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Moda e decolonialidade: colonialismo, vestuário e binarismo1

Heloísa Helena de Oliveira Santos2

Mi Medrado 3

Resumo:
Entendemos que o conceito moda compõe, em seu espectro histórico-sociológico, categorias criadas no seio
da “colonialidade do poder”. A um só tempo, a noção de moda associa capacidades intelectuais, produtivas,
culturais e espaço-temporais. Assim, perguntamos se há colonialismo nas primeiras publicações socioló-
gicas brasileiras que abordaram a moda, notadamente em Gilberto Freyre e em Gilda de Mello e Souza. O
objetivo deste trabalho é questionar como as diversas abordagens sobre o vestuário, desenvolvidas a partir
da epistemologia do eixo Norte, legitimam e produzem uma leitura que hierarquiza as relações de roupa,
modos e moda, reproduzindo e divulgando a concepção de que o vestir das sociedades não brancas está engessado ou é inferior. Dessa maneira, para verificar as dinâmicas e as lacunas de silenciamentos e apa-
gamentos que o projeto da modernidade impeliu como prática universal, propomos metodologicamente a
articulação do movimento decolonial aesthesis para verificar como a modernidade realizou o controle histó-
rico em parceria com o projeto colonial que deslocou e excluiu e tem resultado no sequestro da realidade e
a necessidade de evidenciar o que foi expulso da materialidade histórica e da estética da moda.
Palavras-chave: Moda. Caminho decolonial. Moda versus indumentária/traje. Gilda de Mello e Souza. Gil-
berto Freyre.

1. Colonialidade estabelecida: o materialismo histórico da moda no Brasil4

Émile Durkheim e Marcel Mauss afirmam que a classificação das coisas produz e reproduz a
classificação dos seres humanos. Um interessante postulado sociológico, especialmente quando
aplicamos essa afirmação às sociedades que realizaram o empreendimento colonial localizadas
no eixo Norte. Entendemos que a lógica de opressão e dominação que caracteriza a história
das sociedades europeias dialoga com a classificação das coisas nessas mesmas sociedades. Ao
observarmos o modo como as sociedades colonizadoras estabeleceram uma lógica classificatória

1 Artigo apresentado no Grupo de Trabalho “18 – Sociologias Emergentes, Estudos Culturais e Pós(De)coloniais”, no 20º
Congresso Brasileiro de Sociologia, SBS, em julho de 2021, Belém, Pará, Brasil.

2 Instituto Federal do Rio de Janeiro (IFRJ). Campus Belford Roxo. Rio de Janeiro, Brasil. Email:heloisa.oliveira@ifrj.edu.br.
https://orcid.org/0000-0002-8551-7564

3 Editora-chefe do Research Collective for Decoloniality and Fashion - RCDF. Los Angeles, CA. Estados Unidos. Email: mime-
drado@ucla.edu. https://orcid.org/my-orcid?orcid=0000-0001-7897-8488

4 Em defesa da luta contra a discriminação na academia, escreveremos o nome completo dos(as) autores(as) citados(as), assim será possível identificar o sexo deles e delas. Além disso, será negritado os nomes dos(as) autores(as) negros(as) e
caso saibamos que sejam pessoas pertencentes à população LGBTQIA+, os nomes estarão em itálico. A proposição segue
Maria Lúcia da Silva no livro “Raça e Gênero: discriminações, interseccionalidades e resistências” (2020).

Revista TOMO, São Cristóvão, v. 42, e17545, 2023
DOI: 10.21669/tomo.v42i

Data de Publicação: 10/01/2023
Dossiê: Teorias Críticas Decoloniais

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Heloísa Helena de Oliveira Santos; Mi Medrado

sobre o moderno e o não moderno, e a aplicaram ao restante do mundo, verificamos a necessida-de de refletir acerca da colonialidade que foi estabelecida e construída na narrativa da materiali-
dade histórica e no campo, que nos interessa em especial, da moda e da estética. Para o campo específico da moda, essa lógica classificatória foi construída em torno de uma oposi-
ção entre países que fazem moda e aqueles que não fazem moda, mas desenvolvem indumentária/
traje. Assim, o objetivo deste trabalho é questionar como as diversas abordagens sobre o vestuá-
rio, desenvolvidas a partir da epistemologia do eixo Norte, legitimam e produzem uma leitura que
hierarquiza as relações de roupa, modos e moda, reproduzindo e divulgando a concepção de que o
vestir das sociedades não brancas está engessado ou é inferior. A proposta é problematizar o bina-
rismo categórico da colonialidade moda (desenvolvida) versus indumentária/traje (primitiva).
Esse último relaciona os colonizados à concepção de tradição-cópia-indumentária, enquanto o
colonizador está associado à modernidade-inovação-moda.

A colonialidade do poder (Quijano, 2005), como ocorre em outros campos de saber, se caracteri-
za por relações estabelecidas pelo vestuário em sociedades colonizadas. Considerando que nor-mas, cânones e discursos engendram colonialidade e podem renderizar a realidade5, produzindo silenciamentos e apagamentos (Vázquez, 2020, p. 165), perguntamos: como essas classificações
contribuíram para a construção da lógica de hierarquização e inferiorização das vestimentas em
sociedades não brancas, incluindo a brasileira? Como a teoria e a prática podem ter adicionado
um legado colonial na produção do saber da moda brasileira? A via para encontrar as respostas
para essas questões, entendemos, se encontra na análise de autores que escreveram e narraram o
materialismo histórico da moda no Brasil.

