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Revista TOMO, São Cristóvão, v. 42, e17757, 2023
DOI: 10.21669/tomo.v42i
Data de Publicação: 10/01/2023
Dossiê: Teorias Críticas Decoloniais
O feminismo decolonial de María Lugones:
colonialidade, gênero e interseccionalidade
Guilherme Paiva de Carvalho1
Resumo:
O estudo aborda as concepções de María Lugones sobre colonialidade de gênero e interseccionalidade, en-
fatizando sua perspectiva feminista decolonial. Na análise do sistema colonial/moderno de gênero a partir
da perspectiva da colonialidade, María Lugones desenvolve a concepção de “colonialidade de gênero”. Em
sua teoria crítica do sistema de gênero colonial/moderno enfatiza-se a intersecção de raça, classe, gênero
e sexualidade, considerando a “colonialidade de gênero” como característica estrutural das sociedades co-
lonizadas. Assim, na teoria da interseccionalidade, múltiplas formas de opressão constituem relações com-
plexas de poder. Essa perspectiva teórica estabelece uma relação entre as categorias conceituais de gênero,
raça, classe e sexualidade. A epistemologia do feminismo negro é uma referência para a concepção de inter-
seccionalidade. Na perspectiva decolonial de María Lugones, a compreensão da colonialidade, a noção de
gênero e as relações de poder constituem a base da ideia de múltiplas opressões interseccionadas. A teoria
interseccional mostra as resistências às relações de poder, associadas a experiências e práticas de coali-
zão. No artigo, as resistências e práticas de coalizão são analisadas a partir da produção intelectual negra
brasileira. Para tanto, utiliza-se como referência a formação de quilombos no Brasil. A partir da teoria da
interseccionalidade de María Lugones e do pensamento negro brasileiro, as comunidades africanas e afro-
-brasileiras, constituídas no período colonial, são compreendidas como formas de resistência às relações de
poder e uma concepção ética de coalizão.
Palavras-chave: Interseccionalidade. Colonialidade de Gênero. Poder. Opressão. Resistência.
IntroduçãoO pensamento da filósofa argentina María Lugones se constitui como uma proposta epistemo-
lógica decolonial, concebida a partir de referenciais teóricos que enfatizam a perspectiva da in-
terseccionalidade em suas análises. Em seus escritos, Lugones propõe uma teoria interseccional
para tratar do sistema moderno/colonial – o qual integra a estrutura epistêmica e cultural do
capitalismo – criticando a separação entre as categorizações de raça, classe, sexualidade e gênero. A relação interseccional entre raça, classe, sexualidade e gênero reflete-se no cotidiano de socie-
1 Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN). Faculdade de Filosofia e Ciências Sociais. Programa de Pós-Gra-duação em Ciências Sociais e Humanas (PPGCISH/UERN)). Mossoró, Rio Grande do Norte (RN), Brasil; E-mail:guimepaiva-
carvalho@gmail.com. https://orcid.org/0000-0002-1165-576
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dades colonizadas, em sistemas complexos de opressão e nas práticas de resistência às relações
de poder.
Ao desenvolver uma teoria sobre a “colonialidade de gênero”, María Lugones (2008, p. 75) mos-
tra que a separação entre raça, classe, gênero e sexualidade como categorias distintas mantém a
invisibilidade das “mulheres de cor”2 e de grupos sociais subalternizados. Assim, as “mulheres
de cor” e os grupos subalternizados não se enquadram no padrão moral, étnico-racial e social de
humanidade concebido pelo sistema moderno/colonial. Ademais, ao centralizarem o debate no
processo de racialização, os estudos decoloniais invisibilizam a discussão de gênero. Com o con-
ceito de colonialidade de gênero pretende-se enfatizar a interseccionalidade entre as categorias
raça, gênero, sexualidade e classe. No “sistema de poder capitalista global”, a colonialidade de gê-
nero “permanece na intersecção de gênero/classe/raça [...]” (Lugones, 2014, p. 939). Desse modo,
o feminismo decolonial de Lugones evidencia as resistências às relações de poder, teorizando as
coalizões que buscam resistir às múltiplas opressões.
Com a hegemonia do sistema moderno/colonial – incorporado por estruturas sistêmicas e simbó-licas por meio do sistema-mundo capitalista – o paradigma da filosofia e da ciência ocidental se
impôs como o modo mais apropriado para a produção do conhecimento. Esse paradigma episte-mológico é definido como racional e universal, atendendo os interesses econômicos e geopolíticos
de grupos dominantes no sistema capitalista. A separação entre sujeito e objeto constitui a base da epistemologia ocidental hegemônica, a qual legitima o processo de objetificação, controle e exploração da natureza. Assim, a natureza objetificada pode ser explorada, devastada e destruída
para promover o acúmulo de capital. Por meio de mecanismos de dominação do sistema moderno/colonial, pessoas são objetificadas,
assujeitadas e desumanizadas. De acordo com valores culturais hegemônicos e concepções pres-
critivas de gênero predominantes na cultura ocidental, a heterossexualidade é concebida como
padrão normativo de comportamento. Assim, gays, lésbicas, transexuais, travestis e pessoas que adotam modos de identificação e expressão da sexualidade diferentes da heterossexualidade si-tuam-se fora dos padrões de comportamento da cultura dominante, sendo classificados como
“anormais” ou “não humanos”. Nas práticas cotidianas, essas pessoas são vítimas de violência,
sofrimentos psicológicos e opressões múltiplas, as quais relacionam-se com o entrecruzamento
interseccional das categorizações conceituais de sexualidade, raça, gênero, classe, geração, terri-
tório e nação. Como padrão de poder mais duradouro do que a colonização, a colonialidade nega,
silencia e oculta as ontologias, as cosmologias e os modos de viver no mundo que se diferenciam
dos padrões hegemônicos estabelecidos pelo capitalismo global por meio de estruturas epistêmi-
cas e simbólicas do sistema moderno/colonial. Contudo, há formas de resistência às relações de
poder e modos de coalizão. Para refletir sobre o feminismo decolonial proposto por María Lugones, o artigo3 subdivide-se em
três partes. A primeira parte aborda o conceito de colonialidade, evidenciando as críticas suscita-
das por María Lugones e a ênfase atribuída às relações de gênero. O conceito de colonialidade de gênero desenvolvido pela filósofa tem uma relevância significativa para abordar a intersecciona-
2 Para Lugones (2003), a noção de “mulheres de cor” remete a uma ideia de coalizão para compreensão das múltiplas formas de opressão e resistência, bem como a movimentos sociais e “a uma coalizão orgânica entre mulheres indígenas, mestiças,
mulatas, negras”, chicanas, guaranis e outras que são vítimas de múltiplas formas de opressão da “colonialidade de gênero”.
