1
Revista TOMO, São Cristóvão, v. 42, e18221, 2023
DOI: 10.21669/tomo.v42i
Data de Publicação: 10/01/2023
Dossiê: Teorias Críticas Decoloniais
Entrevista
Um pensador das fronteiras:
entrevista com Paulo Henrique Martins1
Bruno Ferreira Freire Andrade Lira 2
Rogério de Souza Medeiros3
Resumo:
Nesta entrevista, concedida em 6 de junho de 2022, com duração de pouco mais de uma hora e meia, via
Google Meet, o intelectual Paulo Henrique Martins compartilha sua trajetória dentro de uma Sociologia na América Latina enquanto um pensador de fronteira. A conversa inicia-se com o professor refletindo sobre
sua mais recente produção, o livro Teoria Crítica da Colonialidade, sendo lançada esse ano uma tradução em inglês. Isso o permite explorar a invisibilidade do processo de colonização dentro da teoria sociológica eu-ropeia e estadunidense, destacando a permanência de uma colonialidade do saber. Ademais, ele faz um ba-lanço crítico da perspectiva decolonial, apontando para limites e possibilidades em torno de teorias sociais latino-americanas anticoloniais. A partir desse arcabouço teórico refinado, Paulo reflete sobre o contexto de crise mundial, em especial o Brasil, dando ênfase também às práticas sociais de (r)existência. Assim, na con-
tinuidade da entrevista, ele relaciona vivamente o percurso de sua produção acadêmica com sua destacada
participação na ALAS, enquanto ex-presidente da associação, juntamente com seus outros projetos, como a
REALIS, a coluna no jornal “O Povo” e o Instituto da América Latina, da UFPE.
Palavras-chaves: América Latina; Colonialidade; Entrevista; Teoria Social; Práticas sociais
IntroduçãoA construção da sociologia latino-americana e caribenha se desenvolve em um intenso fluxo de elaborações teórico-analíticas em que se destacam alguns intelectuais que, no curso de suas car-reiras, influenciaram o seu campo de atuação ao aproximar contextos intelectuais antes aparta-dos. Paulo Henrique Martins, professor titular da Universidade Federal de Pernambuco (PPGS/UFPE), é um desses intelectuais. Tendo realizado o doutorado na destacada Universidade Sor-bonne, na França, e tendo atuado como presidente da Associação Latino-americana de Sociologia
1 Entrevista com o prof. Dr. Paulo Henrique Martins (PPGS/UFPE) realizada em 06 de junho de 2022.
2 Universidade Estadual de Maringa. Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes. Departmaento de Ciencias Sociais. Marin-ga, Paraná, Brasil; Email: bffalira@gmail.com. https://orcid.org/0000-0003-1869-1017.3 Universidade Federal da Paraíba. Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes. Departamento de Ciências Sociais. João Pes-soa, Paraíba, Brasil. Email: medeirosrogerio@hotmail.com. https://orcid.org/0000-0001-6292-4995.
2
Entrevista | Um pensador das fronteiras
(ALAS) entre 2011 e 2013, o autor pode ser considerado um pensador das fronteiras, cujas produ-ções estabelecem um profícuo diálogo entre as teorias do Norte e do Sul. Foi precisamente nesse sentido, aliás, que esse pensador foi se firmando como um precursor do movimento intelectual
pós-colonial crítico que dialoga com a crítica teórica nas ciências sociais, em geral, e com a crítica decolonial, em particular, que tem prosperado na América Latina e Caribe a partir do coletivo Mo-dernidade/Colonialidade (M/C)4. A realização do XX Congresso ALAS na cidade de Recife-PE no ano de 2011, sob a sua coordenação intelectual, consolida a emergência do debate pós-colonial, em geral, e do decolonial, em particu-lar, cuja difusão ficou relativamente marginalizada no Brasil até o advento do ALAS no Recife. A partir de 2011, de fato, a difusão de pesquisas, grupos de estudos e redes de pesquisadores sobre América Latina no Brasil foi incrementada. O modo como o autor se aproxima do debate pós-co-lonial é peculiar. Ele o fez por meio da participação do movimento antiutilitarista (Martins, 2008) na França inspirado nas tradições de Mauss e Polanyi e da aproximação com Alain Caillé funda-
dor do movimento MAUSS5, em 1988, quando desenvolveram uma forte parceria intelectual que permanece até os dias atuais. A partir da crítica mercadológica e ao neoliberalismo ele começou
a se aproximar de um entendimento mais crítico da realidade das fronteiras pós-coloniais que o levou a defender uma tese de doutorado na França em 1991 sobre “O mito do desenvolvimento na
América Latina”. Sua aproximação com os sociólogos latino-americanos se deu na atuação na As-sociação Latino Americana de Sociologia (ALAS), destacado espaço em que pode pensar e teorizar
o tema das fronteiras seja por dentro – a partir da crítica antiutilitarista –, seja por fora – a partir
da crítica pós-colonial de autores como Dussel, Fanon, Quijano e outros. Do ponto de vista temporal pode se dizer que sua participação como coordenador do GT sobre o pensamento latino-americano, a convite de José Vicente Tavares que organizou o XIX Congresso da ALAS em Porto Alegre em 2005, foi relevante para que pudesse articular uma visão antiutilitá-ria e anticolonial das ciências sociais e do significado de um pensamento de fronteiras. Isso marca a diferença de sua crítica teórica com relação à chamada crítica decolonial. Ou seja, por um lado, se a teoria decolonial foi elaborada a partir do M/C com a presença de intelectuais latino-americanos e caribenhos vivendo sobretudo nos Estados Unidos, influenciados por uma matriz teórico-analí-tica diversa, como o pós-estruturalismo de Foucault e de Derrida, a teologia da libertação e o de-
pendentismo marxista. Por outro lado, a crítica desenvolvida por Martins não parte da tradição do pós-estruturalismo, embora dialogue com ele, mas da tradição antiutilitarista francesa herdeira
da fenomenologia política. Assim, o autor constrói uma Teoria Crítica da Colonialidade alicerçada tanto por intelectuais do movimento pós-colonial como pela tradição da filosofia política de Cas-
toriadis, Lefort e da sociologia antiutilitarista de Mauss e Durkheim. Assim, o pensamento anticolonial de Paulo Henrique Martins é eminentemente cosmopolita, bus-cando sempre entender o fenômeno colonial a partir da crítica ao neoliberalismo e da crítica ao colonial, valorizando a experiência intelectual de fronteira. Sua ideia sobre os arquipélagos de
campos de conhecimento de fronteiras, envolvendo movimentos intelectuais na América Latina,
4 Destacado grupo de intelectuais latino-americanos e caribenhos que por meio de eventos, reuniões de trabalho e produ-ções científicas na década de 1990 construíram uma consistente crítica teórica acerca do papel de dominação exercido pelo sistema-mundo moderno/capitalista, assim como da permanência da colonialidade do poder, uma matriz de poder
colonial que marca profundamente a experiência dos povos e lugares que passaram pela experiência histórica de terem sido colônias. Essa matriz, cuja abrangência alcança dimensões globais, seja nas suas origens, seja nas suas consequências, é responsável por desenvolver mecanismos de classificação e hierarquização de grupos sociais em uma relação constitutiva
de superioridade-inferioridade.5 Movimento Antiutilitarista nas Ciências Sociais.