As publicações de Gilda de Mello e Souza em “O espírito das roupas, a moda no Século dezenove”
(1950, 1987) e de Gilberto Freyre em “Modos de homem e modas de mulher” (1987) foram edi-tadas e publicadas como livro no fim da década de 1980. É relevante ressaltar que a obra de Gilda examinou a moda e o vestuário num momento da história brasileira marcado pelo fim da monar-quia portuguesa, por abolicionistas e intelectuais negros se engajando na luta pelo fim do sistema escravagista (1530-1888), pelo racismo científico em voga e pela economia e política em transição.
Já Freyre escreveu sobre o século XX e participou da elaboração e construção de uma ideia de socie-
dade brasileira moderna. Entretanto, os seus conceitos foram empreendidos desde perspectivas so-
ciológicas do eixo Norte e observaram o valor de troca estético e econômico do vestuário e da moda
na sociedade oligárquica burguesa que se estruturava. Mello e Souza balizou suas análises referen-
ciando o sociólogo inglês Hebert Spencer, o sociólogo alemão George Simmel e o sociólogo francês
Gabriel Tarde. Gilberto Freyre, por sua vez, dialogou com o antropólogo erradicado norte-americano
Edward Sapir e com os sociólogos estadunidenses William F. Ogburn e Meyer Nimkoff. A fim de criticar o binarismo “moda versus indumentária/traje” e desnaturalizá-lo, propomos um
trajeto cuja via é o caminho decolonial (Vázquez, 2020). Esse caminho, para o autor, é dividido em
quatro momentos: a) a modernidade e o seu controle histórico; b) a colonialidade, que desloca,
nega e a excluiu; c) a diferença colonial, que renderiza a modernidade/colonialidade, para assim;
d) articular o movimento de decolonial aesthesis, trazendo à luz reemergências, resistências, cura,
luto e aquilo que foi expulso da realidade histórica (Vázquez, 2020). É relevante ressaltar que a análise de Rolando Vázquez reflete sobre o campo da estética como lugar central para se refletir
5 Com renderização quer-se apontar esse efeito de sequestro da realidade que é remontada / renarrada a partir de uma edi-

ção do “real” empreendida pelo colonizador e que deliberadamente fragmenta a vida, posto que silencia e apaga momentos e desconstrói o continuum natural de tal populações. É, enfim, a produção das verdades dominantes.

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Moda e decolonialidade

sobre o processo colonial, sendo a estética um domínio da vida social equivalente à epistemologia,
de modo que “o nosso convite é ver, na forma mais habitual, e por vezes icônica, a morfologia do
olhar branco, a sua formação, a celebração e a sua violência oculta” (Vázquez, 2020, p. 3).

Vale notar que a análise da oposição binária “moda versus indumentária/traje” pela perspectiva
decolonial tem sido elaborada pelo grupo de pesquisadores membros do CoMoDe - Coletivo Moda
e Decolonialidade: Encruzilhadas do Sul Global. Este artigo apresenta alguns dos resultados des-sas reflexões. Somos professores e pesquisadores da sociologia, antropologia, artes, letras, muse-
ologia, teatro e design de moda e buscamos contribuir para as pesquisas realizadas na sociologia e
antropologia da arte, mas também para todo o campo de uma ciência social que critica categorias
estabelecidas como tradicionais e utilizadas nos estudos da vida social e cotidiana, assim como
para as pesquisas nas demais áreas que têm na moda seu objeto.

2. A moda como conceito da colonialidade

Não tem modernidade sem colonialidade.
(Ditado decolonial de Aníbal Quijano).

Como o nosso objetivo é examinar o esquema classificatório das categorizações das relações de moda
e vestuário, apresentamos a distinção entre moda, indumentária e traje proposta pelo CoMoDe. O conceito central para o entendimento desse conjunto categórico específico é o termo “moda”.
Ainda que frequentemente aplicado às mais diversas áreas de saber, a moda nomeia um campo específico de relações sociais, sobretudo aquelas em torno dos objetos de vestuário e seu valor de
troca. A noção de moda, na acepção comumente aceita no Ocidente, estabelece uma associação
entre vestuário e elementos relacionados à inovação, à criação e à modernidade. Compreendido
como um aspecto exclusivo de sociedades ocidentais europeias, o vestuário convenciona formas
de relacionar-se com roupas e adornos (Sahlins, 2003) e apresenta essa associação de maneira na-
turalizada. Ao ser administrado nessa acepção, torna-se popular e culturalmente aceito que essa
relação com o vestuário é exemplar, construindo a ideia de que apenas determinadas sociedades, temporal e localmente qualificadas, são capazes de permanentemente inovar em suas roupas e
adornos de maneira criativa.

O mito prevalente é que as cidades de Paris, Milão, Londres e Nova Iorque produzem moda, en-
quanto todas as outras, não. Um dos motivos é que essas sociedades localizadas no eixo Norte de-
senvolveram relação com a vida social pelo mundo produtivo: individualista e antitradicionalista,
sendo esse um “processo natural-pragmático de satisfação de necessidades [...] de aliança com a
economia burguesa no trabalho de aumentar a alienação das pessoas e coisas para um poder cog-
nitivo maior” (Sahlins, 2003, p. 188).