3 O presente estudo corresponde ao recorte de uma pesquisa mais ampla sobre a interseccionalidade, que conta com o apoio financeiro do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).
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O feminismo decolonial de María Lugones
lidade. Na segunda parte é destacada a teoria da interseccionalidade e a concepção de opressões múltiplas. Para tratar da perspectiva decolonial da filósofa argentina, a última parte explora as
relações de poder, as práticas de resistência e a noção de coalizão. Nessa parte, utiliza-se como
referência a produção intelectual negra brasileira para analisar a formação do Quilombo de Pal-
mares, no período colonial, como forma de resistência e uma concepção ética de coalizão.
1. Colonialidade, poder e relações de gênero
A temática da colonialidade é abordada pelo Grupo Modernidade/Colonialidade. Dentre os/as te-
óricos/as que discutem esse tema, María Lugones (2008) cita o sociólogo peruano Aníbal Quijano
(1992, 2000, 2014, 2014a). No entanto, são suscitadas críticas à teoria da colonialidade de Quija-
no, pois a sua concepção de gênero, segundo Lugones (2008), se aproxima das estruturas biológi-
cas associadas a uma compreensão eurocêntrica e dicotômica da sexualidade, ligada à heterosse-
xualidade normativa. Dois eixos constituem as bases das relações de poder no sistema capitalista
globalizado: a colonialidade e a modernidade.
O padrão de poder torna-se mundial com o processo de globalização do capitalismo. A coloniali-
dade4 se constitui como o padrão de poder da sociedade capitalista, baseado na classificação racial e étnica das populações. Situada no contexto de exploração das populações indígenas e africanas
pelos povos europeus, a colonialidade é constitutiva da modernidade. Assim, a modernidade, o
eurocentrismo, a expansão do sistema capitalista e a colonialidade se correlacionam, formando
eixos que estruturam um padrão de poder global.Na tradição filosófica do Ocidente, a modernidade é associada aos processos de racionalização e
secularização relacionados com o projeto do Iluminismo de emancipação, esclarecimento e for-mação de uma sociedade racional (Touraine, 1994; Habermas, 2000). No entanto, autores euro-peus que tratam da modernidade, como Touraine (1994) e Habermas (2000), pouco ou nada fa-
lam sobre a relação entre o sistema moderno, a colonização e a invenção das Américas. Ademais, na análise do Iluminismo não são sequer mencionados os posicionamentos sexistas de filósofos
como Kant e Rousseau (Carvalho, 2004), ou o ocultamento/silenciamento das mulheres na histó-ria do pensamento filosófico ocidental. Filósofas iluministas como Olympe de Gouges, Mary Wollstonecraft e Émilie du Châtelet perma-
neceram no esquecimento até praticamente o século XX. Ao evidenciar o pensamento extempo-râneo de Olympe de Gouges no contexto do século XVIII, Christine Escallier (2012) revela que, no
contexto da Revolução Francesa, os princípios da igualdade, justiça e liberdade eram direcionados somente para os homens brancos e europeus. Tal aspecto evidencia o sexismo que caracteriza a
cultura ocidental e o sistema moderno/colonial, introjetado nas estruturas simbólicas e sistêmi-
cas das sociedades colonizadas.
Mesmo com a independência das antigas colônias, a colonização permanece agindo no imaginário
das sociedades colonizadas (Quijano, 1992). Entre os grupos dominados, o acesso e a incorpora-
4 Quijano (2014, p. 285) estabelece uma diferenciação entre “colonialidade do poder” e “colonialismo”. A colonialidade carac-
teriza-se por ser mais duradoura do que o colonialismo. Assim, mesmo com a independência política das colônias permanece a
colonialidade como estrutura epistêmica e simbólica do sistema moderno/colonial, sendo difundida pelo processo de globalização
do capitalismo.