3
Entrevista | Um pensador das fronteiras
mas igualmente na África, na Ásia e na Europa, vai nessa direção. Alguns de seus livros, como “A descolonialidade da América Latina e a heterotopia de uma comunidade de destino solidária” (2012, 2015), “Itinerários do Dom: Teoria e Sentimento” (2019a) e “Teoria Crítica da Decolonia-lidade” (2019b, 2022), são marcos de uma trajetória intelectual consistente, contribuindo para a
construção de um pensamento de fronteira no Brasil e na América Latina.Agradecemos enormemente a disponibilidade de Paulo Henrique em nos conceder esta entrevista e compartilhar com os/as leitores/as deste dossiê suas reflexões, que decorrem de uma longa vi-
vência dentro do campo acadêmico e intelectual, em especial daquele que se desenvolve em torno
da perspectiva pós-colonial crítica.
_______________________________________________________________________________________________________________
Entrevistadores: Há poucas semanas realizou-se o relançamento do seu livro “Teoria Crítica da
Colonialidade” com uma versão em inglês pela Routledge. Como você compreende a crítica da colonialidade, enquanto elaboração teórica, e qual o lugar desse livro no contexto atual?
Paulo Henrique Martins: O livro foi lançado no Brasil em 2019 pelo Ateliê de Humanidades e, ago-
ra, em 2022, saiu uma versão em inglês pela Routledge. A “Teoria Crítica da Colonialidade” se
constrói a partir de três momentos:O primeiro é a partir da Teoria Crítica (TC), que é um projeto de emancipação e de crítica à dominação,
partindo do princípio de que a TC não deve ser vista enquanto um pensamento exclusivo europeu e alemão e ligado à tradição da Escola de Frankfurt. Portanto, a TC não pode ser reduzida simplesmente a uma reação intelectual europeia contra o Iluminismo e que teria sido gerada pela experiência trágica do holocausto na qual milhares de judeus foram exterminados em campos de concentração do nazi-fas-cismo. Na verdade, a relação entre modernização tecnológica e práticas de extermínio de indivíduos é mais complexa e antiga, tendo relação estreita com conflitos étnico-raciais e com o racismo na história ocidental. A crítica da dominação e da busca de emancipação não é algo nascido apenas da frustração dos intelectuais alemães com a experiência do totalitarismo na Europa. Tal crítica à dominação é um fenômeno que sempre esteve presente em diferentes territórios da colonização, tanto no centro como na periferia, expressando as reações afetivas e políticas anticoloniais em várias partes do mundo. A vin-
culação da Teoria Crítica nas ciências sociais ao espanto intelectual gerado pelo genocídio de judeus na Segunda Guerra Mundial deve-se ao fato de que a experiência totalitária atingiu diretamente um grupo étnico pertencente ao segmento colonizador, aquele dos judeus. Como esses financiaram grande parte das navegações marítimas que levaram à colonização de diversos territórios no planeta, o ataque ra-cista contra esse agrupamento no seio da Alemanha, país então considerando exemplo bem-sucedido da modernidade cultural, gerou bastante perplexidade pela violência produzida. Contudo, os campos de concentração e o genocídio sistemático existem desde os primórdios da colonização, seja na África, no Rio de Janeiro, seja em New Orleans (EUA), evidenciados pela mercadorização dos corpos negros e dos povos originários. A crítica da dominação se faz, logo, há vários séculos, a partir de perspectivas di-
ferentes que articulam contraditoriamente metrópoles e fronteiras, centro e periferia. A tese da Teoria Crítica da Colonialidade (TCC) visa exatamente revelar que a reação anticolonial e contra a dominação
do capitalismo predatório é um processo complexo que atravessa diferentes fronteiras na Ásia, na Áfri-
ca, na América e na Europa. Outro ponto de destaque é que a TCC atravessa várias disciplinas, não estando restrita somen-te à sociologia. A literatura e a arte latino-americanas e caribenhas são muito ricas. O realismo
4
Entrevista | Um pensador das fronteiras
fantástico latino-americano é uma manifestação estética primorosa, como vemos na pintura e na literatura de Gabriel Garcia Marques, na Colômbia, e Machado de Assis, no Brasil, por exemplo, revelando utopias libertárias que são próprias da região.Um terceiro ponto a assinalar é o de lembrar como a TCC se manifesta das mais diferentes formas em correspondência com o contexto cultural e histórico em que está inserida. Na Índia, a crítica teórica está relacionada às lutas de independência ante a dominação britânica e dada as suas singularidades socioculturais. Os países do Norte da África já trazem uma outra discussão. Egito, Argélia, Marrocos têm outras particularidades, em especial com relação à dominação francesa. A África do Sul já possui outras questões relacionadas com a presença dos holandeses. A colonização do mundo eslavo pela Rússia é outra história. O problema da dominação e da opressão se apresen-ta de diferentes formas históricas. Na América Latina e Caribe não seria diferente.Em relação ao espaço ocupado pela colonialidade nos últimos 30 ou 40 anos, devemos lembrar dos novos processos de colonização sob a égide do neoliberalismo e que vêm avançando pelos meios digitais e inteligência artificial sobre as subjetividades coletivas. Em paralelo à nova colonialidade que emerge neste século XXI, devemos assinalar como reação o avanço de uma crítica de frontei-ras importante que usufrui das novas tecnologias que possibilitam a circulação da crítica de forma cosmopolita, promovendo uma sociologia mundializada. Nesse sentido, as revistas eletrônicas e
os congressos e atividades virtuais e a formação de redes transnacionais com múltiplos atores e coletivos interagindo de forma dinâmica a partir de diferentes localidades ajudam a emergência
da TCC. Essa não se trata logo de mais uma invenção teórica no vasto campo das ciências sociais.