Em oposição à noção de moda e às noções a ela agregadas de inovação, criação e modernidade,
tem-se a ideia da indumentária/traje. Como indumentária inclui-se todo o conjunto de roupas que
caracteriza um determinado povo. Já o traje se refere às roupas tradicionais que um determinado
povo veste, usa para suas festividades ou manifestações culturais. Desse modo, por meio desses
termos, empreende-se uma valoração utilitária da empreitada modernidade/colonialidade em re-lação às populações que estão nas zonas de sacrifícios do sistema produtivo vigente, ou seja, nos
“locais designados como dispensáveis para o bem da atividade econômica” (Niessen, 2020, p. 4).

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Heloísa Helena de Oliveira Santos; Mi Medrado

O interessante desse processo é que ele permite ao colonizador manipular as noções de indumen-
tária e traje de maneira que a um só tempo explora e exalta o exotismo, de um lado, e, de outro, acusa esses povos de serem portadores de uma “ausência de dinâmica” porque, por longo período,
experimentam nenhuma ou pouca mudança em seus trajes. Assim, o conceito, que deveria ser ob-
jetivo, posto que parte de um esquema categorizador, é, na realidade, recheado de ambiguidades.

Nesse sentido, os discursos, as normas e a estética convencionados pelo binarismo “moda versus
indumentária/traje” tornam-se cúmplices e, por meio deles, se estabelece uma relação ambígua em suas lógicas de funcionamento, configurando e constituindo apagamentos. Tal binarismo de-
monstra uma inferiorização, que utiliza como pretexto o fato de essas sociedades não estarem in-
seridas em uma lógica de individuação dos corpos que se apresentaria por meio de uma constante
renovação das vestes. Contudo, as populações das sociedades “sem moda”, e que supostamente
estão fora da lógica da moda, são os trabalhadores precarizados dentro desse sistema produtivo e, assim, são parte inerente desse conjunto, mas ainda marginalizados dentro da divisão geográfica e
racial do trabalho (Quijano, 2005) que se estabelece dentro do capitalismo mundial. Esse aspecto aponta para um traço importante nos processos classificatórios da modernidade/colonialidade
em contexto da moda (desenvolvida) versus indumentária/traje (primitiva) (Santos, 2020).

Nesse sentido, é interessante trazer o conceito de “diferença colonial” conforme proposto na ar-
ticulação do movimento decolonial aesthesis de Rolando Vázquez. A noção dialoga com a obra de
Frantz Fanon
e de Aníbal Quijano e envolve o conjunto de processos de silenciamento que são es-
tabelecidos por meio do processo colonial que, a um só tempo, destroem as referências dos povos
colonizados, retirando desses povos seu direito à autodeterminação, e produzem o sistema epis-têmico do colonizador que se beneficia de silenciamentos e se apropria, em diversos momentos,
das noções, dos conceitos e das criações dos povos que dominam. Nesse processo, desdobra-se a
ambiguidade à qual nos referimos: ao povo colonizado, desprovido de seu direito à autodetermi-nação, é imposto um novo sistema classificatório que, desenvolvido pelo colonizador, passa a ser
a referência explicativa do mundo. Além da violência e da imposição dessas referências externas,
o colonizador tem administrado a seu bel-prazer o manancial categórico que ele mesmo criou, ar-
ticulando os conceitos de acordo com os seus interesses. Em muitos momentos, essa manipulação
envolve contradições e, no extremo, paradoxos, que são amplamente aceitos, uma vez que o em-
preendimento colonial não precisa ser coerente e se impõe por meio do uso legítimo da violência.

No sentido que aqui analisamos, a “diferença colonial” se desdobra em ambiguidade. Quando aplicamos, de um lado, a reflexão sobre a noção de moda e, de outro, de indumentária e de traje
percebemos que essas categorias, ainda que opostas e geralmente utilizadas de maneira hierár-quica, podem ser ressignificadas de acordo com a necessidade daquele que tem autoridade da fala; sendo a autorização para a realização dessa ressignificação também ambígua e coerente com
as hierarquias estabelecidas nas diversas interações6.

6 Lembramos aqui a discussão trazida por Segato (2012). Ao analisar a questão de gênero entre habitantes do Parque Xingu
no Mato Grosso, a autora empreende interessante análise sobre a administração do conceito de cultura pelos homens de tal sociedade. A opressão sobre as mulheres é justificada por meio de um argumento culturalista de que aquela sociedade
“sempre foi assim” (tradição). A autora, nesse ponto, traz a questão da cooptação dos homens pelo empreendimento colo-
nial – e, hoje, pela “gestão colonial estatal” (Segato, 2012, p. 118-9) – e revela como o conceito de cultura pode ser utilizado
para oprimir toda uma sociedade (incluindo os homens) durante o empreendimento colonial e, ao mesmo tempo, evoluir, cooptar e ser objeto de administração por parte desse grupo (apenas os homens), a fim de oprimir o outro, no caso, as
mulheres. Tal opressão é realizada, como aponta a própria autora, com o suporte do Estado. Trata-se, assim, de um bom
exemplo de ambiguidade conceitual mencionada no texto.

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Moda e decolonialidade

A fim de falar sobre o conjunto histórico do vestuário europeu, por exemplo, é comum encon-
trarmos textos utilizando o termo indumentária para se referir aos trajes utilizados durante os
séculos. Essa utilização do termo, contudo, não desvaloriza esse conjunto de roupas. Na realidade,
a indumentária europeia é naturalizada como referência exemplar da evolução da humanidade
no campo do vestuário: de toda a humanidade, vale destacar, no sentido de que é realizado um
processo de universalização (Kilomba, 2019) da história da moda europeia no estudo da história
das modas locais que, no caso brasileiro, parece mesmo ter, magicamente, essa mesma origem, a
Europa.

