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Revista TOMO, São Cristóvão, v. 42, e17890, 2023
DOI: 10.21669/tomo.v42i

Data de Publicação: 10/01/2023
Dossiê: Teorias Críticas Decoloniais

Teorias Pós-Colonialistas e Currículo: Apontamentos para
construção de uma pedagogia decolonial e antirracista

Michele Guerreiro Ferreira1
Janssen Felipe da Silva 2

Resumo:
O presente trabalho apresenta uma revisão teórica acerca dos principais conceitos mobilizados pelo Grupo
Modernidade/Colonialidade, no intuito de compreender as causas e as consequências dos discursos pro-
duzidos pelos currículos colonizados/colonizadores ou de uma Educação Bancária, em contraposição à ne-
cessidade de construção de uma Educação Libertadora por meio de pedagogias decoloniais. A análise aqui
proposta se localiza no interior da Colonialidade, ou seja, na exterioridade do discurso moderno, no intuito
de subsidiar práxis curriculares antirracistas e decoloniais.
Palavras-chave: Colonialidade. Currículos Colonizados/Colonizadores. Pedagogia Decolonial. Pedagogias
Antirracistas.

Introdução

Neste trabalho, que é um recorte da pesquisa de doutorado que trata das práxis curriculares antirra-cistas em cursos de formação de professoras(es), fizemos a opção política e epistêmica pelas teorias
pós-críticas do currículo em diálogo com o pensamento decolonial para abordarmos a formação
docente para a educação das relações étnico-raciais. Essas são nossas lentes teóricas, que orientam
tanto a compreensão sobre o fenômeno da pesquisa mencionada como o que-fazer pedagógico, pois
percebemos que tal opção epistêmica exige uma atitude diante dos fatos observados.Não é uma escolha teórica de conceitos e definições para apenas interpretar o racismo e a edu-
cação das relações étnico-raciais como mero objeto de estudo, mas sobretudo uma maneira de
compreender e orientar formas de luta contra o racismo. Essas, por sua vez, comprometem-se
com outras formas de pensar, de sentir, de ser, de agir, de conhecer, distintas daquelas recomen-
dadas pelo etnocentrismo branco europeu, assim como preconizam a valorização de identidade
e de saberes, adoção de atitudes antirracistas, apontando para formas outras de poder, de saber
e de ser.

1 Universidade Federal da Paraíba. Centro de Ciências Aplicadas e Educação. Departamento de Educação. Mamanguape, Pa-
raíba, Brasil. E-mail: mguerreirof@hotmail.com.. https://orcid.org/0000-0002-7394-1149

2 Universidade Federal de Pernambuco, Centro Acadêmico do Agreste, Programa de Pós-graduação em Educação Contempo-
rânea. Caruaru, Pernambuco, Brasil. E-mail: janssenfelipe@hotmail.com. https://orcid.org/0000-0001-8113-3478

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Guilherme Paiva de Carvalho

Segundo Walsh (2005), a especificidade dessas teorizações não está fundada nas denúncias de
opressão nem nas lutas contra a ordem mundial dominante de forma isolada, mas exatamente na
relação praxiológica que enfatiza a construção insurgente e criativa de formas outras de ser e de pensar. As teorias pós-coloniais são frutos de inúmeras produções e reflexões científicas que têm
contribuído para explicar o que representou o colonialismo para as ex-colônias. Questionam o cânone ocidental da literatura, da música e das artes clássicas europeias, que influenciaram e mol-
daram a arte da cultura ocidental e que foram impostas como modelo e referência de alta cultura,
em contraposição ao artesanato produzido pelos colonizados, segundo a ótica dos colonizadores.

De acordo com Silva (2000), as teorias pós-coloniais, porém, não restringem suas reflexões, análi-
ses e teorizações à análise estética, mas inserem em suas críticas as relações de poder, assentando
grande ênfase tanto nos estudos da estética como da política ao reivindicar o combate à monocul-
tura, à homogeneização e à hegemonia da identidade eurocentrada. Tais questões estão relaciona-
das às discussões sobre raça, gênero, classe, sexualidade e linguagem.Para justificar a escolha, dentre tantas teorias que poderiam servir de lentes teóricas ao nosso tra-
balho, referenciamo-nos ao entendimento de Walsh (2014) e de Mignolo (2007), que nos mostram que não se trata apenas de teorias ou interpretações em conflito, lutando pela hegemonia de suas
conclusões. Mignolo (2007) mostra que o locus de enunciação como critério corpo-geo-político-
-epistêmico nos possibilita compreender que algo narrado sob a perspectiva da Modernidade que
é visto como “sucesso”, ao deslocar o ponto de vista para o da Colonialidade (ferida colonial), passa
a ser visto como “transtorno total”. Se não, vejamos o que o autor nos diz:

Los cristianos europeos veían “el descubrimiento y la conquista” de América como el acon-
tecimiento más extraordinario desde que Dios creó el mundo (una visión que goza de gran
aceptación, con la que estarían de acuerdo incluso Adam Smith, teórico del libre comercio,
y Karl Marx, crítico acérrimo del capitalismo [e não cristão, diga-se de passagem]), pero el pueblo aimara de los territorios que hoy ocupan Bolivia y Perú consideraban ese hecho
histórico como un pachacuti, es decir, un trastorno total del espacio y el tiempo, una revo-
lución invertida, por así decirlo (Mignolo, 2007, p. 19).

Dessa forma, podemos compreender que não se trata apenas de uma questão de interpretação, mas adotar a perspectiva da Colonialidade significa reivindicar o direito epistêmico de elucidar
questões que nem mesmo as teorias mais críticas foram capazes de dar respostas. Tal desloca-
mento, ou giro decolonial como nomeou Maldonado-Torres (2016), é um dos elementos da deco-
lonialidade, que pressupõe uma cumplicidade entre as ciências sociais e a colonialidade do poder,
por meio da qual os conhecimentos subalternos também possam ser incorporados ao processo de
produção de conhecimento.

Foi de dentro da ferida colonial que Franz Fanon escreveu “Les Damnés de la Terre”, e quando
pediu que seu amigo Jean-Paul Sartre se incumbisse de fazer o prefácio do livro estava ciente que desestabilizaria a geopolítica do conhecimento. E isso fica evidenciado no trecho que Sartre con-
vida os europeus a conhecer o livro de Fanon:

Europeus, abram este livro, penetrem nele [...]. Nesse caso, direis, joguemos este livro pela janela.
Por que temos de o ler se não foi escrito para nós? Por dois motivos, o primeiro é que Fanon vos
explica a seus irmãos e desmonta para eles os mecanismos de nossas alienações: aproveitai para
vos descobrir a vós mesmos em sua verdade de objetos. Nossas vítimas nos conhecem por suas
feridas e por seus grilhões: é isso que torna seu testemunho irrefutável (Sartre, 1968, p. 08).

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Teorias Pós-Colonialistas e Currículo

No trecho acima, Sartre chama a atenção de seus compatriotas europeus para a obra de Fanon
(visto pela perspectiva eurocêntrica como um colonizado, um subalternizado), o qual ousa falar. Mesmo que não fale “para” os europeus, fala “sobre” eles. E o faz baseado no testemunho fiel do
que foi feito pela colonialidade desde o colonialismo, fala de suas feridas, causando um giro epis-
têmico como nos mostra Gayatri Chakravorty Spivak. Para a autora, o sujeito subalterno é aquele
cuja voz não podia ser ouvida – por isso que no convite de Sartre vemos que a vontade de seus
conterrâneos franceses seria jogar o livro de Fanon pela janela.

Spivak (2010) critica a intelectualidade que pretende falar em seu nome, em nome dos subalter-
nizados, mostrando-nos que os atos de resistência que ocorrem em nome do subalterno sempre
estão imbricados no discurso hegemônico. Dessa forma, o subalterno permanece silenciado e apa-rece como constituição de mais um “outro”, uma mera classificação essencialista:

O problema do sujeito emudecido da mulher subalterna, embora não seja resolvido por
meio de uma busca “essencialista” de suas origens perdidas, tampouco pode ser determi-
nado com o apelo por mais teoria no contexto anglo-americano (Spivak, 2010, p. 89).