Mas, diferentemente, o reconhecimento de uma evidência conceitual gerada pela presença de uma
multiplicidade de centros de produção da crítica a nível mundial, que vêm sendo incrementados no século XXI.
Entrevistadores: Na construção da Teoria Sociológica, a centralidade europeia e estadunidense pri-vilegiou debates sobre o capitalismo e a modernidade, mas o colonialismo permaneceu ausente.
Paulo Henrique Martins: De fato, as ciências sociais modernas têm grandes méritos na produção de reflexões sobre a modernização do capitalismo e sobre as lutas sociais nos países do centro do
sistema-mundo ocidental, mas ofereceram pouco até recentemente para se pensar a relação entre capitalismo e colonialidade. Isso se explica em grande parte devido à força do imaginário euro-cêntrico que, por sua vez, reproduziu a revolução estética grega, o humanismo judaico-cristão e o direito romano construído para separar cidadãos e bárbaros. O eurocentrismo oculta um compo-nente patriarcal e étnico-racial muito forte relacionado à representação do humanismo moderno desde Roma. Assim, a omissão sobre o papel da empresa colonial como componente essencial na acumulação capitalista e na invenção da modernidade, como lembra Dussel (1993), parte do prin-cípio de que outras civilizações e culturas não europeias teriam apenas uma existência funcional e ultrapassada historicamente com relação à modernização europeia, vista como centro de produ-ção cultural e espiritual do mundo. Nessa perspectiva, o branco faria parte de uma história supe-rior no desenvolvimento da humanidade e os árabes, negros e povos originários seriam reflexos de um mundo inferior. Daí que as ciências sociais e a sociologia, em particular, vão valorizar a mo-dernização industrial e urbana e não os modos de sociabilidade e comunidades de outras culturas vistas como secundárias. Esse imaginário racista não nasceu por acaso, mas está relacionado com
a experiência cultural romana como dissemos acima. A ideia do homo sacer explorada por Agam-ben (2010) ajuda a entender que em Roma existiam indivíduos que eram honrados por riquezas
5
Entrevista | Um pensador das fronteiras
e origens familiares e étnicas, e havia indivíduos que eram “matáveis” e que podiam ser encarce-rados em campos de concentração. Tanto Agamben como também Roberto Esposito explicam, de
modo convincente, que havia três categorias de indivíduos: havia os cidadãos romanos que eram vistos como pessoas humanas, havia as semipessoas que eram escravizados libertos e, por fim, havia outros indivíduos que não eram reconhecidos como humanos, mas, sim, enquanto objetos (escravizados e grupos étnicos submetidos). Essa construção discursiva romana se reproduz com o Renascimento e vai atualizar a divisão étnico-racial entre civilizados e bárbaros nos tempos modernos justificando a violência colonial planetária. Aqui o direito germânico, a jurisprudência francesa e o mercantilismo britânico vão legitimar essa distinção entre os reconhecidos cidadãos e aqueles selvagens, não humanos. O projeto ideológico da colonização planetária justificou a ne-cessidade de domesticar e embranquecer os bárbaros para assegurar a expansão do capitalismo colonial. A ideia da racionalização da modernidade é também uma ideia de embranquecimento desses não humanos, não sendo um discurso neutro que estaria relacionado à modernização tec-nológica; a racionalização moderna e científica se funda também num projeto colonial assentado numa reprodução de domínio étnico-racial. A tradição cristã também foi atualizada pelo império romano e posteriormente pelos reis europeus para justificar a superioridade espiritual da Europa sobre outros territórios. O cristianismo foi atualizado enquanto uma religião racionalmente supe-rior a qualquer outra. Assim, na colonização, os que não eram cristãos eram vistos como pagãos, o que significava dizer indivíduos sem almas e matáveis. Não possuindo alma e religião, aqueles
indivíduos não cristãos não podiam ser cidadãos como “direito natural”, sendo a eles imputada a condição de não humanos. O desenvolvimento das ciências sociais está inserido nesse contexto de uma reprodução do racismo à nível mundial. Por isso, a crítica da colonialidade do saber que realizamos a partir de uma fronteira cosmopolita aparece como um desafio fundamental para liberar saberes negligenciados ou, como diz Boaventura Santos (2008), uma sociologia das ausên-cias e uma sociologia das emergências ou uma nova ecologia dos saberes. A desconstrução crítica do imperialismo europeu que é objeto estratégico da crítica decolonial é, logo, insuficiente para subsidiar uma crítica mais ampla do imperialismo do século XX e do século XXI. A Teoria Crítica da Colonialidade deve logo dar conta do tema da colonização econômica da periferia pelo centro, mas precisa igualmente considerar a relevância do racismo na organização das ordens econômicas,
sociais e políticas entre centro e periferia e no interior das sociedades nacionais periféricas. Re-conhecemos que a colonialidade do saber, ressaltada por Aníbal Quijano (2010), possibilita des-vendar uma hierarquia de saberes que separa autores nascidos nas áreas centrais e industriais e autores nascidos nas antigas áreas coloniais e que, por isso, não teriam o mesmo status na hierar-quia do reconhecimento acadêmico e institucional. Franz Fanon (2008) é um exemplo bem carac-terístico do preconceito contra intelectuais nascidos na periferia colonial. Embora fosse cidadão francês e intelectual brilhante, ele era objeto de preconceitos devido a sua origem caribenha e sua