Contudo, ao se referir, por exemplo, aos trajes de sociedades africanas, parece haver uma diferença
nos processos de associação entre o vestuário e os processos de mudança social. A literatura his-
tórica sobre a indumentária das sociedades, assim como frequentemente ocorreu na história, de
modo mais amplo, valoriza a indumentária egípcia e, posteriormente, insere a moda africana em uma espécie de caixa de “irrelevância” histórica, cuja falta de importância remete a uma suposta
ausência de capacidade desse povo de acompanhar as mudanças sócio-históricas que parecem
exclusivas à Europa.

É como se o vestuário do passado que compõe a indumentária dos europeus os tivesse conduzi-
do, de maneira evolutiva, “Á” moda. Por outro lado, a indumentária de povos colonizados, por sua
vez, os “sem história” e “sem moda” (Allman, 2004), os leva no tempo presente a um eterno devir.
Como resultado, só resta aos colonizados a prática da cópia da moda do colonizador, o retrato, a
renderização da modernidade que nunca estará ao alcance do colonizado.

Nas análises da história do vestuário brasileiro, mesmo quando debatida por autores daqui – como
na obra “Modos de homem e modas de mulher”, de Gilberto Freyre, em que o autor discorre sobre
penteados, vestidos, camisas e calçados presentes nas vestimentas do país desde o século XIX –,
a indumentária, ainda que bastante complexa, não é tratada como moda, sendo frequentemente compreendida como menor, deficiente e/ou relativa à reprodução e à cópia da moda europeia.
Como não existe modernidade sem colonialidade (Quijano, 2005), a cópia acrítica do vestuário
europeu pelos povos colonizados parece mesmo, em alguns momentos, uma espécie de traço psi-
cótico, uma vez que a cópia desse vestuário é relatada frequentemente como uma espécie de des-
tino inevitável, um processo totalmente submisso e apreciativo. Sendo esse, entendemos, um dos
vieses da moda como produtora da “diferença colonial”, pois “trata-se da disjunção entre as vidas
emolduradas pela modernidade e aquelas vividas sob a colonialidade” (Vázquez, 2020, p. xxii).

Essa diferença colonial, que desconsidera os processos de mudança de sociedades colonizadas, faz
parte daquilo que Frantz Fanon (2020) entendeu como a destruição das modalidades de existên-
cia e sistemas de referência das populações. Esse processo envolve, dentre outros, a desvaloriza-
ção das diversas produções desses povos. Para Fanon (2020), a destruição dos sistemas não tem
como intenção, contudo, a eliminação da sociedade, mas uma agonia continuada.

No entanto, a implantação do regime colonial não traz consigo a morte da cultura autócto-
ne. Pelo contrário, a observação histórica nos revela que o objetivo perseguido é mais uma
agonia continuada do que um desaparecimento total da cultura preexistente. Esta cultura,
outrora viva e aberta ao futuro, fecha-se, aprisionada na condição colonial, estrangulada pelo jugo da opressão. Simultaneamente presente e mumificada, depõe contra seus mem-bros. Com efeito, define-os sem apelo. A mumificação cultural leva a uma mumificação do
pensamento individual. A apatia tão universalmente perceptível dos povos coloniais não é
mais do que a consequência lógica desta operação. A acusação e inércia que constantemen-

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Heloísa Helena de Oliveira Santos; Mi Medrado

te se faz ao “indígena” é o cúmulo da desonestidade. Como se fosse possível que um homem
evoluísse de modo diferente que não no quadro de uma cultura que o reconhece e que ele
decide assumir. (Fanon, 2020, p. 67-8).Esse trecho nos aponta a importância da noção de tempo. E, como na análise de Fanon, entende-

mos que perceber a moda em contextos coloniais como inerte é desonesto e faz parte de um pro-
jeto de opressão e supressão. Por isso, faz-se necessário ir alargar o olhar e analisar as razões de
tais abordagens serem reproduzidas por intelectuais das sociedades colonizadas, como a nossa.

3. Moda, binarismo e colonialidade: a construção da subalternidade em Gilda de Mello e
Souza e Gilberto Freyre

Ao reconhecer a moda como produtora da diferença colonial, sintetizando normas, cânones e discur-
sos que renderizam silenciamentos e apagamentos (Vázquez, 2020, p. 165), examinaremos como
a dicotomia “moda versus indumentária/traje” foi narrada e embasada por definições teóricas vei-
culadas pelas escolas sociológicas do eixo Norte. O objetivo desta seção é observar como o “O espí-rito das roupas, a moda no Século dezenove” e “Modos de Homem, Modas de Mulher” refletiram o
materialismo histórico da moda e os movimentos entre vestuário e estética na sociedade brasileira.

As nossas categorias de análise seguirão o método decolonial. Assim, denotaremos como a mo-dernidade elaborou as capacidades intelectuais e autorizou um quadro teórico para afirmação e
circulação de si. Como a colonialidade demarcou modos de existir e diferenciou sistemas de refe-rências. E, por fim, como a “diferença colonial” tem sido um continuum nas narrativas sociocultu-
rais relativas à materialidade histórica da moda no Brasil.

3.1 Gilda de Mello e Souza

Todos os sociólogos concordam em que a moda se encontra em oposição aos costumes.
(Gilda de Mello e Souza, 1987).