Para o Pensamento Decolonial, o subalterno fala. Entretanto não se trata de “dar a voz” ao su-
balterno nem de “empoderá-lo”, mas de acordo com Maldonado-Torres (2007c), trata-se de mo-
vimentos de conquista epistêmico-político que veem se dando ao longo da história da socieda-
de moderna-colonial-patriarcal no território da diferença colonial produzindo pensamentos de
fronteira. Falas que são produzidas a partir dos sujeitos que retomam o seu direito epistêmico assumindo vários desafios para que outras epistemologias e outros povos possam também falar,
contar outras formas de história. É importante destacar que tal abordagem teórica não se arvora a
pretensão de se colocar como um “novo paradigma”, mas, sim, como um paradigma outro, confor-
me nos mostram Eduardo Restrepo e Axel Rojas (2010, p. 20):

antes que un nuevo paradigma la inflexión decolonial se considera a sí misma como un
paradigma otro. Lo que estos autores buscan no es consolidarse como un nuevo paradigma
teórico dentro de la academia (como lo son el postestructuralismo, la postcolonialidad,
etc.), sino cuestionar los criterios epistémicos de producción del conocimiento académico
articulados al eurocentrismo y a la modernidad. De ahí que pretenda consolidar un cono-
cimiento no eurocéntrico y desde la herida colonial, es decir, un paradigma otro emergente
desde la diferencia colonial.

Para Mignolo (2011) e Walsh (2005), um “novo paradigma” seria nada mais que mais um paradig-
ma que chegou depois de seus antecessores, seguindo (apesar de ser novo), a mesma lógica dos
predecessores, por exemplo, a pós-Modernidade, por mais que critique e problematize a Moder-
nidade, continua na mesma geopolítica do conhecimento. Enquanto um paradigma outro traz o
deslocamento de sua crítica do polo da Modernidade para o da Colonialidade, não se fala desde a
interioridade do projeto moderno, mas desde a exterioridade, desde o seu avesso.

É possível reconhecer que a perspectiva decolonial, embora se distinga, comunga com aspectos da
crítica pós-colonial. Nesse sentido, podemos traçar aproximações e distanciamentos, por exem-
plo, entre a perspectiva decolonial e os estudos pós-coloniais, os estudos da subalternidade e os
estudos culturais.

Os estudos pós-coloniais são frutos especialmente das teorias surgidas na Ásia e África, no con-
texto das lutas pela libertação e descolonização, as quais produziram importantes teorizações

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Guilherme Paiva de Carvalho

acerca do que representou o colonialismo para os países colonizados pela Europa. Suas for-
mulações seminais remontam ao período das lutas de libertação colonial com autores e suas
respectivas obras que são consideradas como aquelas que inauguram os estudos pós-coloniais
como campo, tais como: Aimé Césaire (“Discurso sobre o colonialismo”, 1950), Frantz Fanon
(“Pele negra, máscara branca”, 1952; “Os condenados da terra”, 1961); Kwame Nkrumah (“Cons-
ciencism”, 1964); Albert Memmi (“O colonizador e o colonizado”, 1965) e Edward Said (“Orien-
talismo”, 1978).

Embora autores como Edward Said e, principalmente, Fanon também sejam considerados na ge-
nealogia da perspectiva decolonial há uma distinção entre essa e os estudos pós-coloniais que se
referem, de acordo com Restrepo e Rojas (2010), ao locus de problematização de uma e de outra,
respectivamente: a colonialidade para a perspectiva decolonial e o colonialismo para os estudos
pós-coloniais. Vejamos:

las experiencias históricas y los locus de enunciación son diferentes: el de la inflexión de-
colonial es la diferencia colonial que se remonta a la colonización de América Latina y el
Caribe por las primeras potencias europeas España y Portugal, entre los siglos XVI y XIX, en el contexto de la primera modernidad; mientras que los estudios postcoloniales se refiere
a la colonización de Asia y África del XVIII al XX, por parte de las potencias del norte euro-
peo (Francia, Inglaterra, Alemania) en el contexto de la segunda modernidad (RESTREPO;
ROJAS, 2010, p. 24).

Assim, as experiências e as trajetórias intelectuais e políticas são distintas. Para Mignolo (2008), o
que há em comum entre as duas abordagens teóricas é a Colonialidade, no entanto, a perspectiva decolonial incorpora a influência de outras produções que distinguem as formulações do pensa-
mento decolonial da dos estudos pós-coloniais:

a genealogia global do pensamento decolonial (realmente outra em relação com a genea-
logia da teoria pós-colonial) até Mahatma Gandhi, W. E. B. Dubois, José Carlos Mariátegui,
Amílcar Cabral, Aimée Césaire, Frantz Fanon, Fausto Reinaga, Vine Deloria Jr., Rigoberta Menchú, Gloria Anzaldúa, o Movimento Sem-Terras no Brasil, os zapatistas em Chiapas, os
movimentos indígenas e afros na Bolívia, Equador e Colômbia, o Fórum Social Mundial e o
Fórum Social das Américas. A genealogia do pensamento decolonial é planetária e não se
limita a indivíduos, mas incorpora nos movimentos sociais (Mignolo, 2008, p. 258).

Arturo Escobar (2003, p.53) apõe ainda à sua gênese discussões que tiveram a América Latina
como locus, tais como a teologia da libertação, a filosofia da libertação, a teoria da dependência,
bem como os debates dos latino-americanos nos anos 1980 sobre Modernidade e pós-Moderni-
dade, entre outras: “desde as teorias críticas europeias e norte-americanas da Modernidade até
o grupo sul-asiático de estudos subalternos, a teoria feminista chicana, a teoria pós-colonial e a filosofa africana”.
Por falar em estudos subalternos do Sul asiático, esses também se juntam à crítica pós-colonial.
Suas primeiras contribuições teóricas estão embasadas no grupo liderado por Ranajit Guha (“El-
ementary aspects of peasant insurgency in colonial India”, 1983), Partha Chatterjee (“Nationalist
thought and the colonial world”, 1986), Dipesh Chakrabarty (“Rethinking working-class history:
Bengal, 1890–1940”, 1989) e Gayatri Chakrabarty Spivak (conhecida especialmente pelo artigo
“Can the subaltern speak?”, 1985). Esses têm em comum com a perspectiva decolonial o pensa-
mento crítico derivado de posições subalternizadas.

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Teorias Pós-Colonialistas e Currículo

Tal aproximação teórica chegou a dar origem ao Grupo Latinoamericano de Estudios Subalternos:
“El trabajo del Grupo de Estudios Subalternos, una organización interdisciplinaria de intelectuales
sudasiáticos dirigida por Ranajit Guha, nos ha inspirado a fundar un proyecto similar dedicado al
estudio del subalterno en América Latina” (CASTRO-GOMES; MENDIETA, 1998, p. 70). No entanto,
membros do grupo teciam críticas tanto às referências epistêmicas como às distintas feridas co-
loniais que marcavam de maneira diferente a América Latina e que, por esse motivo, não podiam
apenas assumir e trasladar as críticas sul-asiáticas para o contexto latino-americano. Dessa forma, Ramón Grosfoguel (2008, p. 116) afirma que

Entre as muitas razões que conduziram à desagregação do Grupo Latino-americano de Es-
tudos Subalternos, uma delas foi a que veio opor os que consideravam a subalternidade
uma crítica pós-moderna (o que representa uma crítica eurocêntrica ao eurocentrismo)
àqueles que a viam como uma crítica descolonial (o que representa uma crítica do euro-
centrismo por parte dos saberes silenciados e subalternizados). Para todos nós que toma-
mos o partido da crítica descolonial, o diálogo com o Grupo Latino-americano de Estudos
Subalternos tornou evidente a necessidade de transcender epistemologicamente - ou seja,
de descolonizar - a epistemologia e o cânone ocidentais.

Em relação aos estudos culturais, que também contemplam uma abordagem pós-colonial, podemos citar
Paul Gilroy (“The black Atlantic”, 1993), Homi Bhabha (“The Location of Culture”, 1994) e Stuart Hall (“Da
diáspora: identidades e mediações culturais” – reunião de artigos do autor traduzidos e publicado no Bra-
sil em 2003). Apesar de problematizar toda espécie de reducionismo os estudos culturais recebem
críticas da perspectiva decolonial por se nutrir de teorias consideradas eurocêntricas (marxismo,
estruturalismo, pós-estruturalismo, psicanálise etc.), como se se colocassem – ainda que criticando
– do lado da Modernidade, enquanto a perspectiva decolonial se situaria no lado da Colonialidade.

