolonial perspective, have been processing and reconfiguring queer studies to their specific contexts, this paper investigates the notion that a series of contemporary movies have fulfilled this purpose through the staging of a queer act of creation (Silva, 2021). In order to do this, the analysis elaborates a dialogue between these scho-lars’ provocations, with the intent of inquiring to what extent such an act of creation can be thought within a Brazilian scope. Based on this, it concludes by pointing out, as instigation and prelude to futu-re investigations, contemporary national produc-tions in which it is possible to identify and analyze this artistic gesture of self-fabulation.Keywords: Queer act of creation. Contemporary queer cinema. Brazilian queer cinema.Desmantelando los sistemas de control: el acto de creación queer como resistencia en el cine brasileño contemporáneoResumen: Pensar un cine queer es reflexionar sobre cómo el audiovisual, con sus estrategias estético-narrati-vas, puede contribuir a una propuesta antinormati-va de género y sexualidad. A partir de una revisión sistemática de literatura, centrada en investigado-res/as del Sur global que, desde una perspectiva decolonial, han absorbido y reconfigurado los es-tudios queer para sus contextos específicos, este artículo investiga la noción de que una serie de pe-lículas contemporáneas ha concretado este propó-sito con la puesta en escena de un acto de creación queer (Silva, 2021). Para eso, elabora un diálogo entre las provocaciones de estos/as teóricos/as, con la intención de preguntar hasta qué punto tal acto de creación puede ser pensado en el ámbito brasileño. Concluye señalando, como impulso de futuras investigaciones, producciones nacionales contemporáneas en las que sería posible identifi-car este gesto artístico de autofabulación.Palabras clave: Acto de creación queer. Cine queer contemporáneo. Cine queer brasileño. HISTÓRICO Recebido: Fevereiro/23Parecer: Abril/23Parecer: Abril/23Aceito: Abril/23Revisado Autor: Abril/23Revisão Gramatical/Ortográfica e ABNT: Junho/23Revisado Autor: Junho/23Diagramação: Junho/23Publicado: Junho/23Equipe Editorial Revista TOMO envolvida no processo editorial deste artigoMarina de Souza Sartore (Editora-Chefe)Fabiana Bartira de Souza Brito (Editora assistente júnior)