cor de pele, sendo não visto como pessoa, mas, sim, uma semipessoa. Todavia, o local de fronteira colonial, que não é apenas geográfico, mas que atravessa o fenótipo e o simbólico, contribuiu para que Fanon desenvolvesse um brilhante entendimento da condição colonial a partir de uma crítica cultural, marxista e psicanalítica refinada. Ele desenvolveu profunda reflexão sobre a relação psi-copatológica entre colonizado e colonizador, sobre a colonialidade do ser, explicando como o colo-nizado introjeta a imagem do colonizador por meio da imputação consentida de uma condição de inferioridade racial. Em relação ao Brasil, podemos dizer que grande parte das classes dirigentes, que são mestiças, incorpora o imaginário do colonizador reproduzindo o racismo colonial e es-trutural no interior da vida social. Elites mestiças se vestindo como brancos, como colonizadores periféricos, que buscam reproduzir os hábitos do colonizador. Mas esse tipo de colonialidade do ser também está presente no mundo acadêmico. Ainda hoje muitos intelectuais do centro conti-
6
Entrevista | Um pensador das fronteiras
nuam a reproduzir a ideologia da superioridade histórica e racial europeia, de que haveria saberes mais legítimos validados pela pureza étnica dos europeus. O campo intelectual na América Latina e Brasil ainda permanece prisioneiro desse imaginário colonial. Ainda há muita resistência para
discutir a questão colonial.
Entrevistadores: Pelo visto a Teoria Crítica da Colonialidade possibilita a construção de espaços de (r)existências cosmopolitas. Como você tem refletido o pensamento decolonial e os giros decolo-
niais neste contexto de uma crítica teórica que supera os perigos do etnocentrismo latino-ameri-cano?
Paulo Henrique Martins: Essa é uma questão real que deve ser salientada. Na medida em que o pensamento decolonial inspirado pelo giro linguístico europeu e sobretudo francês buscou apa-
recer como sendo a expressão da emergência de uma episteme propriamente latino-americana, observamos, como resultado, não uma inovação teórica, mas apenas o surgimento de um pen-
samento latino-americanocêntrico ingênuo. Porque a condição para esse pensamento decolonial aparecer como original apenas é possível se encobrirmos sua filiação epistemológica às teses pós--estruturalistas francesas que chegaram à América Latina via intelectuais latino-americanos resi-
dindo nos Estados Unidos. Por outro lado, a Crítica Teórica de Fronteiras exige que seja superada a simplificação da leitura racionalista geométrica e linear do Iluminismo europeu para se abrir para uma perspectiva estética que incorpora a inteligência afetiva na mobilização de energias políticas anticoloniais. Algo próprio da América Latina e Caribe é o sentimento anticolonial, presente na formação do pensamento regional de dois séculos para cá, no pós-independência. Diferente das antigas colônias da África, por exemplo, que apenas se libertam em meados do século XX, os pro-cessos de independência na América Latina e Caribe remetem ao século XIX. Então a experiência colonial, aqui, conhece diferentes fases que marcam a formação do Estado nacional, a moderniza-ção industrial e urbana, a formação da burocracia e da burguesia modernizadora anticolonial. A
formação de um Estado desenvolvimentista nos moldes fundado na região no pós-guerra revela ações políticas práticas de geração de um movimento político emancipador dentro da lógica de modernização do capitalismo na periferia do sistema mundial. A crise do desenvolvimentismo, por outro lado, abriu novos espaços de reflexão sobre a modernização conservadora e o pensa-mento decolonial surge nesse deslocamento de percepção sobre as fronteiras do capitalismo co-lonial. Há na nossa tradição histórica movimentos pós-coloniais importantes como aqueles do Estruturalismo Cepalino, da Teologia da Libertação, da Teoria da Dependência, da Teoria do Co-lonialismo Interno, entre outros. Contudo, todas essas reflexões críticas permanecem dentro do escopo da Teoria da Modernização. Toda a luta anticolonial considera a modernização capitalista, a transformação via industrialização e o mercado de trabalho e o imaginário da modernidade
capitalista. O deslocamento de um pensamento pós-colonial fundado na ideologia do progresso,
como é exemplo o cepalino, para um outro pensamento que desloca a representação monocultural do desenvolvimento capitalista, que valoriza novos imaginários, saberes e o pluralismo cultural
e epistemológico, constitui um avanço importante da crítica de fronteira. Esse deslocamento de perspectivas contribuiu para aprofundar deslocamentos anteriores gerados pelos movimentos feministas, negros, camponeses e indígenas e atualizados por novos movimentos urbanos e cos-mopolitas. O deslocamento produzido pela crítica pós-moderna ao eurocentrismo foi reforçado pelo pensamento decolonial de fronteiras na América Latina e Caribe, mas não somente. Há que se considerar as contribuições das teses feministas e ambientalistas e as novas teorizações sobre colonialidades internas e externas geradas pelas mutações do imperialismo. Para a construção de
7
Entrevista | Um pensador das fronteiras
outros caminhos, é preciso destacar, já a partir da década de 1970, sobretudo na França, as teses de desconstrução da modernidade encabeçadas pelas teorias pós-modernas e, em seguida, pelas teses pós-estruturalistas. Essas teses vão influir enormemente no desenvolvimento da crítica cul-tural nos Estados Unidos, sobretudo por meio de nomes como Foucault e Derrida, e vão rebater também nos chamados críticos decoloniais como Mignolo, Grosfoguel, Walsh e outros. Elas ajuda-
ram a desconstruir a ideia do eurocentrismo, pontuando o fato de que a modernidade não é uma narrativa única, mas que existem várias narrativas de modernidades, como assinalou Dussel e Shmuel Eisenstadt (2002). Vale registrar a notável contribuição de Edward Said, ativista político palestino-estadunidense, e professor de Universidade de Columbia, que, inspirado também em Foucault, demonstrou ainda nos anos 1970 como o orientalismo constitui uma representação ide-ológica construída pelo Ocidente para justificar sua superioridade cultural. Depois disso, vemos o resgate de Frantz Fanon com sua leitura crítica sofisticada sobre a colonização francesa. Também devemos lembrar o nome de Albert Memmi, esse pensador tunisiano que desenvolveu, dentro do império francês, uma crítica sofisticada da colonização. Surgem autores antilhanos importantes, outros asiáticos, na Índia, sobretudo, representada por nomes como Chaterjee, Spivak, Guha e ou-tros. Na América Latina, a crítica pós-colonial tem longa data devendo ser lembrado nomes como Paulo Freire, Fals Borda e Gustavo Gutierrez. Porém, a crítica decolonial na América Latina que surge nos anos 1990, por sua vez, se benefi-