O livro “O Espírito das Roupas, a moda no Século Dezenove” é fruto da tese de doutorado defen-
dida por Gilda de Mello e Souza, em 1950, sob orientação do sociólogo francês Roger Bastide. Em
1950, a pesquisa (texto e método) e Gilda sofreram críticas pelos pares da sociologia paulista.
Florestan Fernandes, em especial, reclamou do estilo ensaístico, de empregar teorias de Gabriel
Tarde e George Simmel e do rigor empírico (enquanto ele seguia o rigor sociológico durkheimia-
no). Na boca pequena, o tema foi considerado como fútil, de mulher (Pontes, 2007, p. 89).

O ensaio de sociologia estética “O Espírito das Roupas” foi publicado, sem alteração no texto, em
1987 pela editora Companhia das Letras, em São Paulo, e tem sido considerado uma “obra canô-
nica no campo da moda no Brasil” (Bonadio, 2017, p. 7). O seu recorte temporal é o Brasil nove-centista alinhado a gravuras, litografias, desenhos e caricaturas produzidos no eixo Norte naquele
mesmo período histórico, permeando discussões de arte, gênero e classe social. Aqui o nosso exer-
cício será observar como a narrativa contou o “modo pelo qual as pessoas se distribuem no espaço geográfico” (Mello e Souza, 1987, p. 10), sendo “as pessoas” aquelas pertencentes ao contexto brasileiro, à elite aristocrática e à geografia cultural urbana, em contraposição à vida no campo,
denotando seus bens de consumo e de posse, como terra, escravizados e família.

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Moda e decolonialidade

A narrativa moderna que veste o recorte da história contado no texto de Gilda nos remete ao uni-
versal e aos valores da Revolução Francesa. Para a autora, a democracia em exercício no século XIX
“anula os privilégios de sangue, [...] a moda se espalha por todas as camadas e a competição ferin-
do-se a todos momentos, na rua, no passeio, nas visitas, nas estações de água, acelera a variação de
estilo” (Mello e Souza, 1987, p. 10). Com isso, leitores e cientistas sociais são convidados a se apro-
ximar do tema a partir do cotidiano e das trocas na vida social e política; e posicionados diante do
quadro dominante do pensamento positivo gestado no século XIX, como suas gramáticas políticas, sociais e geográficas foram alicerçadas, construíram e regularam sentidos estéticos e sensoriais.Importante notar que a análise da documentação iconográfica esteve acompanhada por crônicas
de jornais e por testemunho de romancistas “cuja sensibilidade capta melhor que ninguém, nos meios elegantes, o acordo da matéria com a forma, da roupa com o movimento, enfim, a perfeita
simbiose que a mulher vive com a moda” (Mello e Souza, 1987, p. 24). Gilda continua, “Thackeray,
Balzac, Proust e os nossos romancistas brasileiros Alencar, Macedo e Machado dão-nos a visão dinâmica que nos faltava” (Mello e Souza, 1987, p. 24). Esse momento histórico-social que a nar-
rativa de “O Espírito das Roupas” enuncia como a elaboração das capacidades intelectuais foi au-
torizada e circulada, traz o ethos de como as transações comerciais e culturais foram construídas,
a partir do modelo de Gabriel Tarde, da imitação.

No prefácio, Alexandre Eulálio narra o processo de subjetivação da colonialidade, mediante as
práticas de imitação na cidade do Rio de Janeiro, citando os quinzenários: A Moda Mais Recente,
Gazeta da Boa, Sociedade e da Família, mas, sobretudo, destacando o papel editorial do Jornal das
Famílias e A Estação ao publicar modelos de vestidos mais requintados (apesar das advertências
“contrafações e imitações estampadas”), oriundos do eixo Norte, apontar lojas de nível supremo e,
ainda, inserir no corpo da publicação textos dos escritores que “valiam a pena” – só desses (Eulálio
1987, p. 11).

Como indica o prefaciador, o recorte editorial apaga da história material da moda realidades e dinâmicas que foram consideradas como não correspondentes ao espírito da época. Espírito esse
que diferenciou modos de existir e sistemas de referências, demarcou quem eram os sujeitos e de-finiu as classes sociais que poderiam participar do “sistema democrático do século XX, quando os
desejos de prestígio se avolumam e crescem as necessidades de distinção e de liderança, a moda encontrará recursos infinitos de torná-lo visíveis” (Eulálio 1987, p. 25).
A capacidade produtiva da moda como gestora da violência, no fabricar da “disjunção entre as vi-
das emolduradas pela modernidade e aquelas vividas sob a colonialidade” (Vázquez, 2020, p. xxi),
é administrada pela noção de civilização e espaço-tempo. Referindo-se a Gilberto Freyre, a autora
chama atenção para a ostentação e a riqueza, “nos cavalos ajaezados de prata … no número de es-
cravos e na extensão das terras”. Mas, sobretudo, baliza a temporalidade moderno-inovação-moda
a partir da categoria eurocêntrica quando ressalta:

Em contraste com a vida europeizada dos burgueses de sobrado, esses rudes fazendeiros
ricos movem-se dentro do maior desconforto, dormindo em catres ou redes, habitando
casas nuas, com roupas guardadas em baús ou suspensa em cordas. A vestimenta, como o
interior das moradias, desconhece a moda (Mello e Souza, 1987, p. 118).Verificamos que o conceito moderno-inovação-moda funciona como dispositivo da narrativa so-ciológica e historiográfica que arquiteta a produção da diferença colonial, pois no meio urbano “é

através do consumo de bens e do requinte” (Mello e Souza, 1987, p. 117) que se julgará a respeita-

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Heloísa Helena de Oliveira Santos; Mi Medrado

bilidade de uma classe. E, no campo, as duas classes sociais que ela identifica – a dos proprietários ricos rurais e as camadas rurais – vão se opor às dinâmicas vestimentais da cidade. Uma vez que ainda estão atrelados a “glebas, fiéis à concepção medieval da vida e, enquadrados em sua posição,
repeliam com dignidade e pudor toda sugestão que os convidava a participar das manifestações
da moda” (Mello e Souza, 1987, p. 120).