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ção da cultura europeia propiciavam o controle social e a participação nas instâncias do poder
colonial. Na América Latina, a colonização resultou no extermínio de milhões de indivíduos, bem
como na conversão de grupos sobreviventes em excluídos de sua própria terra, tornando-se pes-
soas subalternizadas que foram obrigadas a deixar seus modos de produção, subsistência e suas
formas de existência. A noção de colonialidade do poder possibilita a reflexão acerca das relações de dominação impos-tas pelos povos europeus às sociedades indígenas e diversificadas etnias africanas escravizadas,
considerando seus desdobramentos para o Ocidente e o mundo. Na história da invasão de territó-rios ocupados por grupos étnicos com identidades culturais diversificadas, conduzida pelos povos
europeus, o assassinato e a violência dirigidos a pessoas, grupos e sociedades se baseiam em inte-
resses econômicos de apropriação e usurpação de riquezas. A missão civilizatória de catequização
de povos considerados primitivos e selvagens, inicialmente, e, posteriormente, a violência pratica-da contra seres humanos concebidos como inferiores por teorias raciais justificaram a imposição
da cultura europeia, tida como superior, moderna e civilizada.
De acordo com Mignolo (2017, p. 4), “ocultadas por trás da retórica da modernidade, práticas eco-nômicas dispensavam vidas humanas” na colonização, além disso, “o conhecimento justificava o
racismo e a inferioridade de vidas humanas, que eram naturalmente consideradas dispensáveis”.
A modernidade é marcada pela invenção da América, a expropriação de territórios habitados por
povos nativos, a mercantilização de pessoas de diversas etnias africanas escravizadas e o projeto de colonização. Durante o período colonial, Espanha, Portugal, Inglaterra e Holanda disputaram
o controle sobre o comércio de povos africanos escravizados e as terras indígenas na região que
denominaram América. No pensamento filosófico ocidental, homens brancos europeus conceberam a universalidade da razão. Enquanto a filosofia medieval no Ocidente buscou unir cristianismo e helenismo, a filosofia
moderna elegeu a racionalidade como o elemento que constituía a natureza do ser humano. Nesse
sentido, apenas o homem europeu civilizado era considerado como dotado de racionalidade e, por
conseguinte, representante da noção de humanidade.
Enquanto o colonialismo consiste na dominação e na exploração por meio do controle administra-
tivo dos modos de produção e do trabalho em um local onde vivem grupos étnicos de diferentes
identidades culturais, realizadas por uma autoridade política situada em uma outra jurisdição, a
“colonialidade do poder” é um fenômeno que se estende para além do período colonial. Esse fenô-
meno envolve relações complexas de poder nas dimensões ontológicas, epistemológicas, sociais,
políticas e econômicas (Quijano, 1992).
A modernidade europeia coincide com a construção de “um paradigma universal de conhecimen-
to e de relação entre a humanidade e o resto do mundo” (Quijano, 1992, p. 14). Para a epistemolo-gia ocidental eurocêntrica, somente a cultura europeia pode ser definida como racional. “A cultura
europeia passou a ser um modelo cultural universal” (Quijano, 1992, p. 13). Outras culturas são
inferiores, fator que legitima as desigualdades. A relação entre sujeito e objeto fundamenta o para-
digma epistemológico da modernidade europeia. Em ciências como a Antropologia e a Etnologia,
as “relações ‘sujeito’ – ‘objeto’” se estabelecem “entre a cultura ‘ocidental’ e as demais” (Quijano,
1992, p. 16). Na visão de Aníbal Quijano (2000), a modernidade se caracteriza pela imposição de um modo específico de produção do conhecimento relacionado com a objetivação e o controle da natureza. Desse modo, o Ocidente se coloca como Sujeito que desvenda o Outro (América, Oriente e África) como objeto, levando à objetificação de pessoas e grupos sociais. Os outros tornam-se
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O feminismo decolonial de María Lugones
sujeitos subalternos que, “no contexto da produção colonial”, não possuem história nem podem falar (Spivak, 2010, p. 67).
É importante salientar que esse domínio se associa a contextos históricos específicos, como
observa Mignolo (2017, p. 5), que distingue o domínio ibérico e católico com a liderança de
Espanha e Portugal (1500-1750), da etapa “liderada pela Inglaterra, França e Alemanha (1750-
1945)”, além da “fase americana estadunidense, liderada pelos Estados Unidos (1945-2000)”.
A península ibérica e outras regiões da Europa tornam-se periféricas à medida que as relações
de poder se deslocam no continente europeu, direcionando-se, na metade do século XX, para os
Estados Unidos.
O modo de produção do conhecimento desenvolvido na modernidade europeia atendeu às ne-
cessidades e aos interesses do sistema capitalista. Dessa forma, a relação entre sujeito e objeto, a quantificação, a objetivação e o conhecimento produzido foram importantes para o controle das
pessoas e da natureza. Como ressalta Quijano (2014, p. 287), a tradição iluminista do século XVIII criou o mito da Eu-
ropa moderna, estabelecendo dicotomias e diferenças entre “inferiores e superiores, irracionais
e racionais, primitivos e civilizados, tradicionais e modernos”. Com o paradigma epistemológico
ocidental, os sujeitos subalternos são conceitualizados como inferiores. Para ascenderem à condi-
ção de ser humano precisam se apropriar dos valores culturais, do modo de ser, da linguagem e do
modelo de produção de conhecimento eurocêntricos.Com a modernidade surgem as classificações raciais e as identidades culturais. “Europeu”, “índio”,
“africano”, “asiático”, entre outras categorias, consistem em “identidades ‘raciais’” (Lugones, 2008,
p. 79). Assim, enquanto os homens brancos europeus se concebem como seres humanos, os povos colonizados são definidos como não humanos. “Os europeus se consideraram seres de razão e
consideraram a razão como a característica central do ser humano. A introdução da dicotomia ra-
cial requer que os colonizados sejam constituídos como seres sem razão” (Lugones, 2012, p. 130).