cia diretamente dos avanços das teorias da linguagem e do discurso de autores como Foucault e
Derrida. Mas elas apresentam limites concretos para explicar a experiência real da colonialidade na medida em que ficam muito limitadas à desconstrução discursiva. Pois no mundo da vida, dos conflitos, das alianças e dos dispositivos de poder existentes na vida local e no interior do aparelho estatal há uma série de outros eventos e experiências que escapa da linguagem escrita e estrutura-da e do método desconstrucionista. Por isso, no meu livro (Martins, 2019b) eu chamo atenção de que não há uma ruptura epistêmica entre as teorias do centro e da periferia. Houve deslocamentos
de perspectivas. Então, no momento em que os europeus entendem que o deslocamento do pen-samento é inevitável, a crítica ao racismo começa a se fazer também no centro e nas fronteiras. Se
aceitarmos ter havido o deslocamento da perspectiva analítica na crítica da dominação do centro para a periferia e dessa para o centro, entendemos como as áreas das fronteiras começam a se
mover. Nos Estados Unidos, a crítica de inspiração linguística começou a se mover muito forte-mente nos departamentos de literatura, inspirados, por sua vez, no movimento que emergiu na Índia do início dos anos 1990 por meio de autores como Spivak. Muita gente da crítica teórica vai se mover no início dos anos 1990, a partir de Foucault e Derrida. Assim, o Grupo Modernidade/Colonialidade reverbera a crítica do começo dos anos 1990 nos Estados Unidos, sobretudo aquilo que estava ligado à semiologia, à literatura, em um movimento bem transversal, inclusive atuali-zando o marxismo. É o caso de Quijano. A crítica teórica latino-americana foi muito influenciada pelas lutas contra o racismo, em tentativas de associar a teoria das classes sociais à crítica étni-co-racial. É aqui que o pensamento decolonial se move na década de 1990 sob forte influência da literatura, da história e da linguística. A sociologia esteve menos presente no debate decolonial, do final dos anos 1990 até agora, sendo mais marcante as abordagens discursiva, literária e histórica. O problema é que essa crítica não compreendeu a nova colonialidade que se manifestou a partir dos Estados Unidos desde a Segunda Guerra Mundial, que já não está mais ligada àquela ideia dos
imperialismos inglês e francês. Então, desde as últimas décadas, é um outro tipo de colonialidade que se exerce sobre as subjetividades, especialmente sobre o campo dos desejos, baseado em uma cultura do consumo, que se estabelece não apenas nas periferias, mas também no centro. Mas essa nova colonialidade vai ser a base de outras práticas de consumo e de mimetismo gerando
8
Entrevista | Um pensador das fronteiras
corrupção da burocracia modernizadora, corrompendo o Estado nacional no centro e na periferia e as antigas burguesias nacionalistas. Esse é um elemento que a crítica decolonial não deu conta, ou seja, de que houve o surgimento de novos dispositivos de colonialidade que escapam à crítica linguística, exigindo um aprofundamento dos conflitos gerados pela robotização do mundo. Isso
vem acontecendo em todos os lugares, no centro e na periferia. No Brasil, as elites se corromperam completamente a partir de um novo mecanismo de colonialidade, o da domesticação das subjeti-
vidades com vista a legitimar a cultura do consumo e as ideologias populistas. Essa nova coloniali-
dade se espalha nas classes populares a partir da atuação das igrejas neopentecostais e pela mídia na colonização das subjetividades coletivas, na promoção do desejo do colonizado de acessar o padrão de consumo do colonizador. Isso passou a ser um fator de alienação das populações mais pobres, desassistidas. Assim, a crítica decolonial não dá conta da nova colonialidade, que atravessa as subjetividades coletivas, aliena as massas e as classes médias pelas novas tecnologias digitais. É o neoliberalismo, como nova cultura do capitalismo, se manifestando, e a crítica intelectual se limitando à crítica discursiva sem saber como fazer a crítica ao agronegócio, às grandes empresas de mineração e seu modelo predatório de exploração dos recursos naturais e do meio ambiente. Então, a crítica decolonial se tornou uma crítica erudita, escolástica, tomando como foco a crítica do imperialismo do século XIX, sem considerar as mutações da lógica imperialista no século XX. A crítica decolonial precisa se atualizar, logo, de modo a superar os limites do desconstrucionismo para se abrir a uma compreensão mais aprofundada dos novos conflitos e utopias que se dese-nham nos horizontes da vida em geral, muito além do que o pensamento acadêmico pode supor. O momento exige um novo movimento teórico que articule os novos espaços de sociabilidade e de
vivência da política e entendo que a Teoria Crítica da Colonialidade, articulando diversos campos de saberes no Norte e no Sul, vem emergindo como o momento cosmopolita da teoria crítica. É preciso retomar a crítica da dominação, retomar os modos práticos de valorização da liberdade e da igualdade, assumindo a colonialidade como ela se apresenta no século XXI na América Latina. Outra questão fundamental é como reconstruir as práticas. Não basta você desconstruir o discur-so, você precisa reconstruir as práticas pelos movimentos sociais e pela capacidade coletiva de repensar a utopia democrática.