Essa busca por distinguir-se das teorias acima apontadas (e de outras como o pós-estruturalismo
e o pós-modernismo, por exemplo), não a entendemos como um purismo ou tentativa de se sobre-
por a elas, mas percebemos nessa postura uma forma de ampliar os horizontes de utopia política
e de radicalismo intelectual, no sentido de valorizar não apenas mais uma teorização, mas a busca
pela construção de um projeto de decolonialidade. Se há disputas internas, concordamos com Ab-
diel Rodriguez Reyes (2017, p. 05),

son muestra de la vivacidad de un pensamiento en movimiento, con sus contradicciones
que lo enriquecen; se trata de un pensamiento en plena evolución y emergencia. No es
una perspectiva monolítica. Lo empobrecedor sería reproducir los mismos patrones que
criticaban al pensamiento moderno/eurocéntrico; también sería empobrecedor que sus
activistas/teóricos sacralizaran sus acciones y pensamientos.

É nesse sentido que buscamos compreender suas chaves conceituais e partimos de sua premissa
básica, qual seja: “a Colonialidade é constitutiva e não derivada da Modernidade” (Mignolo, 2005,
p. 75), o que revela que Modernidade e Colonialidade são dois lados da mesma moeda e consti-
tuem o ponto cego dos estudos pós-coloniais anglo-saxônicos que não conseguiam articular os aspectos econômicos e culturais sem cair em reducionismos, como afirma Quijano (2005).
O objetivo do projeto decolonial (Mignolo, 2005, 2007) ao propor mudar os termos e as condições
da conversa seria deixar de pensar a Modernidade como um objetivo e visualizá-la como uma
construção europeia da história a favor dos interesses da Europa, pois sem a Colonialidade o ima-
ginário do sistema-mundo moderno-colonial não teria alcançado êxito.

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Para melhor compreender os conceitos da referida perspectiva teórica que lançamos mão para
nossa compreensão da unidade curricular, passamos a dividir este trabalho em pequenas subse-
ções, começando pela Colonialidade que já estamos utilizando ao longo do texto.

1. Colonialidade: o avesso da Modernidade

Assim como em um bordado, a Modernidade também tem seu avesso, o qual a todo custo ela ten-
tou esconder, que é a Colonialidade: “equivalente a matriz o patrón colonial de poder, el cual o la
cual es un complejo de relaciones que se esconde detrás de la retórica de la modernidad (el relato de salvación, progreso y felicidad) que justifica la violencia de la colonialidad” (Mignolo, 2011, p.
24). Dessa forma, a Modernidade e seu avesso constituem o binômio Modernidade/Colonialidade.

Quijano nos explica como ambas se constituíram juntas, uma agindo nos bastidores para a outra
brilhar sob os holofotes. E tudo começa com a invenção da América que “se constituyó como el pri-
mer espacio/tiempo de un nuevo patrón de poder de vocación mundial y, de ese modo y por eso,
como la primera id-entidad de la modernidad” (Quijano, 2000, p. 01). São em nome dos discursos civilizadores que se justificaram todas as formas de violência contra aquelas(es) que resistiam a
começar a narrar sua história a partir do desafortunado encontro com os europeus e sua lógica
exploradora/acumuladora de recursos.Não é difícil perceber como a identidade da Modernidade ia se tecendo como referência de ser sob
nossas vistas. Nossos livros didáticos, por exemplo, importante artefato curricular, geralmente tra-
ziam em suas ilustrações pinturas que estabeleciam o lugar e o papel de cada “personagem” retrata-
do na narração de nossa história como: “Desembarque de Cabral” (Imagem 01), do pintor brasileiro
Oscar Pereira da Silva3, ou ainda “Primeira Missa no Brasil” (Imagem 02), de Victor Meirelles4.

Imagem 01 Imagem 02

Fonte: Google Imagens

3 Descobrimento do Brasil, de Oscar Pereira da Silva, disponível em: Google Imagens.
4 Primeira Missa no Brasil, de Victor Meirelles, disponível em: Google Imagens.

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Teorias Pós-Colonialistas e Currículo

Por meio dessas ilustrações são produzidos discursos imagéticos que expressam a superioridade
do invasor, tido como desbravador, descobridor, civilizado, diante dos habitantes nativos curva-
dos, assustados, deslumbrados e passivos, prontos para receber a civilização de além-mar. Nessa
perspectiva, cria-se uma memória colonial que alimenta a herança colonial que hierarquiza os
sujeitos e seus respectivos territórios, culturas, saberes, etc., contribuindo para a constituição de
uma estrutura curricular fortemente colonizadora que se alimenta dos processos de esquecimen-
to, de silenciamento e de subalternização de povos oriundos da África e de sua descendência e dos
povos indígenas.

Outro aspecto que ainda podemos citar é que esses e outros discursos imagéticos dessa mesma
linha contribuíam e contribuem também para cristalizar as identidades de africanas(os) como es-
cravizadas(os) e de indígenas como aquelas(es) que não existem mais, uma vez que os indígenas
hoje não usariam canga e cocar, como nas ilustrações das Imagens 01 e 02.

Tais discursos imagéticos reforçam dentro do currículo colonizado/colonizador estereótipos de identidades subalternizadas, influenciando a negação e, até mesmo, diversas outras atitudes racis-tas para com aquelas(es) que se identificassem com eles (os discursos). A matriz, ou o padrão de
poder, baseada na racialização da população mundial e da racionalização como forma de controlar as formas de produzir conhecimento e de classificar o trabalho, tornou-se o mais eficaz e o mais duradouro meio de dominação, pois se converteu: “en el modo básico de clasificación social uni-
versal de la población mundial”, naturalizando a inferioridade dos povos conquistados. Tal matriz
ou padrão de poder é a Colonialidade:

Coloniality, instead, refers to long-standing patterns of power that emerged as a result of co-lonialism, but that define culture, labor, intersubjective relations, and knowledge production
well beyond the strict limits of colonial administrations. Thus, coloniality survives colonia-
lism
. It is maintained alive in books, in the criteria for academic performance, in cultural pat-
terns, in common sense, in the self-image of peoples, in aspirations of self, and so many other
aspects of our modern experience. In a way, as modern subjects we breath coloniality all
the time and everyday
5 (MALDONADO-TORRES, 2007b, p. 131, grifos nossos).

Se respiramos a colonialidade cotidianamente é porque, como nos mostra Quijano (2005), as iden-tidades se tornaram identidades “raciais” e passaram a servir para classificar e dividir a sociedade,
“sendo a raça branca a dos dominantes/superiores ‘europeus’ e os índios e negros, as raças dos
dominados/inferiores ‘não europeus’” (FERREIRA, 2013, p. 39). É por isso que Mignolo (2007, p.
32) afirma que “la ‘colonialidad’, entonces, consiste en develar la lógica encubierta de que impone
el control, la dominación y la explotación, una lógica oculta tras el discurso de la salvación, el progreso, la modernización y el bien común”.
Rita Segato e Paulina Álvarez (2016) nos mostram que tal racialização da sociedade se perpetuou
e ainda que os sujeitos distribuídos nos níveis, lugares e papéis subalternizados da estrutura de
poder não carreguem traços tão evidentes de sua colonização, pelo olhar do colonizador, eles sem-
pre serão vistos como subalternizados:

5 “Colonialidade se refere a um antigo padrão de poder que emerge como resultado do colonialismo moderno, porém em vez
de estar limitado a uma relação estrita às administrações coloniais, refere-se à forma como o trabalho, o conhecimento, a autoridade e as relações intersubjetivas se definem. Assim, a colonialidade sobrevive ao colonialismo. Mantém-se viva
nos livros didáticos, nos critérios para o bom trabalho acadêmico, nos padrões culturais, no senso comum, na autoimagem
dos povos, nas aspirações de si mesmos, e em tantos outros aspectos de nossa experiência moderna. De certa forma, respi-
ramos a colonialidade na modernidade o tempo todo e todos os dias”
(tradução livre da autora).

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Aunque nuestros padres o nuestros cuatro abuelos hayan nacido en Europa, el ojo del Nor-
te mira nuestra corporalidad y nuestra situación geopolítica, la posición de nuestros cuer-
pos en la historia. Eso es la raza, no algo sustantivo del organismo, de la persona, sino una
posición en un sistema histórico de relaciones de dominación, es la historia leída en el
cuerpo (Segato; Álvarez, 2016, p. 2012-3).

Segato e Álvarez nos ajudam a compreender como a formação de tais identidades raciais acaba
por produzir uma hierarquia social/racial, ainda que não carreguemos os traços que serviram
para categorizar as ditas “raças” humanas; elas foram forjadas apenas para situar a posição histó-
rica do dominado enquanto tal e para que se mantenha tal conformação.