À medida que o colonialismo europeu se expandiu, as populações existentes no mundo passaram
a ser classificadas de acordo com identidades raciais baseadas em uma lógica dicotômica e
hierárquica entre moderno/tradicional, superior/inferior, civilizado/selvagem, moderno/
primitivo. Assim, a modernidade, o eurocentrismo, a expansão do sistema capitalista e a
colonialidade se correlacionam, formando eixos que estruturam um padrão de poder e o controle
da sexualidade, do trabalho, da autoridade em relação à coletividade, bem como da subjetividade/
intersubjetividade, dos recursos e da produção (Quijano apud Lugones, 2008). Ramón Grosfoguel
(2008, p. 115) se refere às “relações de poder globais” que caracterizam “o sistema mundo euro-
peu/euro-americano moderno/capitalista colonial/patriarcal”. No entanto, na visão de Lugones
(2008), a problemática de gênero permanece negligenciada na análise do sistema moderno/co-
lonial.
Para Lugones (2008), ao sustentar uma “noção de sexo hiperbiologizado” (Curiel, 2014, p. 50), a
teoria de Quijano apresenta uma lacuna no tocante a aspectos importantes relacionados com a
problemática de gênero e a intersecção entre as múltiplas formas de opressão. Além de uma visão
biológica da sexualidade, a concepção de colonialidade do poder em Quijano desconsidera a inter-
seccionalidade entre raça, classe, gênero e sexualidade. A partir desse posicionamento observa-se que permanecem na teoria da colonialidade de Quijano “o dimorfismo sexual, a heterossexualida-
de, a distribuição patriarcal de poder e outras” concepções relacionadas a uma visão dicotômica,
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binária e hierárquica de gênero (Lugones, 2008, p. 82). María Lugones (2008, p. 83) sugere que, na
perspectiva de Quijano, “o sexo parece ser inquestionavelmente biológico”. Por isso, acrescenta-se
a colonialidade de gênero às relações de poder características do sistema-mundo global. Formas
múltiplas de opressão aparecem interseccionadas, interligando raça, gênero, sexualidade e classe
social.
Em vez da intersecção, a noção de gênero em Quijano é associada a formas de organização do
sexo, de seus recursos e produtos que caracterizam o sistema moderno/colonial. A disputa pelo
controle do sexo ocorreria somente entre os homens. “A interseccionalidade revela o que não se
vê quando categorias como gênero e raça se conceptualizam como separadas uma da outra” (Lu-
gones, 2008, p. 81).
Desse modo, a teoria da colonialidade do poder em Quijano menospreza as formas de opressão
interseccionadas, as quais são experienciadas por mulheres subalternizadas por relações raciais,
geracionais, classistas e de gênero. Nesse sentido, o feminismo decolonial proposto por Lugones
oferece subsídios teóricos para pensar em opressões múltiplas, na colonialidade de gênero e na
interseccionalidade. Por meio da teoria da interseccionalidade enfatizam-se as práticas de resis-
tência às relações de poder e as formas de coalizão. A colonialidade de gênero situa-se “no ponto
de partida da coalizão”, buscando “o lócus fraturado que resiste” às relações de poder (Lugones,
2014, p. 948). As críticas suscitadas pela epistemologia feminista negra e a ideia de intersecção de opressões de raça, classe, gênero e sexualidade têm importância significativa para a filosofia
feminista decolonial de María Lugones.
2. Interseccionalidade e múltiplas formas de opressão Segundo Ochy Curiel (2014), María Lugones (2008) propõe o conceito de feminismo decolonial.
Como crítica ao feminismo hegemônico, branco, ocidental, heterossexual e burguês, o feminismo decolonial enfatiza a interseccionalidade múltipla das opressões. As mulheres do Terceiro Mundo,
chicanas, afro-americanas e indígenas compõem o feminismo decolonial.
Ao abordar a intersecção entre raça, classe, sexualidade e gênero, María Lugones (2003, 2008,
2012, 2014) formula o conceito de “colonialidade de gênero”. Na análise do sistema moderno/colonial, a filósofa argentina toma como referência “o conceito de interseccionalidade”, tendo em
vista que essa noção “tem demonstrado a exclusão histórica e teórico-prática das mulheres não-
-brancas das lutas libertárias levadas a cabo em nome da Mulher” (Lugones, 2008, p. 77). Dessa
maneira, a perspectiva do feminismo das mulheres de cor questiona as teorias universalistas a partir da interseccionalidade. “A crítica contemporânea ao universalismo feminista feita por mu-
lheres de cor e do terceiro mundo centra-se na reivindicação de que a intersecção entre raça, clas-
se, sexualidade e gênero vai além das categorias da modernidade” (Lugones, 2014, p. 935). Entre
as teorias que são referência para a concepção de interseccionalidade destacam-se as perspectivas de Kimberlé Crenshaw, Audre Lorde, Gloria Anzaldúa, Patricia Hill Collins, dentre outras.