No capítulo “A luta de classes”, e por meio das imagens apresentadas ao longo do livro, perce-
bemos que as classes reconhecidas no texto são compostas somente por sujeitos brancos. Com
breve passagens sobre a condição e sem absoluta menção às contribuições das pessoas negras na
sociedade material histórica da moda brasileira, o africano escravizado, no recorte sociológico de
Gilda, encontra-se na condição de bem de posse ou de alforriado. Para ela, mediante a abolição das
leis suntuárias, e, assim, “com o abrandamento das demarcações sociais o alforriado pode, através da vestimenta, identificar-se ao aristocrata rural” (Mello e Souza, 1987, p. 124). Nesse sentido, o
caminho para o negro na sociedade brasileira era o de embranquecer. Sem problematizar as categorias de demarcação e as elaborações do racismo científico que vi-
goraram no período em que ela observa, a autora costura sua argumentação teórica a partir dos valores do economista e sociólogo estadunidense Thorstein Veblen (1857-1929), que afirmou que
a roupa indica padrão pecuniário. Ainda assim, a autora ressalta como o francês Honoré de Balzac
(1799-1850) demonstrou o valor das roupas que

se transformaram, sucessivamente, em sinais materiais do maior ou menor número de
fantasias que tinha o direito de satisfazer, do maior ou menor número de homens, de pen-
samentos, de trabalhadores que lhe era possível explorar. Então um transeunte, apenas
olhando, distinguia um ocioso de um trabalhador, uma cifra de um zero (Mello e Souza,
1987, p. 125).

Desse modo, notamos como a moda foi articulada no século XIX e como o prazer, na modernidade,
se dá pela subjugação e humilhação de uma série de projetos de diferenciação. É possível perceber, como as dimensões urbanas e pecuniárias narradas por Mello e Souza reorganizam a dinâmica das
diferenças sociais e materiais da sociedade brasileira, mas o discurso da modernidade relativo ao
acesso produziu discrepantes acúmulos, denotando e excluindo lugares e pessoas, mobilizando
valores culturais e materiais.

Sabendo que essa obra, e narrativa, é canônica e é considerada um registro cultural e sócio-históri-
co da moda brasileira, faz-se necessário e urgente pensar como “moda versus indumentária/traje”
se desenharam e desenham categorias administradoras nas relações estabelecidas pelo vestuário em sociedades colonizadas; notadamente, verificando como se tornaram dispositivo que engen-
dram os contextos social e econômico dentro do sistema-mundo, que por meio da indústria da
moda estabeleceu o que se torna representativo da cultura material e de ideação que conforma e
administra uma identidade cultural subalterna.

3.2 Gilberto Freyre

“Modos de Homem, Modas de Mulher’’, de Gilberto Freyre, publicado em 1987, em São Paulo, pela
editora Global, é um livro que se caracteriza por reunir um conjunto de ensaios que discute a
moda no século XX a partir de variadas abordagens. Os ensaios ali presentes foram publicados
ao longo da vida do autor, de maneira que também não apresentam uma unidade temporal.

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Moda e decolonialidade

Contudo, é perfeitamente possível encontrar alguns conceitos centrais que, no tocante à moda,
permeiam as discussões de Freyre.

A primeira delas é a noção de ecologia, que é o conceito central para a construção de seu luso-tro-
picalismo. Ao falar sobre as “atuais modas de mulher e de homem, [que] no Brasil, já não são as
apenas imperialmente europeias” (Freyre, 1987, p. 151), o autor destaca a questão ecológica:

Uma das expressões mais significativas dessa insubmissão [às modas europeias] é a que vem partindo do Brasil. E como insubmissão brasileira, nesse particular, afirmação de dois
importantes brasileirismos, um ecológico, outro antropológico, os dois alongados numa
síntese brasileiramente cultural. Esses dois brasileirismos, um, expressão de uma tropica-
lidade, outro de uma situação antropológica, de projeções em modos de vida, estilos de cul-
tura, artes, língua, literatura, ciências sociais. E - decerto - em modas de mulher de acordo
quer com uma ecologia, em grande parte, tropical, como é a do Brasil, quer com uma situ-
ação antropológica da mulher brasileira - e de mulheres de país semelhante ao Brasil - que
as diferencia das ortodoxamente europeias. (Freyre, 1987, p. 151-2).

No trecho estão apontados alguns dos elementos que fundamentam a questão da ecologia: a loca-
lidade ou região, no caso, o Brasil, e o ambiente tropical que, juntamente com o elemento antropo-
lógico, produziria a diferença da mulher brasileira perante a europeia. É relevante nos debruçar-
mos brevemente sobre a noção de ecologia.De maneira muito ampla, podemos afirmar que, a partir de uma perspectiva sociológica, a ecologia
em Freyre busca avaliar as relações humanas em sua associação com elementos do meio natural
em que ele se insere, dos processos sociais que se desenvolvem em determinado ecossistema. Mas,
nada melhor do que as palavras do próprio autor para compreendermos os objetivos dessa área
que ele denomina ecologia humana. Para ele, trata-se do:

[...] estudo de processos e formas de vida regional em conjunto, de interação favorável ou
desfavorável à vida social humana em dada região, de distribuição, de situação e de movi-mento de população no espaço físico-social ou principalmente sócio-cultural ou só sócio-
-cultural (Freyre apud Meucci, 2006, p. 215).