Fanon também nos fala sobre o ser e o sentir-se “estrangeiro na própria terra”, ou seja, ser e sen-
tir-se ligado a hábitos e valores ancestrais que são compelidos a ser abandonados tornando-lhe
alheio a si próprio e aos valores culturais de sua realidade ao abraçar outra realidade que não lhe
aceita completamente:

Enquanto o negro estiver em casa não precisará, salvo por ocasião de pequenas lutas intes-tinas, confirmar seu ser diante de um outro. Claro, bem que existe o momento de “ser para-
-o-outro”, de que fala Hegel, mas qualquer ontologia se torna irrealizável em uma sociedade
colonizada e civilizada (FANON, 2008, p. 103).

O objetivo de situar a posição histórica dos diferentes sujeitos que a constituem só é alcançado por
meio da articulação de vários eixos da Colonialidade. Não bastou criar a matriz ou o padrão de poder,
mas se fez necessário ensiná-la(o), fez-se necessário que as pessoas acreditassem na hierarquização
racial imposta. A Colonialidade, dessa forma, vai assumindo diversas faces e se dividindo em eixos
que possuem sentidos (sociais, culturais, epistêmicos, existenciais, ecológicos e políticos), os quais se relacionam, complementam-se, reconfigurando a matriz ou o padrão de poder estabelecido.
É com base na articulação dos seus diversos eixos que podemos entender por que, embora a Mo-dernidade tente a todo custo esconder a Colonialidade, Mignolo (2007, p. 32) é categórico ao afir-
mar que “no se puede ser moderno sin ser colonial”. A seguir vamos compreender os efeitos da
Colonialidade por meio da ferida colonial e do racismo epistêmico.

2. Ferida colonial e racismo epistêmico: a articulação da colonialidade do poder, do ser e
do saber

Uma vez que já compreendemos que não existe Modernidade sem Colonialidade, vamos compre-
ender as consequências do discurso da Modernidade a partir da Colonialidade. Ou seja, nossa
intenção é assumir o deslocamento provocado pelo giro decolonial indo de encontro aos discursos
hegemônicos que racializaram e hierarquizaram a sociedade, tornando certos sujeitos o parâme-
tro e a referência de poder, de ser e de saber.

Na seção anterior, citamos a obra de Fanon que produz seu discurso desde o seio da Colonialidade e nos ajuda a compreender como essa teria a finalidade de manter a acomodação social desejada
pelos colonizadores:

O colonizador, se bem que “em minoria”, não se sente inferiorizado. Há na Martinica duzen-
tos brancos que se julgam superiores a trezentos mil elementos de cor. Na África do Sul,

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Teorias Pós-Colonialistas e Currículo

devem existir dois milhões de brancos para aproximadamente treze milhões de nativos, e
nunca passou pela cabeça de nenhum nativo sentir-se superior a um branco minoritário
(Fanon, 2008, p. 90).

Dessa forma, Fanon falava de um lugar no qual as histórias e as experiências não constavam da
história e que, por isso, os sujeitos dessas histórias e experiências ocultas – que chegaram a acre-
ditar nos discursos civilizatórios e salvacionistas da Modernidade – foram chamados por ele de
les damnés de la terre”, os quais estão na exterioridade e são marcados, tal como o gado, para que
possam ser reconhecidos.

De acordo com Maldonado-Torres (2007b, p. 253), “For Fanon, the black is not a being or simply
nothingness. The Black is something else. The enigma of blackness appears as the very radical
starting point to think about the coloniality of Being6”. Entendemos, assim, a colonialidade do ser,
também como uma dessas marcas ou feridas deixadas pela própria Colonialidade. A colonialidade do ser tem suas marcas cravadas nas estruturas e nos conteúdos dos currículos escolares: seja
pela lógica (razão) epistêmica eurocentrada que delineia a constituição do currículo por meio da
destituição dos sujeitos outros da condição de autores curriculares, seja pelos processos de cons-trução de estereotípicos dos sujeitos outros representados de forma racializada nos conteúdos
curriculares.

Para compreender tais marcas, por meio de Mignolo (2011), chegamos ao conceito de “ferida co-lonial”, o qual provém de Gloria Anzaldúa (2012), de sua obra semibiográfica: “Borderlands: La frontera the new mestiza”. Mignolo (2007, p. 29) faz uma breve referência ao livro afirmando que
a fronteira abordada pela autora “Obviamente, […] tiene valor de cambio en todas aquellas situ-aciones en las cuales Europa y Estados Unidos infligieron y continúan infligiendo la fricción de la misión civilizadora, desarrollista y modernizadora”. E indo diretamente ao texto de Anzaldúa
pudemos compreender com mais precisão tais marcas.A autora fala das fronteiras, não apenas as fronteiras geográficas que separam os Estados Unidos
do México, mas, especialmente, das fronteiras invisíveis que impõem parâmetros às identidades
não latinas e latinas; de homem e de mulher; da cis-heteronormatividade. Esses parâmetros, mui-
to mais do que se efetivarem como um modelo dado e seguido, eles ferem, marcam, fazem sangrar:
“The U.S.-Mexican border es una herida abierta where the Third World grates against the first and
bleeds7” (ANZALDÚA, 2012, p. 03). Tal luta só serve para mostrar as feridas abertas, as marcas
vividas por quem habita as fronteiras do (não) poder, do (não) ser, do (não) saber.

A ferida colonial se “refere a la huella dejada por el dolor derivado de las experiencias vividas de
los condenados de la tierra, de los damnés. Son experiencias forjadas en situaciones de margi-
nalización, sometimiento, injusticia, inferiorización, dispensación y muerte” (RESTREPO; ROJAS,
2010, p. 162). Outro exemplo dessas situações de injustiça, inferiorização etc., é mais uma vez retratada por Anzaldúa (2009), que relata práticas curriculares de violência física e simbólica na
escola onde estudava:

6 “Para Fanon, o negro não é um ser nem simplesmente um nada. O negro tem uma constituição distinta. O enigma do negro
aparece como o ponto de partida radical para pensar sobre a colonialidade do ser! (tradução livre da autora).

7 “A fronteira Estados Unidos-México é uma ferida aberta onde as grades do Terceiro Mundo lutam contra o Primeiro e san-
gram” (tradução livre da autora).

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Guilherme Paiva de Carvalho

eu me lembro de ser pega falando espanhol no recreio – o que era motivo para três bolos no meio da mão com uma régua afiada. Eu me lembro de ser mandada para o canto da sala de
aula por “responder” à professora de inglês quando tudo o que eu estava tentando fazer era
ensinar a ela como pronunciar meu nome. “Se você quer ser americana, speak ‘American’.
Se você não gosta disto, volte para o México, que é o seu lugar” (ANZALDÚA, 2009, p. 305).

Dizer qual é o lugar de quem quer ser, ou pelo menos parecer, o que não se é, não passa de
uma das marcas deixadas pela ferida colonial que continua violentando crianças nas esco-
las até os dias de hoje, ao serem ensinadas que existe um lápis “cor-de-pele8”; ao se referir
aos indígenas como um povo homogêneo que habitava9 o território que hoje chamamos
de pátria; à destituição da humanidade dirigida a quem se afasta do parâmetro estabeleci-
do pela hierarquização racial ou pela cis-heteronormatividade10; ao inferiorizar os povos do campo, das florestas, os ribeirinhos e outros relacionando-os ao atraso e à ignorância,
entre tantos outros exemplos, todos inferiorizando aquelas(es) que se afastam do padrão
eurocentrado forjado na Colonialidade.
Nas lutas pela descolonização, Fanon advertia, falando aos condenados da terra e como
um condenado da terra, que a descolonização “jamais passa despercebida porque atinge
o ser, transforma espectadores sobrecarregados de inessencialidade em atores privilegia-
dos, colhidos de modo quase grandioso pela roda-viva da história” (Fanon, 1968, p. 26).
Podemos perceber que o autor está preocupado em curar as marcas da colonialidade da-quelas(es) que passaram a se definir a si próprias(os) pelo olhar do colonizador. Mas não
escondia que, assim como a colonização, “exposta em sua nudez, a descolonização permi-
te entrever através de todos os seus poros, granadas incendiárias e facas ensanguentadas”
(Fanon, 1968, p. 27).Tanto Anzaldúa quanto Fanon nos falam da violência da Colonialidade que quando não
mata, marca os sujeitos por meio da ferida colonial, a qual, de acordo com Mignolo (2007), seja física, seja psicológica, é uma consequência do racismo e do discurso hegemônico que
questionam a própria humanidade daqueles que não pertencem ao locus de enunciação dos que criaram os padrões de classificação e hierarquizaram os povos, os saberes e as histórias.
A relação estabelecida pela ferida colonial coloca em desvantagem o sujeito colonizado devido ao
privilégio epistêmico auto-outorgado aos europeus por meio da normalização do que é referência do saber. Estamos afirmando que, juntamente com a racialização da sociedade, também se forjou
um racismo epistêmico, que universaliza e naturaliza a “verdade” eurocêntrica, ao passo que infe-
rioriza os conhecimentos, os saberes e as tradições outras.