Para tratar da interseccionalidade, María Lugones (2008) cita, entre outras teorias, as perspec-tivas de Kimberlé Crenshaw (1991), Patricia Hill Collins (2000) e Gloria Anzaldúa. Ao analisar a
violência contra as mulheres de cor, Kimberlé Crenshaw (1991) utiliza o conceito de interseccio-
nalidade para enfatizar as múltiplas dimensões que envolvem a interrelação entre raça, gênero,
classe e sexualidade. Outra referência importante para a teoria da interseccionalidade de María
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O feminismo decolonial de María Lugones
Lugones (2008) é o pensamento feminista negro de Patrícia Hill Collins (2000). Segundo Collins
(2000), o pensamento feminista evidencia como as práticas de violência na sociedade norte-ame-ricana apresentam uma relação com opressões simultâneas de raça, gênero e classe.Ao retomarem a história da interseccionalidade, Patricia Hill Collins e Sirma Bilge (2020) des-tacam a importância dos movimentos sociais, do ativismo político e da produção intelectual de
mulheres afro-americanas, chicanas, latinas, asiático-americanas e indígenas nos Estados Unidos,
durante a segunda metade do século XX. Autoras afro-americanas e asiático-americanas denun-
ciaram o entrecruzamento de opressões em ensaios, poemas, livros, na arte e em outros meios (Collins; Bilge, 2020).Nesse sentido, destaca-se a relevância do pensamento feminista chicano de autoras como Gloria
Anzaldúa (1987), que escreveu o livro “Borderlands/La Frontera”. A consciência mestiça se situa
no espaço intermediário e relacional da fronteira. Nesse espaço habita a cultura chicana, uma
cultura de fronteira. Obras como “Irmã outsider”, de Audre Lorde (2007), e “Mulheres, raça e clas-
se”, de Angela Davis (2016), evidenciam a interconexão entre raça, classe, gênero e sexualidade
na análise das relações de poder. Ademais, as autoras mencionadas participaram de movimentos
sociais em defesa da justiça, do reconhecimento de direitos e da igualdade (Collins, 2000). Nas
décadas de 1980 e 1990, a teoria da interseccionalidade institucionaliza-se no ensino superior
nos Estados Unidos.
A linguagem adotada por Anzaldúa (1987) no livro “Borderlands/La Frontera” remete à cultura da
fronteira, com a junção do inglês com o espanhol chicano. A cultura chicana está relacionada com a
ancestralidade indígena dos povos astecas. No entanto, trata-se de uma cultura caracterizada pela
mestiçagem. Na perspectiva de Anzaldúa (1987, p. 21), a identidade chicana “está fundamentada
na história de resistência da mulher indígena”.
Em Audre Lorde (2007), as opressões se entrecruzam já que a ideia de superioridade dos homens e a
noção da heterossexualidade como padrão dominante se associam a um racismo estrutural. Mulher
negra, lésbica, socialista e poetiza, Audre Lorde (2007) aponta as múltiplas formas de opressão que
recaem sobre grupos sociais oprimidos pelo racismo, sexismo, heterossexualidade e exploração de
classes. O livro “Pedagogia do oprimido” de Paulo Freire é mencionado por Audre Lorde (2007) para
tratar das formas de opressão que constituem as subjetividades das pessoas oprimidas.
No meio acadêmico, o termo “interseccionalidade” é sistematizado por Kimberlé Crenshaw (1989, 1991). O artigo, intitulado “Cartografia das margens: interseccionalidade, política de identidade e
violência contra as mulheres de cor” (Crenshaw, 1991), propicia a entrada da noção de intersec-cionalidade no círculo acadêmico, legitimando o seu campo de investigação nas Ciências Sociais e Humanas. A análise das experiências de vida de mulheres de cor que sofreram práticas de violên-
cia, realizada por Crenshaw (1991), dá destaque para pessoas marginalizadas no meio acadêmico e na sociedade dos Estados Unidos (Collins; Bilge, 2020). Repensar “a violência como problema
social”, por exemplo, possibilita uma compreensão mais ampla de “desigualdades sociais comple-
xas” associadas a “formas heterogêneas de violência” (Collins, 2015, p. 12).
Para a teoria da interseccionalidade, o poder se apresenta “como um fenômeno multidimensional” (Collins, 2017, p. 22). Sistemas de opressão interseccionados caracterizam formas de dominação
de grupos oprimidos na geopolítica global. Em países como os Estados Unidos e o Brasil, os siste-
mas de opressão de raça, classe e gênero se diferenciam, pois esses se correlacionam com as es-pecificidades no tocante à formação histórico-social de cada sociedade. Na perspectiva de Patricia
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Hill Collins (2000 apud Curiel, 2014, p. 54), na matriz de dominação da sociedade capitalista “in-
teratuam o racismo, a heterossexualidade, o colonialismo e” a luta de classes. Ochy Curiel (2014) ressalta a importância do conceito de interseccionalidade para a compreensão das múltiplas for-
mas de opressão. As relações de poder que submetem as mulheres negras se associam a “uma matriz de dominação historicamente específica, caracterizada por opressões interseccionadas”
(Collins, 2000, p. 127).
“A dominação sempre envolve tentativas de objetivar o grupo dominado” (Collins, 2000, p. 71). O
pensamento feminista negro enfatiza “a relação de interdependência entre a opressão interliga-
da que tem moldado as escolhas e, por outro, as ações das mulheres negras no contexto dessas
escolhas” (Collins, 2016, p. 114). Assim, é preciso considerar as estruturas interseccionadas de
opressão existentes em um determinado sistema social. Em suas bases de fundação, as opressões
interseccionadas relacionam-se com “conceitos interdependentes de pensamento binário, dife-rença de oposição, objetificação e hierarquia social”, bem como “em relações de superioridade e
inferioridade” (Collins, 2000, p. 71). Nesse sentido, nega-se o status de sujeitos humanos às mu-
lheres afro-americanas, indígenas e asiáticas.