Entrevistadores: Nessa dialética entre continuidades, reproduções, rupturas e desconstruções dos
sentidos da colonialidade, como relacionar a pluralidade das teorias críticas com a produção de práticas de (r)existências a partir do lugar que o colonizado ocupa, esse locus fraturado.
Paulo Henrique: Eu acho que a situação é muito dramática porque as novas tecnologias como dis-positivos de colonialidade estão muito autonomizadas, favorecendo um modelo de expansão do capitalismo técnico que se sensibiliza mais com os temas das ficções científicas que da fome e da
miséria entre humanos. O fato é que a utopia tecnológica prega a autonomia racional dos sistemas robóticos com relação aos humanos para ampliar a performance técnica e a inteligência artificial passa a reproduzir a colonialidade em novos modos de dominação das subjetividades coletivas.
Os celulares, a televisão, os satélites que atravessam o cosmos visam criar esse clima futurista que reproduz a colonialidade digital. Vende-se uma ficção tecnológica como sendo uma emancipação
das massas. Mas se trata de uma nova ideologia, ilusória, estimulada para favorecer o novo capita-lismo em detrimento das políticas públicas que eram o cerne dos Estados nacionais; como se não precisássemos mais dessas políticas, mas tão somente de alimentar essa ficção tecnológica. E essa ficção esconde um problema fundamental, que é o aumento das desigualdades socioeconômicas que reproduzem o racismo colonial. Os ricos estão cada vez mais ricos e os pobres estão cada vez
9
Entrevista | Um pensador das fronteiras
mais pobres. Então, o problema básico da exploração econômica que Marx já observava no século XIX continua presente. O que muda são os agentes e os modos de desenvolvimento das lutas pelo controle das forças produtivas. Agora, o controle dos recursos ecológicos como água e minerais se torna objeto de grandes disputas. A distância entre os mais ricos e os mais pobres se amplia, atu-alizando as distâncias racistas e imperiais entre pessoas, semipessoas e coisas. As subjetividades coletivas são sequestradas por discursos populistas e fascistas que buscam demolir os modelos democráticos para erigir sistemas tecnocráticos. É necessário fazer a crítica da nova colonialidade (digital) e tentar encontrar por onde se reelabora o processo de construção das práticas emanci-patórias. Uma das possibilidades é a reconstrução dos territórios locais e translocais pelos quais se pode resgatar a experiência real do viver e do fazer juntos. Isso significa o desafio político de
superação do paradigma da dor e do medo para promover um paradigma da solidariedade e da liberdade. No meu entender está ocorrendo, logo, uma repaginação histórica muito importante neste momento, como se o planeta estivesse conhecendo um novo parto que se impõe devido ao processo predador dessas lógicas imperiais e coloniais em vários lugares do planeta. Eu acho que
o formato dos Estados nacionais vai ser completamente revisto de modo a permitir modelos par-ticipativos mais complexos e capazes de canalizar as novas demandas por liberdade. O problema é saber como conter o fascismo nesse processo de formação de cultura de massificação de consu-mos para liberar os movimentos de individuação social. Arturo Escobar (2008), na sua discussão sobre o Pacífico Colombiano, defende que temos que revalorizar o conceito de lugar, visto não mais como mera localidade geográfica, mas como um espaço de organização de redes de resistência, envolvendo múltiplos atores e implementando práticas e produzindo políticas públicas. Ou seja, as reações contra o modelo de vida utilitarista e performático gerado pelo neoliberalismo passa pelo retorno à experiência direta e essa somente se realiza por redes comunitárias de pertenci-mento ou de destino que processam os recursos simbólicos, afetivos e técnicos coletivos. Por isso, a importância de considerar as práticas criativas surgidas a partir do local. Pensar a construção de
comunidades cosmopolitas que rearticulem as tecnologias digitais e as experiências existenciais
para reconstrução dos laços societais e políticos. Ou seja, entender o pós-desenvolvimento como um modelo possível para reelaborar a ação estatal na organização da vida coletiva no território singular da nação, buscando considerar um sentido amplo de natureza e espaços de reconstrução de um outro tipo de humanidade baseado na solidariedade. Pensar em um outro tipo de humani-dade possibilita emergir as utopias do convivialismo e do bien vivir, discutidas em no meu livro
“Teoria Crítica da Colonialidade”, ajuda a destacar elementos concretos de r-existência no centro e na periferia em curso que apontam para novas bases epistemológicas e políticas. É preciso identi-ficar elementos concretos de onde está havendo uma busca de reorganização de uma resistência
anticapitalista, seja na fronteira, seja no centro. A crítica intelectual acadêmica precisa se reciclar rapidamente. Ela ainda se encontra presa a uma crítica do discurso e falta uma maior reflexão sobre as práticas sociais e sua relação com o poder com vista à reconstrução de processos eman-
cipatórios na política e na vida comum.
Entrevistadores: A partir dos conteúdos traçados por você até aqui, como compreendes essa crise total no Brasil? Como buscar a (r)existência, a reconstrução de práticas e de lugares?