O eurocentrismo11, manifestado como racismo epistêmico, perpassa toda a formação escolar atra-
vés dos currículos colonizados/colonizadores (FERREIRA, SILVA, 2015). O conhecimento selecio-

8 Referimo-nos à cor salmão, um rosa-claro, atribuído à cor da pele hegemônica dos brancos.
9 Negando sua diversidade e até mesmo sua existência no presente.
10 Por meio de xingamentos como “macaco”, “bicha”, “viado”, entre outros, que, antes de tudo, desumanizam o sujeito que se

afasta do padrão estabelecido como norma a ser seguida.
11 Eurocentrismo, de acordo com Quijano (2005, p. 246-7), é “o nome de uma perspectiva de conhecimento cuja elaboração

sistemática começou na Europa Ocidental antes de meados do século XVII, ainda que algumas de suas raízes são, sem dúvida mais velhas, ou mesmo antigas, e que, nos séculos seguintes, se tornou mundialmente hegemônica [...] associada à específica secularização burguesa do pensamento europeu e à experiência e às necessidades do padrão mundial de poder
capitalista, colonial/moderno, eurocentrado, estabelecido a partir da América”.

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Teorias Pós-Colonialistas e Currículo

nado é o que irá garantir a posição hegemônica do padrão eurocentrado na sociedade, por meio
de práticas que privilegiam a transmissão de saberes propedêuticos que são “depositados” no
outro, colonizando-o, subalternizando-o. Assim, o eurocentrismo produz os silenciamentos, as as-
sepsias e os extrativismos epistêmicos sobre os conhecimentos dos povos que foram racializados,
localizando suas culturas na exterioridade curricular. Nota-se que as lições que aprendemos estão
dentro de uma lógica racista. De acordo com Grosfoguel (2007, p. 32),

O racismo epistêmico é um dos racismos mais invisibilizados no “sistema-mundo capitalis-
ta/patriarcal/moderno/colonial”. O racismo em nível social, político e econômico é muito mais reconhecido e visível que o racismo epistemológico. Este último opera privilegian-
do as políticas identitárias (identity politics) dos brancos ocidentais, ou seja, a tradição de
pensamento e pensadores dos homens ocidentais (que quase nunca inclui as mulheres) é considerada como a única legítima para a produção de conhecimentos e como a única com
capacidade de acesso à “universidade” e à “verdade”. O racismo epistêmico considera os
conhecimentos não-ocidentais como inferiores aos conhecimentos ocidentais. Se obser-
varmos o conjunto de pensadores que se valem das disciplinas acadêmicas, vemos que to-
das as disciplinas, sem exceção, privilegiam os pensadores e teorias ocidentais, sobretudo
aquelas dos homens europeus e/ou euro-norte-americanos.Evidencia-se na definição que o autor nos traz que a invenção, tanto do racismo biológico quanto

do racismo epistêmico, não passa de uma estratégia de negação, de silenciamento e de extermínio
das existências e saberes daquelas(es) que não se inscrevem na matriz, ou no padrão de poder, que
estabelece o parâmetro para o ser e para o pensar.

Como nos mostram Boaventura de Sousa Santos e Maria Paula Meneses (2010), promoveu-se um
“epistemicídio” na medida em que os colonizadores buscavam homogeneizar o mundo através da imposição de sua única forma de pensar e do seu modelo de cultura. Com isso buscava-se apagar
as diferenças culturais através de vários meios, inclusive a apropriação indébita, ou extrativismo
epistêmico12, dos saberes locais. Santos e Meneses destacam que os saberes que não “interessam”
aos colonizadores são assassinados, ao passo que os saberes que interessam são expropriados, muitas vezes sob o pretexto do desenvolvimento científico, obviamente definido pela ótica do co-
lonizador.

Como podemos perceber, a racialização dos corpos e dos saberes, ou seja, a articulação entre os
vários eixos da colonialidade, serviu perfeitamente à constituição de uma referência a ser seguida
e das não referências a serem esquecidas, apagadas, domadas, eliminadas. Ferreira e Silva (2015)
fazem uma alusão à “Árvore do Esquecimento”13 para exemplificar como o racismo epistêmico
opera por meio dos currículos escolares:

12 Para Grosfoguel (2016, p. 133), o extrativismo epistêmico é fruto de uma mentalidade extrativista que “expolia ideas (sean
científcas o ambientalistas) de las comunidades indígenas, sacándolas de los contextos en que fueron producidos para
despolitizarlas y resignifcarlas desde lógicas occidentalo-céntricas. El objetivo del «extractivismo epistémico» es el saqueo
de ideas para mercadearlas y transformarlas en capital económico o para apropiárselas dentro de la maquinaria académica
occidental con el fn de ganar capital simbólico. En ambos casos, se los descontextualiza para quitarles contenidos radicales
y despolitizarlos con el propósito de hacerlos más mercadeables”.

13 “Em Uidá, Benin, onde ficava um dos grandes portos de embarque de pessoas que eram vendidas como escravos, as quais
percorriam um caminho de cinco quilômetros da cidade até o porto, antes de embarcar eram obrigadas a dar voltas em
torno de uma árvore: a Árvore do Esquecimento. Então, os escravizados homens deviam dar nove voltas em torno dela, as
mulheres sete voltas. Depois disso, supunha-se que os escravizados perdiam a memória e esqueciam o seu passado, suas
origens, sua identidade cultural para se tornarem seres sem nenhuma vontade de reagir ou de se rebelar” (extraído do
documentário “Atlântico negro na rota dos Orixás”).

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Guilherme Paiva de Carvalho

É compreensível porque lembramos, indubitavelmente, de termos estudado nas nossas aulas
de História temas como: a Revolução Francesa, a Revolução Inglesa, a Revolução Russa... tam-
bém lembramos algo sobre o Iluminismo, o Renascimento, o antigo Regime Francês, o Feuda-
lismo, a Reforma Protestante! Todos estes temas, entre outros (que tiveram a Europa como
locus), foram plantados em nossa memória individual e coletiva como História Universal, por
meio de currículos colonizados, eurocêntricos. Por isso, entendemos que o currículo foi e é
ainda um território epistêmico onde foram plantadas as sementes da árvore do esquecimen-
to, sendo regadas através de práticas curriculares eurocentradas (Ferreira; Silva, 2015, p. 84).

Eis mais exemplos das marcas deixadas pela ferida colonial, expressas na violência com que a Colonia-
lidade, por meio do racismo e do racismo epistêmico, se manifesta. Seu objetivo é evidenciar a distância
entre as referências e os sujeitos subalternizados que devem apenas segui-las, estabelecendo frontei-
ras entre o saber e o não saber, pois enquanto no pensamento hegemônico a fronteira é vista como algo
que separa, no projeto decolonial é concebida como algo que une, que liga, que articula:

Na perspectiva do projeto decolonial, as fronteiras não são somente este espaço onde as
diferenças são reinventadas, são também loci enunciativos de onde são formulados conhe-
cimentos a partir das perspectivas, cosmovisões ou experiências dos sujeitos subalternos. O que está implícito nessa afirmação é uma conexão entre o lugar e o pensamento (Berna-
dino-Costa; Grosfoguel, 2016, p. 19).

Por isso, vemos que a Colonialidade marca e fere, no entanto, não consegue impedir que se cons-
tituam práticas e experiências de insurgência e re-existências que apontem caminhos para a pró-
pria superação e enfrentamento do racismo como podemos ver na próxima seção.

3. Decolonialidade, práxis decolonizadora e interculturalidade: pensar e agir de outro
modo

Diante do que vimos até aqui, a despeito do que possa parecer, há uma força e um projeto em
marcha que insurgem e se contrapõem à Colonialidade. Vale ressaltar que estamos nos referindo
à matriz ou padrão de poder, não ao colonialismo, como nos mostra Enrique Dussel:

Al negar la inocencia de la “Modernidad” y al afirmar la Alteridad de “el Otro”, negado como
víctima culpable, permite “des-cubrir” por primera vez la “otra-cara” oculta y esencial a la “Modernidad”: el mundo periférico colonial, el indio sacrificado, el negro esclavizado, la
mujer oprimida, el niño y la cultura popular alienadas, etcétera (las “víctimas” de la “Mo-
dernidad”) como víctimas de un acto irracional (como contradicción del ideal racional de
la misma Modernidad) (DUSSEL, 1994, p. 177).