Como ferramenta metodológica de análise da vida social e política, a concepção de intersecciona-
lidade ressalta o modo como raça, classe, gênero, sexualidade, etnia, nação, religião e geração se entrecruzam mutuamente, envolvendo complexas relações de poder (Collins; Bilge, 2020). De que modo compreender fenômenos sociais como a desigualdade social? Seria possível analisar a partir da exploração de classes (Marx; Engels, 1999) ou considerando a reprodução das desigualdades sociais por meio da instituição escolar e da distribuição desigual do capital cultural (Bourdieu;
Passeron, 1992). No entanto, a desigualdade social pode envolver outros fatores relacionados com a classificação e a discriminação racial, a divisão e a hierarquização de gênero, a xenofobia, a into-lerância religiosa, bem como questões que envolvem a heterossexualidade normativa e/ou o sta-
tus de cidadania. Por exemplo, pesquisas realizadas no Brasil mostram como crianças pertencen-
tes a famílias adeptas de religiões de matriz africana tendem a esconder as suas crenças religiosas na escola (Carvalho; Silva, 2018).
A noção de interseccionalidade como ferramenta metodológica evidencia que a causa de fenô-
menos como a desigualdade social não se reduz a um fator isolado, podendo envolver múltiplas
dimensões de maneira mútua. Raça, classe, gênero, sexualidade, geração, etnicidade, nação e reli-gião constituem relações de poder que se refletem em formas de opressão entrecruzadas. Assim, o
uso da interseccionalidade como ferramenta analítica pressupõe considerar as intersecções entre
racismo, exploração de classe, sexismo, nacionalismo e heterossexismo na análise de fenômenos
como a desigualdade social, as relações de poder, os múltiplos aspectos da violência ou a noção de justiça social (Collins; Bilge, 2020). A compreensão da “intersecção das opressões de gênero,
classe, sexo e raça nos capacita a reconhecer as relações de poder entre as mulheres brancas e as
de cor” (Lugones, 2014a, p. 74). Temas como as relações de gênero nas sociedades colonizadas podem ser analisados a partir da interseccionalidade. No âmbito da filosofia, María Lugones propõe uma ressignificação da colonia-
lidade e das relações de poder, tomando como referência a teoria da interseccionalidade. Apesar da imposição de relações de poder pelo sistema moderno/colonial, enfatiza-se na filosofia de-
colonial de Lugones (2008, 2014) as resistências e as iniciativas de coalizão para a luta contra a
opressão.
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O feminismo decolonial de María Lugones
3. Relações de poder, resistências e coalizão
As resistências às relações de poder e às múltiplas formas de opressão são evidenciadas pela teoria da in-
terseccionalidade. María Lugones (2014) destaca a importância das resistências às formas de opressão.
A posição de fronteira concebida por Gloria Anzaldúa (1987) pode ser relacionada com a concepção de
Lugones (2008) acerca de um pensamento de fronteira. Nesta parte do artigo propõe-se uma articulação
entre as ideias de Lugones, a teoria da interseccionalidade e a produção intelectual negra brasileira,
dando destaque para a formação do Quilombo dos Palmares como prática de resistência e coalizão. A
reflexão acerca do referencial teórico-epistêmico da filósofa argentina com a produção intelectual negra
brasileira sobre o quilombo como resistência é obra do autor do artigo.
María Lugones (2008, 2014, 2014a) destaca as práticas de resistência às relações de dominação, propon-
do uma filosofia decolonial. “A noção de que as opressões se interseccionam ou interconectam-se está
presente no trabalho de muitas mulheres de cor feministas nos Estados Unidos” (Lugones, 2014, p. 73).
A perspectiva decolonial de Lugones (2003, 2014a) enfatiza a importância da ideia de coalizão como
uma forma de contraposição e resistência às múltiplas opressões. Tais questões são abordadas no livro
“Pilgramages/Peregrinajes” (Lugones, 2003). Ressalta-se, nessa obra, a lógica da resistência caracteri-
zada por movimentos complexos que levam indivíduos e grupos sociais a serem oprimidos por sistemas
de poder e a resistirem à opressão. Mesmo considerando o sistema global de poder do capitalismo, é
preciso “pensar o processo sendo continuamente resistido e resistindo até hoje” (Lugones, 2014, p. 942).
Desse modo, além da lógica da opressão, é importante considerar a realidade a partir de uma lógica de
resistência às relações de poder. Lugones (2014a, p. 77-78) mostra que as resistências podem apresentar
um “significado cultural” em campos diversificados como na música, nas artes ou na teoria, “constituída
por diferentes conhecimentos”. Saberes, práticas e histórias de resistência fazem frente ao conhecimento
eurocêntrico imposto como modelo no processo de colonização. Daí a importância de retomar memórias
que refletem “culturas de resistência”.
O processo de colonização dos povos indígenas levou ao “apagamento das práticas comunitárias eco-
lógicas, saberes de cultivo, de tecelagem, do cosmos [...]” (Lugones, 2014, p. 938). No lugar dessas
práticas se estabeleceram práticas de exploração da natureza para o acúmulo de capital. “Toda a natureza
estava e segue estando concebida como instrumento do homem humano (uma tautologia) para si, para
acumular riqueza infinitamente, extraída de todo o natural” (Lugones, 2012, p. 130).