Nesse estudo das formas da vida social humana em determinada região, Freyre entende mesmo
haver uma correlação entre o comportamento dos indivíduos ou de grupos sociais e o ambiente no qual estão inseridos. Ainda que possamos incorrer em excesso, é mesmo possível afirmar que
essa ecologia dialoga com certo determinismo ambiental. Como aponta ainda Simone Meucci
(2006, p. 216):

Freyre reconhece, pois, o caráter condicionante dos fatores ecológicos sobre o comporta-
mento social. Algumas sugestões nesse sentido estão contidas em vários exemplos citados
ao longo do livro. Num deles, Freyre se refere aos ‘tipos sociais’ como produto de um equi-
líbrio ecológico.Contudo, tal influência se ocuparia não apenas do caráter dos indivíduos ou dos grupos, mas tam-

bém de suas formas de organização social, como é o caso da economia, por exemplo. Essa per-
cepção formativa que se baseia nas características regionais, e que tem no Nordeste seu objeto
preferencial, incluiria a própria sociologia que, em sua versão ecológica local, teria formato pró-
prio que a distinguiria da versão europeia. Essas características teriam conformado o que o autor

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Heloísa Helena de Oliveira Santos; Mi Medrado

veio a denominar civilização luso-tropical, uma sociedade que seria marcada pela relação com o
ambiente brasileiro.Essas especificidades teriam papel fundamental, na percepção do autor, no processo de partici-
pação dos brasileiros no mundo. Nesse sentido, a noção de ecologia dialoga ainda com outro con-
ceito fundamental presente em alguns textos do “Modos”, que é a inserção pelo exotismo. Freyre
entendia que teríamos contribuições a dar que seriam decorrentes dessa relação com tal ecologia
particular. Esse exotismo permitiria uma inserção nesse contexto internacional e, por essa razão, deveria ser explorado. Essa especificidade tropical se estenderia para “espaços não tropicais”, ca-
racterizando nossa contribuição. Assim, reforça a relação entre a necessidade de se considerar a
ecologia local para melhor se criar/adaptar o vestuário:

[...] de modo específico, a de vestir-se, calçar-se, pentear-se a mulher ou o homem segundo
a sua idade, sua atividade, seu lazer,seu biótipo. E também de acordo com a ecologia ou o clima da região do país onde reside. Daí a importância de passar-se a considerar o vestir-se,
o calçar-se, o pentear-se do brasileiro, em geral, da mulher, da criança e do homem, em par-
ticular, de acordo com a ecologia em que está situada a maior parte da população. No caso,
a brasileira, que é, predominantemente, a tropical ou paratropical. Paratropical, por vir-se
estendendo a espaços não-tropicais, brasileirismos adaptados a trópicos e aí tão triunfan-
tes que vêm se expandindo. (Freyre, 1987, p. 157-8).

Dessa maneira, na discussão sobre a moda em “Modos de Homem, Modas de Mulher”, esse exo-
tismo aparece com frequência. Considerando nossa ecologia particular, Freyre acende o debate sobre a importância de nosso vestuário, penteados, dentre outros elementos, estarem em con-sonância com nossa experiência regional. Assim, nosso ambiente, produtor de tipos humanos e
de organizações sociais próprias, também teria inevitavelmente que produzir uma moda própria, coerente com esses tipos humanos oriundos dessa formação ecológica específica.

A chamada “moda científica” [moda desenvolvida por designers], para um futurólogo à
brasileira, isto é, relativista e pluralista, terá que atender a ecologias diferentes das euro-
peias. A situações culturais também diferentes. Divergindo, portanto, dos que acreditam
no triunfo de um mundo como uma, segundo dizem alguns desses futurólogos, “aldeia glo-bal”. Os indícios mais idôneos não parecem confirmar esse globalismo, senão em parte, de
modo algum, dominante. As variantes e mesmo criações brasileiras em modas de mulher,
de homem e de criança, é evidente que, para serem válidas - para o Brasil -, precisam de se
harmonizarem a uma ecologia tropical. (Freyre, 1987, p. 155).Essa afirmação de nossa especificidade ecológica e toda a percepção luso-tropicalista podem pa-

recer mesmo, a um leitor desavisado, dialogar com certa perspectiva pós-colonial, na medida em
que busca defender uma análise local da história e da cultura do povo brasileiro. Contudo, e este
será o tema da próxima seção, acreditamos que essa emancipação é construída de maneira muito
distinta daquela proposta por autores pós-coloniais, na medida em que toma a subalternidade
como princípio inextricável à própria existência social brasileira: ainda que busque fazer uma
crítica a ela, a colonialidade não é tomada como referência no trabalho, pois a construção da dife-
rença se pauta em certa crença racial de base ecológica.