Ao se des-cobrirem vítimas da contradição da Modernidade, é possível tomar a atitude decolonial
diante do sistema que encobriu a lógica da exploração atrás de explicações que buscavam natu-ralizar as diferenças e justificar a exploração. Por essa razão, falamos de decolonialidade e não de
descolonização porque falamos de um projeto em marcha, que ainda está sendo construído, não
está concluído com o des-cobrimento do outro.Para Mignolo (2005, p. 13), o “concepto ‘decolonialidad’, […], resulta útil para trascender la suposición de ciertos discursos académicos y políticos, según la cual, con el fin de las administraciones colonia-

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Teorias Pós-Colonialistas e Currículo

les y la formación de los Estados-nación en la periferia, vivimos ahora en un mundo descolonizado y poscolonial”. Para o autor, o fim da Guerra Fria marca o término do colonialismo, mas a Colonialidade
continua vigente. A descolonização é, nesse sentido, apenas uma das fases da decolonialidade:

De ahí que una implicación fundamental de la noción de ‘colonialidad del poder’ es que el
mundo no ha sido completamente descolonizado. La primera descolonialización (iniciada
en el siglo XIX por las colonias españolas y seguida en el XX por las colonias inglesas y
francesas) fue incompleta, ya que se limitó a la independencia jurídico-política de las pe-
riferias […] En cambio, la segunda descolonialización —a la cual nosotros aludimos con la
categoría decolonialidad — tendrá que dirigirse a la heterarquía de las múltiples relaciones
raciales, étnicas, sexuales, epistémicas, económicas y de género que la primera descolonia-
lización dejó intactas (Castro-Gomes; Grosfoguel, 2007, p. 17).Notamos a partir dessa compreensão porque o fim do colonialismo não rompeu com a Colonia-

lidade nem com seus pilares de sustentação (a racialização e a racionalização), uma vez que não
rompeu com as hierarquias instituídas. Dessa forma, podemos entender a forte presença do euro-
centrismo em nossos currículos escolares e acadêmicos, assim como a naturalização de atitudes
que polarizam as relações raciais, de gênero, de sexualidade, religiosas, etc.

A primeira descolonização passou longe do enfrentamento das hierarquias étnico-raciais, epistê-
micas, de gênero e de sexualidade, pois continuaram vigentes as concepções de existência do outro
como subalterno. É por essa razão que falamos de decolonialidade e não de uma descolonização:

Decimos “decolonial” y no “descolonización”, porque la descolonialización sería otro puris-
mo, sería decir: “nos vamos a limpiar de todo lo instalado por la conquista y la colonización
y volver a ser indios”. Eso es imposible, no es ese el camino. Porque ese indio no puede ser
un indio ideal, no puede ser un indio fuera del tiempo, no puede ser un indio fuera de la
historia, referido al pasado. Todas las sociedades humanas están en el tiempo, están en su
proyecto histórico (Segato; Álvarez, 2016, p. 214).

A descolonização rompeu com a administração colonial das metrópoles sobre as colônias, mas não foi suficiente para deixarmos de acreditar na essencialização das identidades subalternizadas
pelo projeto moderno/colonial. Até porque, de acordo com Fidel Tubino (2005), a principal tarefa
dos Estados-nação foi criar uma identidade nacional, uniformizando as culturas subalternizadas
a partir do modelo cultural e linguístico hegemônico, por meio de políticas, inclusive e especial-
mente, educacionais.

Entretanto, existe uma fronteira epistemológica na qual estão em tensão o projeto moderno/colo-nial (mesmo com o fim do colonialismo e a instituição dos Estados-nação) e o projeto decolonial
(que busca levar a cabo o projeto de descolonização, já iniciado, mas ainda não concluído).

A decolonialidade, portanto, é o retorno epistêmico da(o) subalternizada(o) ao projeto eurocên-
trico da Modernidade. Ao invés de rejeitarem a Modernidade para se recolherem num absolutis-mo fundamentalista, as epistemologias outras subsumem e redefinem a retórica emancipatória
da Modernidade a partir das “cosmologias e epistemologias do subalterno, localizadas no lado
oprimido e explorado da diferença colonial, rumo a uma luta de libertação descolonial em prol de
um mundo capaz de superar a Modernidade eurocentrada” (GROSFOGUEL, 2008, p. 34).

Esse espaço chamado de diferença colonial representa o pensamento e as experiências constitu-
ídos às margens, nas fronteiras criadas pela Colonialidade durante a constituição do mundo mo-

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Guilherme Paiva de Carvalho

derno. A diferença colonial reconhece conhecimentos-outros constituídos a partir de outras for-
mas de ser, de pensar e de conhecer distintas da Modernidade europeia, embora em diálogo com
essa, mas em um horizonte epistemológico transmoderno. Ou seja, representa pensar não tendo
a referência ocidental como centro, mas construir um pensamento crítico outro, heterárquico, a
partir das experiências e histórias marcadas pela Colonialidade.

Autores como Fanon (1968) e Freire (2005) evidenciaram em suas obras que a libertação não é
um favor nem benevolência do opressor. Antes, é um ato revolucionário que parte dos próprios
condenados/oprimidos já que são eles que sentem na pele as dores da subalternização, pois são
esses que sabem formas outras de poder e de saber diferentes das hegemônicas. Encontramos eco desse pensamento em Anzaldúa:

Sabemos o que é viver sob o golpe de martelo da cultura norteamericana dominante. Mas,
mais que isso, nós contamos os golpes, contamos os dias as semanas os anos os séculos os
éons até que as leis, o comércio e os costumes brancos vão apodrecer nos desertos que eles criaram, jazer desbotados (Anzaldúa, 2009, p. 307).

Assim, compreendemos que a decolonialidade é fruto de uma práxis decolonizadora que parte da reflexão e da ação pensada sobre um projeto que vai de encontro à racialização e à racionalização da sociedade. A exigência é grande porque todos somos acometidos pela fúria da colonialidade.
Somos ensinados a pensar e a falar como brancos desde que nos entendemos por gente.

Por isso, a práxis decolonizadora precisa ir além do pensamento já estabelecido e das ações já ins-
tituídas, para não incorrer no risco do exemplo trazido por Freire (2005, p. 36) referindo-se aos
sujeitos que “querem a reforma agrária, não para se libertarem, mas para passarem a ter terra e,
com esta, tornar-se proprietários ou, mais precisamente, patrões de novos empregados”. Daí que Maldonado-Torres (2007a) nos mostra que se faz necessário um re-conhecimento mútuo em uma
relação solidária e não condescendente entre os damnés/oprimidos/colonizados. Para o autor, a
decolonialidade só terá início quando se coloquem em prática os projetos de rehumanização pen-
sados pelos que foram desumanizados pelo projeto moderno/colonial, rasgando de vez as másca-
ras brancas.

Nesse sentido, precisamos nos enxergar em um espelho que nos diga a verdade, como nos suge-
rem Segato e Álvarez: precisamos do espelho da Rainha Má:

el espejo de la reina mala puede ser un buen utensilio para emprender un camino deco-
lonial. Debemos recuperarlo y preguntarle: “espejito, espejito, ¿Soy negro?”. “Espejito, es-
pejito, me he mentido a mi mismo?” […]. La colonialidad cubrió con un paño ese espejo
indispensable que nos revela quiénes somos realmente y así obstruyó nuestra relación con
él como camino indispensable hacia nosotros mismos (Segato; Álvarez, 2016, p. 212, grifos
nossos).

É preciso retirar o pano colonizador desse espelho para que possamos nos descobrir damnés,
oprimidos, colonizados e juntos nos engajar na luta organizada pela nossa libertação. E essa luta é a própria práxis decolonizadora, ou seja, é a articulação da ação e da reflexão, pensada de outro modo, para outros fins, para a mudança social e epistêmica.
Para concluir a descolonização ou alcançar a decolonialidade, “el primer paso para esto es recono-
cer que no hay cambio social sin cambio epistémico, y que el cambio epistémico pierde su poten-

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Teorias Pós-Colonialistas e Currículo

cial descolonizador si no se inspira en o entra en diálogo con comunidades o grupos en proceso
de descolonización” (Maldonado-Torres, 2007a, p. 09). Em contraposição, Paulo Henrique Martins
(2009, p. 23) nos adverte que a hegemonia epistêmica assume uma estratégia colonizadora que
tem o objetivo de

minimizar a importância das novas praxis que surgem das sofisticações organizacionais e
institucionais que conhecem os movimentos contemporâneos, em particular os das novas
minorias e que têm nas redes suas sínteses mais eloquentes. À frente destas estratégias
de colonização do saber sobre os movimentos sociais e culturais encontramos os adeptos
das ideologias utilitaristas hegemônicas que têm forte aproximação com o neoliberalismo.