Paulo Henrique: Temos que fazer um diagnóstico de época que procure dar conta da encruzilhada do momento brasileiro e mundial. Por um lado, a falência das ideologias modernas, por outro, a emergência de um capitalismo tecnológico predatório que desfaz as representações do humano. O que se passa no Brasil reflete, logo, o que se passa na América Latina e no mundo. A passagem
10
Entrevista | Um pensador das fronteiras
do projeto liberal-desenvolvimentista para o projeto anárquico-neoliberal é muito contundente. O primeiro se fundava na valorização da modernização urbana e na formação do cidadão consu-midor a partir da intervenção estatal. Havia ali o público e o privado, em que as políticas públicas eram valorizadas como mecanismos de inclusão social, em que o privado cultivava a valorização da esfera do público como espaço de exercício de uma cidadania de direitos. O que acontece com o anarconeoliberalismo é a desvalorização da esfera pública como espaço da formação da cidada-nia e da liberdade e a valorização do projeto de mercantilização ampliada de bens simbólicos e materiais. Passa-se a valorizar a liberdade e a cidadania por espaços privados que visam eliminar o sentido do espaço público. Isso é exemplificado pelo SUS, que está estigmatizado como sendo representativo de um serviço e um lugar para pessoas pobres, para semipessoas. A estigmatização do SUS pela lógica utilitarista leva ao desejo impossível dos mais pobres de desejar, sem poder, a aquisição de um plano privado de saúde. Para ser respeitado e valorizado como branco você pre-cisa estar na esfera privada e ter um plano de saúde privado. O mote neoliberal é: trabalhe mais e consuma mais para ser reconhecido como parte da esfera privada, do palácio do consumo. Isso gera uma esquizofrenia. Pessoas que jamais vão poder pagar um plano de saúde, ou jamais vão poder pagar uma escola privada, defendendo o fim do sistema público de saúde e de educação. Há
uma irracionalidade nesse esquema que só se explica por essa questão da colonialidade, por essa hierarquia colonial que afirma que a esfera pública é ruim e estigmatizante por reforçar o lugar da semipessoa; e, no lado contrário, a esfera privada seria boa e teria a ver com a pessoa. Isso está vinculado às formas de hierarquia e classificação coloniais que promovem um abandono do corpo
psíquico e existencial como espaço para a formação de uma consciência crítica da realidade. A
negação da autonomia criativa e crítica favorece a produção do fascismo, a corrupção de valores, o consumo ostensivo e a perda de solidariedade. Portanto, é necessário elaborar tanto um novo mo-delo teórico quanto um novo ativismo, que deem conta da reconstrução das políticas públicas em favor de esferas comunitárias mais ativas e mais libertárias. Eu vejo que a eleição do ex-presidente Lula, pela experiência que ele tem de vida, está associada ao resgate das lógicas das políticas pú-blicas democratizantes. E isso passa também pela reconstrução da universidade pública, que vem sendo fragilizada enquanto lugar de produção do pensamento crítico. Nesse ponto é importante lembrar que a complexidade do sistema universitário brasileiro, público e privado, constitui um trunfo para se pensar estratégias de reconstrução das políticas públicas e associativas. O Brasil tem um sistema acadêmico muito amplo. Só na sociologia são mais de 50 programas de pós-gradu-ação, uma massa crítica considerável, mas que não está encontrando o caminho de reelaboração da crítica pós-colonial e decolonial; porque ainda está pensando o mundo do século XX e ainda não entendeu a colonialidade do século XXI. É necessário continuar resistindo e reconstruir as práticas e lugares, no intuito de fortalecer os laços afetivos e a solidariedade social que são necessários para a vida democrática complexa.
Entrevistadores: Diante de tudo que já foi discutido até aqui, como você vê a importância da ALAS6 no contexto atual?
Paulo Henrique: A ALAS foi fundada em paralelo à ISA7, no final dos anos 1940. A ALAS foi a pri-meira associação continental de sociologia. Isso significou a primeira a pensar a sociologia em
uma perspectiva transnacional, e não só nacional. Então, tem essa característica na sociologia la-
6 Associação Latino-Americana de Sociologia.7 International Sociological Association
11
Entrevista | Um pensador das fronteiras
tino-americana, em que intelectuais estão pensando a América Latina, para além do nacionalismo metodológico, que limita a compreensão do mundo à esfera administrativa nacional. No Brasil são vários pensadores/as que tiveram uma visão ampla da região, como Gilberto Freyre, Darcy Ribei-ro, Florestan Fernandes. E isso é uma coisa formidável. Os sociólogos estadunidenses pensam o
mundo a partir dos Estados Unidos, os europeus pensam o mundo a partir da Europa, assim como
o francês pensa o mundo a partir da França, o alemão pensa o mundo a partir da cultura alemã, e assim por diante. Somos assim pensadores de fronteira, mais cosmopolitas, possibilitando pensar o fora e o dentro com mais facilidade, com uma capacidade de diálogo mais intenso, na perspectiva da fronteira. As novas plataformas e as revistas eletrônicas possibilitaram à ALAS ampliar as fron-teiras de interação, inserindo-se mais fortemente na ISA, assim como a ALAS tem trazido outros importantes intelectuais de fora da região, não apenas em grandes seminários, mas também em congressos intermediários. Todavia, a barreira continua sendo o idioma, visto que o inglês perma-
nece enquanto ferramenta hegemônica na construção de um pensamento transnacional.
Entrevistadores: Fale um pouco mais sobre seus projetos mais recentes.