O pensamento eurocêntrico instituiu um “racismo/sexismo epistêmico”, distinguindo os saberes consi-
derados inferiores do conhecimento racional e universal produzido por homens do Ocidente (Grosfo-
guel, 2016, p. 27). As perspectivas das mulheres ocidentais e não ocidentais são silenciadas, ocultadas e
segregadas do modelo hegemônico do pensamento eurocêntrico e da racionalidade androcêntrica. Esse
paradigma se estabelece em sistemas de conhecimento nas Ciências Sociais e Humanas (Collins, 2016;
Grosfoguel, 2016). O feminismo decolonial e as teorias da interseccionalidade aprendem com as histó-
rias de resistência ao sistema moderno/colonial (Lugones, 2014).
No pensamento filosófico de María Lugones (2003, 2014, 2014a) é evidenciada a possibilidade de
ressignificação de histórias de resistência às relações de poder. Na história da colonização do
Brasil, por exemplo, práticas de resistência à escravização são destacadas por autores e autoras
que se situam em posições outsiders em relação à epistemologia hegemônica. Autores e autoras como
Beatriz Nascimento (1985), Lélia Gonzalez (1982) e Clóvis Moura (1993) abordam formas de resistên-
cia às relações de poder e iniciativas de coalizão. São “modos de ser, de valorar e crer que tem persistido
na resposta de resistência à colonialidade” (Lugones, 2011, p. 116).
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Guilherme Paiva de Carvalho
Assim, enfatiza-se a importância de uma “ética de coalizão-em-processo” relacionada com práticas
de resistência às relações de poder. Essa concepção caracteriza-se como um “movimento em direção
à coalizão que nos leva a conhecer uns aos outros como seres densos”, como pessoas e comunidades
“em relação, em socialidades alternativas e baseados em modos tensos e criativos de habitar a diferença
colonial” (Lugones, 2011, p. 111). No tocante à colonialidade de gênero, interessa a Lugones (2014, p.
948) retomar histórias de resistência às relações de poder “para compreender profundas coalizões entre
mulheres de cor [...]”.
A proposta do presente estudo é articular a perspectiva epistemológica da filósofa com o pensamento
afro-brasileiro para compreender a formação da comunidade de Palmares como um ato de resistência
às relações coloniais de poder a partir de processos de coalizão. Abdias do Nascimento (2002, p. 70)
considera o Quilombo dos Palmares como “o primeiro governo de africanos livres nas terras do Novo
Mundo, indubitavelmente um verdadeiro Estado africano – pela forma de sua organização socioeconô-
mica e política [...]”.
Ao retomar a história colonial no Brasil, Beatriz Nascimento (1985) evidenciou as resistências dos po-
vos africanos à escravização por meio da formação de quilombos durante a colonização. O quilombo é
concebido como forma de resistência política e social baseada na solidariedade, apresentando-se, por-
tanto, como um modo de coalizão. Para Beatriz Nascimento (1985, p. 48), em sua trajetória histórica, “o
quilombo serve de símbolo que abrange conotações de resistência étnica e política”. Com base em prin-
cípios éticos de coletividade e desenvolvimento sustentável, a concepção da terra em Palmares revela-se
como um modo de contraposição ao modelo da monocultura imposto pelo mercantilismo econômico da
coroa portuguesa durante a colonização.
Por sua vez, Lélia Gonzalez (1982, p. 18) considera os quilombos como “formações sociais alternativas”
que subverteram o sistema colonial, contrapondo-se “ao regime escravista”. Na perspectiva de Lélia
Gonzalez (1982, p. 57), o quilombo de “Palmares foi o autêntico berço da nacionalidade brasileira, ao
se constituir como efetiva democracia racial e Zumbi, o símbolo vivo da luta contra todas as formas de
exploração”.
Clóvis Moura (1993) enfatiza a resistência e o caráter de contestação do quilombo em relação ao sis-
tema escravocrata. A sociedade de Palmares é vista como “a negação, pelo exemplo de seu dinamismo
econômico, político e social, da estrutura escravista-colonialista” (Moura, 1993, p. 62). Mesmo com a
destruição de Palmares, os movimentos de resistência ao sistema escravocrata se espalharam por toda a
extensão do território nacional. De acordo com Moura (1993, p. 33), a produção agrícola nos quilombos
não se limita “à monocultura das plantations, mas, pelo contrário, aproveitando-se dos recursos naturais
regionais e de elementos retirados das fazendas e dos engenhos, dinamizaram uma agricultura policul-
tora-comunitária”.A filosofia decolonial de María Lugones oferece subsídios teóricos para uma análise do sistema
moderno/colonial e das práticas de resistência e coalizão na sociedade brasileira. Em suas teorias,
Beatriz Nascimento (1985) e Lélia Gonzalez (1982) destacam a intersecção entre raça, gênero e
classe, enquanto Clóvis Moura (1993) evidencia o entrecruzamento entre raça e classe. Nessas
teorias pode ser observada a ênfase atribuída às práticas de resistência ao poder. O Movimento Negro Unificado no Brasil pode ser compreendido como uma proposta de coalizão e resistência a
múltiplas formas de opressão.
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O feminismo decolonial de María Lugones
Considerações finais
No sistema capitalista global, a lógica da opressão hierarquiza homens, mulheres e pessoas que não se enquadram no paradigma de humanidade do sistema moderno/colonial. Há uma distinção
entre humanos e não humanos. Os povos subalternizados são inferiorizados e concebidos como
não humanos. A hierarquização de gênero, classe e raça ocorre por meio de categorizações dicotô-micas, modelos hegemônicos e classificações raciais que inferiorizam e desumanizam indivíduos
e grupos sociais subalternos.