As estratégias as quais o autor se refere relacionam-se à interculturalidade funcional (WALSH, 2008), a qual se trata da oficialização da diferença nas políticas com a finalidade de atender aos interesses do neoliberalismo como pode ser identificada ao analisarmos os processos de redemo-
cratização dos países latino-americanos. Por isso, faz-se importante nos remeter ao conceito de
interculturalidade.A interculturalidade, de acordo com Tubino (2005), apareceu na América Latina no final dos anos 1960 como um discurso crítico à educação oficial e como uma alternativa à educação bicultural
e bilíngue para os povos indígenas do continente. A educação bicultural enfatizava a inclusão da cultura e da língua originária ao lado da cultura e da língua oficial ao longo do processo educati-
vo, sendo um processo simultâneo e paralelo. A concepção de interculturalidade ia de encontro
à educação bicultural, uma vez que a interculturalidade enfatiza “la comunicación, el contacto, la
interrelación de las dos lenguas y sobre todo las culturas” (Tubino, 2005, p. 87).No entanto, Walsh (2010) afirma que nos anos 1990 o termo interculturalidade “entra na moda” e
passa a ser usado de maneira indiscriminada em variados contextos cujos interesses sociopolíti-
cos são até mesmo opostos. A autora explica que isso se dá porque a compreensão do conceito tem
abarcado acepções extremamente amplas e difusas.

Por isso, para promover uma melhor compreensão do conceito de interculturalidade, a autora o
apresenta a partir de três distinções: relacional, funcional e crítica, sendo as duas primeiras for-
mas de interculturalidade meramente ilustrativas do reconhecimento da diversidade cultural e
até mesmo a serviço da manutenção dos interesses políticos e econômicos dos regimes estabele-
cidos nos novos estados nacionais, porém, sem interferir nas mudanças sociais e epistêmicas que
o caráter crítico da interculturalidade preconiza. A autora nos mostra que a perspectiva crítica da
interculturalidade toma a questão da diversidade/diferença como um

problema estructural-colonial-racial. Es decir, de un reconocimiento de que la diferencia se
construye dentro de una estructura y matriz colonial de poder racializado y jerarquizado, con
los blancos y “blanqueados” en la cima y los pueblos indígenas y afrodescendientes en los pel-
daños inferiores. Desde esta posición, la interculturalidad se entiende como una herramienta,
como un proceso y proyecto que se construye desde la gente -y como demanda de la subalterni-
dad-, en contraste a la funcional, que se ejerce desde arriba. Apuntala y requiere la transforma-
ción de las estructuras, instituciones y relaciones sociales, y la construcción de condiciones de
estar, ser, pensar, conocer, aprender, sentir y vivir distintas (Walsh, 2010, p. 78).

Assim como a decolonialidade, a interculturalidade crítica também é um ainda-não. É um horizon-
te que vislumbra por meio da práxis decolonial a construção social, ética e epistêmica de projetos

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Guilherme Paiva de Carvalho

políticos que sejam capazes de modificar as relações e as estruturas de poder que cristalizaram a
hierarquização, a racialização, a discriminação e a subalternização.

É preciso pensar e agir de outro modo, mudar os termos da conversa como insistem as/os autoras/
es da perspectiva decolonial. É um projeto que parte dos damnés, dos oprimidos, mas não se res-
tringe a elas(es), envolve a todas(os), negras(os), indígenas, brancas(os), ocidentais, orientais.
Não basta reconhecer a diferença, não basta ações que incitem a tolerância nas atuais estruturas
forjadas no âmbito do projeto moderno/colonial e perpetuadas até os dias atuais.A intercultura, na verdade, significa “inter-epistemologia, um diálogo intenso que é o diálogo do
futuro entre cosmologia não ocidental (aymara, afros, árabe-islâmicos, hindi, bambara etc.) e oci-
dental (grego, latim, italiano, espanhol, alemão, inglês, português)” (Mignolo, 2008, p. 316). Com
isso, entendemos que para concluirmos o projeto de descolonização e de uma interculturalidade
crítica, precisamos compreender o campo da educação na construção desse projeto, como vere-
mos a seguir.

4. Pedagogia decolonial: desaprender para reaprender

Aprendemos a partir do apagamento de nossas origens ancestrais, muitos feitos e fatos que tive-
ram a Europa como palco, ao mesmo tempo em que não aprendemos sobre o que ocorria ao longo
do continente africano nos mesmos períodos estudados, como por exemplo, na Idade Média, de
acordo com Ferreira e Silva (2018). O currículo tratou de apagar/esconder, passando uma imagem
do Continente Africano em tom de mistério e proibições.

A assepsia feita no currículo por meio da racialização que silencia a existência de civilizações afri-
canas, ameríndias, entre outras, está articulada com a presença da Colonialidade em nossos cur-
rículos, como se tivéssemos dado as nove (para os homens) ou sete (para as mulheres) voltas na
chamada Árvore do Esquecimento, plantada no porto de Uidá (Benin), para que esquecêssemos de
nossa história e cultura e perdêssemos a vontade de reagir ou de nos rebelar contra as opressões
impostas às pessoas que eram escravizadas, como vimos.

Modos de vida, conhecimentos e formas de produzi-los externas das fronteiras eurocentradas fo-
ram negados e desautorizados. Conhecimentos da metalurgia, da agricultura, da arquitetura, dos
idiomas e das mitologias trazidas pelos africanos escravizados sofreram do extrativismo epistêmi-
co. Esse extrativismo se deu por meio da exploração dos conhecimentos ancestrais africanos pelos
colonizadores e simultaneamente pela supressão da autoria africana.

Freire, ao relatar os efeitos da educação colonial em sua vivência na Guiné Bissau nos mostra que
aquela educação que o autor chama de “educação bancária” tinha como objetivo desafricanizar
os nacionais. Tal desafricanização se fazia enfatizando o sentimento de inferioridade, de incapa-
cidade, em face do fracasso africano. A materialidade de tal prática se dá ao incutir nas crianças e nos jovens o perfil da ideologia dominante que lhes ensinava qual era o seu papel: “o de seres in-feriores, incapazes, cuja única salvação estaria em tornar-se ‘brancos’ ou ‘pretos de alma branca’”
(Freire, 1978, p. 20).

Notamos que a negação e o silenciamento dos saberes das(os) estudantes vão se materializando por meio de um currículo colonizado/colonizador que reza que só há uma única cosmovisão vá-

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Teorias Pós-Colonialistas e Currículo

lida, a eurocêntrica. Ademais, tal currículo – o circuito seguido pela educação bancária – enxerga
as(os) estudantes como meros “depósitos” a serem preenchidos de acordo com as necessidades
de manutenção da sociedade moderna capitalista, por meio da Colonialidade. Contudo, Freire
alerta-nos de que

nos próprios “depósitos”, se encontram as contradições, apenas revestidas por uma exte-
rioridade que as oculta. E que, cedo ou tarde, os próprios “depósitos” podem provocar um
confronto com a realidade em devenir e despertar os educandos, até então passivos, contra
a sua ‘domesticação’ (Ferreira, 2005, p. 35).