Paulo Henrique: O primeiro destaque, decorrente do XX Congresso ALAS em Recife-PE, foi a cria-ção do Instituto da América Latina na Universidade Federal de Pernambuco. A partir desse ins-
tituto outros foram criados, como o da Ásia, o da África e o do Futuro. Hoje todos se reúnem no Centro de Estudos Avançados da UFPE, que tem possibilitado a construção de eventos mais ou-sados, transdisciplinares, embora, é claro, ainda existem algumas limitações a serem enfrentadas em termos de se avançar com a construção de redes científicas cosmopolitas. Ainda é necessário
alcançar uma maior autonomia, seja em relação a recursos, seja na formação de parcerias inter-
nacionais. Outro projeto em curso é o da revista REALIS8, criada em 2011, enquanto um espaço de
fortalecimento desse pensamento crítico de fronteira. Aqui destaco os próximos números a serem lançados, um sobre metodologias pós-coloniais na América Latina, outro sobre economia da co-munhão e outro sobre Darcy Ribeiro e a questão colonial. Infelizmente, a falta de apoio a recursos financeiros e humanos é uma dificuldade permanente. Assim, ampliar a internacionalização da universidade é um grande desafio quando se pensa em atualizá-la mantendo o que já existe nela, todo o aparato técnico e intelectual; atualizando-a com novos espaços de diálogo, em especial para os pensamentos de fronteiras. Por fim, tenho atuado como articulista mensal no jornal O Povo, de Fortaleza, Ceará, desde 2017, e que certamente constitui o veículo de imprensa escrita
mais interessante no Nordeste do Brasil. A experiência forjada entre o jornalismo e a academia é
interessante por articular conjuntura e estrutura. Minha experiência como articulista da imprensa
escrita constitui uma oportunidade ímpar de conciliar a intuição de conjuntura do jornalismo com um debate de qualidade acadêmica. Os diretores do jornal perguntaram no momento em que me convidaram: “Você é capaz de fazer uma crítica acadêmica articulada com a conjuntura no espaço de dois mil caracteres?” Foi um desafio e aceitei. É o desafio de aliar a construção do trabalho inte-lectual acadêmico com a intervenção na imprensa no imaginário do grande público. É um trabalho de construção de aforismos. São possibilidades para exprimir mediante conceitos substantivos realidades complexas que exigiriam, sob outras condições, mais páginas. O uso de aforismas pode ser importante para levar a escrita acadêmica a ser menos adjetivada e mais substantivada. A atual realidade convida a essa objetivação com olhar no furacão da conjuntura. Essa experiência de escrita se abre para um tipo de linguagem interessante para ressignificar a nossa intervenção
8 Revista de Estudos AntiUtilitaristas e PosColoniais localizada institucionalmente na UFPE.
12
Entrevista | Um pensador das fronteiras
acadêmica. O feedback tem sido muito importante, com muitas mensagens de diferentes agentes
da sociedade civil.
Entrevistadores: Paulo, muito obrigado pela sua disponibilidade em aceitar nos conceder esta en-trevista. É uma contribuição valiosa para este dossiê.
Referências Agambe, Giorgio. Homo sacer - O poder soberano e a vida nua I. 2ª ed. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010.
Dussel, Enrique. 1492 A origem do mito da modernidade. O encobrimento do outro. Petrópolis: Vozes, 1993.Escobar, Arturo. Territories of difference. Place, mouvements, life, redes. Duhram and London: Duke University Press, 2008.
Eisenstadt, Shmuel. Multiples modernities, London: Transaction Publishers, 2002.Fanon, Frantz. Peles negras, máscaras brancas. Salvador: EdUFBA, 2008.Martins, Paulo Henrique. De Lévi-Strauss a M.A.U.S.S. - Movimento antiutilitarista nas ciências sociais: itinerários do
dom. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 23, n. 66, 2008, p. 105-130.
Martins, Paulo Henrique. A decolonialidade da América Latina e a heterotopia de uma comunidade de destino
solidária. 1. ed. São Paulo: Annablume, v. 1, 2015, 204p.
Martins, Paulo Henrique. Itinerários do Dom: teoria e sentimento. 1. ed. Rio de Janeiro: Ateliê de Humanidades, 2019a, 305p.
Martins, Paulo Henrique. Teoria Crítica da Colonialidade. 1. Ed. Rio de Janeiro: Ateliê de Humanidades, 2019b, 330p.
Martins, Paulo Henrique. Critical Theory of Coloniality. London: Routledge, 2022.Quijano, Aníbal. Colonialidade do Poder e classificação social. In: Santos, B. de S.; Meneses, M. P. (orgs.). Epistemologias
do Sul. São Paulo: Cortez, 2010, p. 84-130.
Santos, B. S. A gramática do tempo - Para uma nova cultura política. São Paulo: Cortez Editora, 2008.
13
Entrevista | Um pensador das fronteiras
An intellectual from the frontiers: an
interview with Paulo Henrique Martins
Resume In this interview, conducted on June 6, 2022, which
lasted around an hour and a half, via Google Meet,
the social thinker Paulo Henrique Martins shares his trajectory within Sociology in Latin America as a frontier thinker. The conversation begins with him reflecting on his most recent book, the The-ory of Coloniality, with an English translation to be released this year. This allows him to explore the invisibility of the colonization process within European and US sociological theory, highlighting the permanence of a coloniality of knowledge.
Furthermore, he makes a critical assessment of
the decolonial perspective, pointing to limits and possibilities around anti-colonial Latin American social theories. Based on this refined theoretical framework, Martins shares his thoughts on the context of the world crisis, especially in Brazil, also emphasizing the social practices of (r)existence. Going a little further, he vividly relates the cour-se of his academic trajectory with his outstanding participation as president of ALAS, together with
his other projects, such as REALIS, the column in the newspaper “O Povo” and the Institute of Latin
America, at UFPE.
Keywords: Latin America; Coloniality; Interview; Social Theory; social practices
Un intelectual de las fronteras: una
entrevista con Paulo Henrique Martins
Resumen
En esta entrevista, concedida em 6 de junio de 2022, con una duración de poco más de una hora y media, vía Google Meet, el intelectual Paulo Hen-rique Martins comparte su trayectoria dentro de
la Sociología en América Latina como pensador de frontera. La conversación comienza con el profesor reflexionando sobre su producción más reciente, el libro Teoría de la colonialidad, cuya traducción en inglés se publicó este año. Esto le permite ex-plorar la invisibilidad del proceso de colonización dentro de la teoría sociológica europea y estaduni-
dense, destacando la permanencia de una colonia-lidad del saber. Además, hace una valoración críti-ca de la perspectiva decolonial, señalando límites y posibilidades en torno a las teorías sociales la-tinoamericanas anticoloniales. Con base en este marco teórico refinado, Paulo reflexiona sobre el
contexto de la crisis mundial, em especial el Brasil, enfatizando también a las prácticas sociales de (r)
existencia. Así, en la continuidad de la entrevista
relata vívidamente el transcurso de su producci-
ón académica con su destacada participación en
ALAS, como expresidente de la asociación, junto a sus otros proyectos, como REALIS, la columna del diario “O Povo” y el Instituto de América Latina,
UFPE.
Palabras clave: América Latina; colonialidad; En-
trevista; teoría social; practicas sociales