O modelo categorial de construção do conhecimento da epistemologia ocidental separa as noções
de raça, classe, gênero e sexualidade, desconsiderando a intersecção entre essas categorias. Da
mesma maneira, o feminismo ocidental adotou como referência um conceito de mulher universal
associado a uma visão da mulher branca e heterossexual como norma. Mulheres indígenas, mesti-
ças, negras e de outras etnias não são representadas, sendo concebidas, assim, como subalternas.
Desse modo, a teoria da interseccionalidade propõe um enfoque epistemológico que enfatiza o ca-
ráter interseccional de raça, classe, gênero e sexualidade. Esse enfoque analítico revela a exclusão
das mulheres de cor nas teorias do feminismo hegemônico. Na filosofia decolonial de María Lugones, a interseccionalidade pode ser entendida como uma
estratégia metodológica para compreensão da realidade, das formas múltiplas de opressão e das relações de poder. A partir da interseccionalidade é possível ressignificar problemas sociais como,
por exemplo, a violência, as relações de poder, a educação, as mídias, entre outras questões sociais. No pensamento filosófico, María Lugones realiza um giro epistemológico, tomando como referên-
cia a concepção de interseccionalidade para tratar da colonialidade de gênero e das relações de
poder.Assim, o uso da interseccionalidade como ferramenta analítica possibilita a ressignificação de re-
lações de poder interseccionadas de classe, gênero, sexualidade, raça e nação. É possível analisar uma diversidade de temas por meio da perspectiva interseccional. A filosofia decolonial proposta
por María Lugones oferece subsídios teóricos para retomar as práticas de resistência e coalizão
de pessoas e grupos subalternizados. Nos estudos decoloniais, a perspectiva interseccional de
Lugones propicia uma visão mais abrangente acerca de problemas sociais como a desigualdade, a
violência e o racismo em sociedades constituídas pelo sistema moderno/colonial.
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Guilherme Paiva de Carvalho
María Lugones’s decolonial
feminism: coloniality, gender and
intersectionality
Abstract: The study approaches María Lugones’s concep-
tions about coloniality of gender and intersec-
tionality, emphasizing her feminist decolonial per-
spective. In the analysis of the colonial/modern
gender system from the perspective of coloniality,
María Lugones develops the conception of “colo-
niality of gender”. In her critical theory of colonial/
modern gender system, she emphasizes the inter-
section of race, class, gender and sexuality, con-
sidering the “coloniality of gender” as a structural characteristic of colonized societies. So, in the in-
tersectionality theory, multiple forms of oppres-sion constitute complex relations of power. This
theoretical perspective establishes a relationship
between the conceptual categories of gender, race, class and sexuality. The Black Feminist knowledge
is a reference of the conception of intersectional-
ity. In María Lugones’s decolonial philosophy, the
understanding of coloniality, the notion of gender,
and power relations are the foundation of the idea of intersectional multiple oppressions. The inter-
sectional theory shows the resistances to power
relations, associated to experiences and practic-
es of coalition. In the article, the resistances and
practices of coalition are analyzed from the Brazil-ian black intellectual production. In order to do so,
it utilizes as reference the formation of Quilombos
in Brazil. From Maria Lugones’s theory of intersec-tionality and of the Brazilian black thought, the Af-
rican and Afro-Brazilian communities, constituted
in the colonial period, are understood as forms of
resistance to power relations and an ethic concep-
tion of coalition.
Keywords: Intersectionality. Coloniality of Gen-
der. Power. Oppression. Resistance.
El feminismo decolonial de María
Lugones: colonialidad, género e
interseccionalidad
Resumen:
El estudio aborda las concepciones de María Lugo-
nes sobre colonialidad de género e intersecciona-
lidad, enfatizando su perspectiva feminista deco-
lonial. En el análisis del sistema colonial/moderno
de género desde la perspectiva de la colonialidad,
María Lugones desarrolla el concepto de colonia-
lidad de género. En su teoría crítica del sistema de
género colonial/moderno, se enfatiza la intersec-
ción de raza, clase, género y sexualidad, conside-
rando la “colonialidad de género” como caracterís-
tica estructural de las sociedades colonizadas. Así,
en la teoría de la interseccionalidad, múltiples for-
mas de opresión constituyen complejas relaciones
de poder. Esa perspectiva teórica establece una re-
lación entre las categorías conceptuales de género,
raza, clase y sexualidad. La epistemología del pen-
samiento feminista negro es un referente para la
concepción de interseccionalidad. En la perspec-
tiva decolonial de María Lugones, la comprensión
de la colonialidad, la noción de género y las rela-
ciones de poder constituyen la base de la idea de
múltiples opresiones entrecruzadas. La teoría in-
terseccional muestra resistencias a las relaciones
de poder, asociadas a experiencias y prácticas de
coalición. En el artículo, las prácticas de resistencia
y coalición son analizadas desde el punto de vista de
la producción intelectual negra brasileña. Para tanto,
se toma como referencia la formación de quilombos
en Brasil. Desde la teoría de la interseccionalidad de
María Lugones y el pensamiento negro brasileño, las
comunidades africanas y afrobrasileñas, constitui-
das en el período colonial, son entendidas como
formas de resistencia a las relaciones de poder y
una concepción ética de coalición.
Palabras clave: Interseccionalidad. Colonialidad
de Género. Poder. Opresión. Resistencia.