Nessa direção, percebemos uma aproximação entre Freire e o que Mignolo (2011, p. 28) chama de pensamento de fronteira, que “fuerte surge de los desheredados, del dolor y la fúria de la fractura de sus historias, de sus memorias, de sus subjetividades, de su biografía”. Essa fronteira é o espaço
para que comecemos a desaprender as versões que nos “transmitem” como verdade, para rea-
prendermos a partir da construção de uma pedagogia decolonial. Para tanto, Freire (2005) aponta que a conscientização dos oprimidos de sua condição de subalternização não é suficiente para sua
libertação. Tomar consciência é o primeiro passo em busca da libertação das amarras coloniais/
imperiais, pois o autor mostra:

Como poderão os oprimidos, que hospedam o opressor em si, participar da elaboração,
como seres duplos, inautênticos, da pedagogia de sua libertação? Somente na medida em
que se descubram “hospedeiros” do opressor poderão contribuir para o partejamento de
sua pedagogia libertadora (Freire, 2005, p. 34).Partindo da advertência de Freire, compreendemos a “Opção Decolonial que significa pensar a

partir da exterioridade e em uma posição epistêmica subalterna vis-à-vis à hegemonia epistêmica que cria, constrói, erige um exterior a fim de assegurar sua interioridade” (Migonolo, 2008, p.
304). A opção decolonial não é um ato fácil; relacionando ao que Freire (2005, p. 35) nos explica a
respeito da conscientização, podemos ver que

A estrutura de seu pensar [a dos oprimidos] se encontra condicionada pela contradição
vivida na situação concreta, existencial, em que se “formam”. O seu ideal é, realmente,
ser homens, mas, para eles, ser homens, na contradição em que sempre estiveram e
cuja superação não lhes está clara, é ser opressores (...), não queremos dizer que os
oprimidos, neste caso, não se saibam oprimidos. O seu conhecimento de si mesmos,
como oprimidos, se encontra, contudo, prejudicada pela “imersão” em que se acham na
realidade opressora.

Ao considerar a malvadeza da Colonialidade entendemos o imperativo que se coloca ao oprimido
de perceber que hospeda o opressor para poder se libertar. Na tensão contra os efeitos da Colo-
nialidade está, como vimos, a decolonialidade que assume um caráter que ultrapassa a descoloni-
zação, pois pressupõe a viabilidade de lutas contra a Colonialidade a partir das pessoas e de suas
práticas sociais, políticas e epistêmicas. Por isso, romper com a Colonialidade pressupõe romper
com a dicotomia ensinar e aprender:

Se toda dicotomia entre ensinar e aprender, de que resulta que quem ensina se recusa a
aprender com aquele ou aquela a quem ensina, envolve uma ideologia dominadora, em
certos casos, quem é chamado a ensinar algo deve aprender primeiro para, em seguida,
começando a ensinar, continuar a aprender (Freire, 1978b, p. 16).

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Guilherme Paiva de Carvalho

É nesse sentido que entendemos a importância da construção de uma pedagogia decolonial, a
qual, na perspectiva de Walsh (2010), representa pensar uma práxis baseada na criação e na cons-
trução de novas condições sociais, políticas, culturais e de pensamento. Ou seja, implica na cons-
trução de uma noção e visão pedagógica que se projeta muito além dos processos de ensino e de
transmissão de saber, a qual concebe a pedagogia como política cultural.

Assim, partimos do pressuposto que a construção do conceito de pedagogia decolonial tem rela-
ção com as formulações e práticas educacionais presentes em Fanon e Freire, as quais ressaltam a
necessidade de humanização e de libertação dos povos subalternizados, ou em suas palavras, dos
damnés, do oprimido. Nas obras de Fanon e Freire percebemos que a humanização e a libertação
se fazem na assunção do protagonismo histórico construído pelos próprios sujeitos desprovidos
de poder, ou melhor, impedidos historicamente de se reconhecer como sujeitos de direito, assu-
mindo, dessa forma, a condição de subalternos.

Dessa forma, entendemos que a construção de tal pedagogia decolonial se faz a partir do ato de se assumir como sujeitos históricos, sujeitos esses capazes de modificar a realidade opressora como
uma forma de desaprender tudo o que foi imposto pela Colonialidade e pela desumanização para
reaprender a ser mulheres e homens, em suas mais variadas condições: racial, social, de gênero, sexual, religiosa, territorial, geracional, enfim.
Podemos dizer que se assumir como sujeitos históricos é tomar consciência de si e do mundo,
isto é, participar do processo de decolonialidade e de humanizar-se na perspectiva freireana. Hu-
manizar-se humanizando o mundo, nessa ótica, decolonizar-se não pode ser um ato meramente
individual, ninguém se humaniza sozinho, a humanização, na perspectiva freireana, se faz em co-munhão. Por isso Freire (2005, p. 34) afirmava que “a pedagogia do oprimido tem de ser forjada
com ele e não para ele, enquanto homens ou povos, na luta incessante de recuperação de sua
humanidade” (grifos do autor). Para tanto, é necessário um processo de “radicalização [que] é
sempre criadora, pela criticidade que a alimenta” (Freire, 2005, p. 25), portanto, libertadora. O
processo de humanizar-se nas perspectivas fanon-freireana e decolonial é dizer-se e não aceitar
ser dito por outro. É fazer-se na história e não ser feito pela história de outro. Mas tanto dizer-se
como fazer-se não ocorrem de forma isolada, é na relação consigo e com o outro que nos humani-
zamos e nos libertamos.

Assim, a decolonialidade é uma dinâmica radicalmente dialógica entre diferentes e iguais na
construção de cenários interculturais e de sujeitos de direitos. Mas de sujeitos que são capazes
de se enxergar no “espelho da rainha má” (SEGATO; ÁLVAREZ, 2016), de forma que se perce-
bam de maneira solidária e não condescendente por meio de uma praxis decolonizadora como
mostra Maldonado-Torres (2007a, p. 09): “Es de esta forma que se evitaría la creación de mo-
vimientos descolonizadores con pensamiento e ideología colonizada, y la formación de pensa-miento de descolonización cuyos productores continúan con prácticas sociales e intelectuales
colonizadoras”.

Para tanto, é imprescindível a compreensão de que “ensinar não se esgota no ‘tratamento’ do objeto ou do conteúdo, superficialmente feito, mas se alonga à produção das condições em que
aprender criticamente é possível” (Freire, 1996, p. 29). E, além de possível, é necessário. Assim, a
educação das relações étnico-raciais não é possível a não ser na criticidade radical materializada
na prática educativa decolonial. Essa se tece na inquietude, na indignação de quem educa e de
quem é educado mutuamente.

19

Teorias Pós-Colonialistas e Currículo

Assim, compreendemos que a pedagogia decolonial:

es una forma de (des)aprendizaje: desaprender todo lo impuesto y asumido por la coloni-
zación y deshumanización para reaprender a ser mujeres y hombres. Solo ocurre la desco-
lonización cuando todos - individualmente y colectivamente - participan en su derrumbe
(Walsh, 2009, p. 62).

Para Walsh (2009, p. 14), a pedagogia decolonial:

se entiende más allá del sistema educativo, de la enseñanza y transmisión de saber, y como
proceso y practica sociopolítico productivo y transformativo asentado en las realidades,
subjetividades, historias y luchas de la gente vividas en un mundo regido por la estructu-
ración colonial.

A pedagogia decolonial é, assim, um processo em marcha, tal como a decolonialidade. Seu objetivo
é transgredir a lógica que impôs a negação sistemática de todas(os) aquelas(es) que se distancia-
vam do padrão imposto pela Colonialidade, e esse é um caminho da desaprendizagem que por
meio da educação das relações étnico-raciais e dos conceitos aqui mobilizados, contribui para
ampliar e construir uma práxis curricular de enfrentamento do racismo.

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Guilherme Paiva de Carvalho

Notes for understanding colonized /
colonizing curricula and for
building a decolonial and anti-racist
pedagogy

Abstract:
The present paper presents a theoretical review
about the main concepts mobilized by the Moder-
nity/Coloniality Group, in order to understand the
causes and consequences of the discourses pro-
duced by the colonized/colonizing curricula or a
Banking Education, in opposition to the need to
build a Liberating Education through decolonial
pedagogies. The analysis proposed here is located
within Coloniality, that is, in the exteriority of mo-
dern discourse, to support anti-racist and decolo-
nial curricular praxis.
Keywords: Coloniality. Colonized/Colonizers Cur-
ricula. Decolonial Pedagogy. Anti-racist Pedago-
gies.

Apuntes para la comprensión de los
currículos colonizados/colonizadores y para
la construcción de una pedagogía decolonial
y antirracista

Resumen:
El presente trabajo presenta una revisión teórica
sobre los principales conceptos movilizados por el Grupo Modernidad/Colonialidad, con el fin de
comprender las causas y consecuencias de los dis-
cursos producidos por los currículos colonizados/
colonizadores o por una Educación Bancaria, en
oposición a la necesidad de construir una Educaci-
ón Libertadora a través de pedagogías decolonia-
les. El análisis que aquí se propone se ubica dentro
de la Colonialidad, es decir, en la exterioridad del
discurso moderno, para sustentar la praxis curri-
cular antirracista y decolonial.
Palabras clave: Colonialidad. Currículos Coloni-
zados/Colonizadores. Pedagogía Decolonial. Pe-
dagogías Antirracistas.