Antes de seguir para o próximo ponto, é fundamental mergulharmos na questão racial. Em deter-
minado momento do texto, Freyre destaca como diferencial da aparência brasileira o crescente
“amorenamento” da população. Ao falar sobre o hábito de importação dos modelos e artigos de
países de climas temperados, o que incluía “brinquedos etnocêntricos”, o autor ressalta que:

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Moda e decolonialidade

Este, aliás - o etnocêntrico -, um importante aspecto da importação, pelo Brasil, de modelos
e artigos de modo e de moda em vigor em países europeus ou nos Estados Unidos, em que
a opção etnocêntrica da parte desses países contraria opções brasileira ligadas a situa-ções étnico-socioculturais criadas no Brasil por um beneficamente avassalador processo
de miscigenação. Processo em resultado do qual - que o diga o último censo - é crescente
o amorenamento, em vários graus de aparência, da gente ou da população brasileira.

(Freyre, 1987, p. 161, grifos nossos).

Em outro momento do livro, no texto “E o arianismo?”, que, infelizmente, não conseguimos identi-ficar a data em que foi escrito, Freyre observa sobre as revistas de moda que:
Note-se, aliás, que em boas revistas brasileiras de modas já não são excluídas, de tipos de
mulheres modelos de novos vestidos ou sapatos, morenas brasileiras acentuadamente mo-
renas, isto é, de ostensivos sangue não-arianos. O que, em não poucos casos, concorre para
o que nelas é beleza da mais impressionante. Desejável é que apareçam sugestões para
brasileiras de todo, ou quase de todo, pretas, embora o seu número seja reduzido. Mas
existem. São brasileiras. E brasileiras em ascensão social quanto as morenas.
Pelo
que é preciso que os designers e revistas elegantes não fechem os olhos a seus encantos,
devendo-se desejar, dos penteados a que se prestam seus tipos de cabelos, que inspirem a
esses designers soluções estéticas diferentes das convencionalmente arianoides, se deixa-
rem de ser esteticamente apreciáveis. (Freyre, 1987, p. 189, grifos das autoras do texto).

Percebe-se pelo trecho que, para o autor, as mulheres pretas eram minoria entre as brasileiras. Cabe perguntar se tal afirmação decorre de uma crença racista sobre os efeitos “positivos” da mis-cigenação e/ou se de uma total ignorância deliberada/apagamento de grande parte da sociedade, como era frequente na literatura brasileira romântica, na qual menções aos escravizados não eram
feitas ou eram evitadas. Essa diferença produzida pela ecologia tropical parece ignorar a existên-
cia mesmo de mulheres negras, assim como seu papel basilar na própria constituição da sociedade
brasileira. Esse fator é fundamental para a discussão que realizaremos a seguir.

4. Moda e sociedade brasileira: a construção para a decolonialidadeA fim de abrirmos esta seção, é relevante ressaltar que acreditamos que existe uma relação colonial
nos primeiros textos sociológicos brasileiros que abordaram a moda. Lélia Gonzalez já destacava o
viés eurocêntrico das ciências sociais (Ratts; Rios, 2010). Na tentativa de explorar a moda a partir
de uma perspectiva pluriversal e relacional (Mignolo, Walsh, 2018), buscando conexões e correla-
ções para criar e perturbar as maneiras como o universal e o global são percebidos, tratamos da
moda como construção eurocêntrica da produção do vestuário e do saber sobre ela. Na sequência, verificamos os impactos desse constructo teórico sobre as demais sociedades, com foco na socieda-
de brasileira e nas abordagens sobre a moda nas publicações sociológicas analisadas acima. Dessa maneira, para compreender as dinâmicas e lacunas mediante os silenciamentos e os apaga-
mentos que o projeto da modernidade/colonialidade impeliu como prática universal, é preciso re-
conhecer que a história que se tenta travar como universal da moda mobiliza sistemas de subjuga-
ção e racismos. Sobre isso, vale notar que “não é a falta de informação sobre a/o “outro/a” - como
acredita o senso comum que a inferiorização ocorre, mas sim a projeção branca, indesejável na/o
outro” (Kilomba, 2019, p. 117). O senso comum operacionaliza as narrativas esteticamente, e por

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Heloísa Helena de Oliveira Santos; Mi Medrado

isso acreditamos na urgência de pesquisar e desafiar: normas, cânones e discursos consolidados
e que esteticamente tramaram a história da moda sintetizando realidades, poluindo conhecimen-
tos, destruindo saberes e tensionando os laços sociais.

Como salienta Sandra Niessen (2020), o legado fracassado da era colonial não foi somente insu-ficientemente abordado, mas ofuscado por camadas de teoria e prática. Assim, para a formulação
de uma crítica radical à episteme colonial que opõe criação versus cópia, é preciso explorar as
narrativas que compõem a sociologia da cultura brasileira. Acreditamos que essa empreitada é
constituída por práticas coletivas, como redes, coletivos e grupos de pesquisa para criação de
teorias e práticas.

Como sabemos, embora Gilda e Gilberto estejam posicionados de modo distintos dentro do cam-
po das ciências sociais, e suas obras tenham sido produzidas em momentos diferentes, elas foram publicadas no mesmo ano e suas perspectivas flertam. Para nós, esse diálogo se estabelece em
torno daquilo que denominamos construção da subalternidade. Na teorização sobre a moda no
Brasil, a construção da subalternidade abrange:a) A afirmação continuada de que os processos em torno do vestuário no Brasil têm como refe-

rência o eixo Norte e que essas práticas foram estabelecidas centralmente por meio da cópia
de modelos e estéticas europeias, especialmente francesas;b) Essa reflexão envolve, em dados momentos, a confirmação da superioridade europeia que
se consolida por meio da generalização da experiência de sua modernidade em torno da
roupa, de um lado, e, de outro, da exclusão das experiências de outras populações da Améri-
ca portuguesa e, posteriormente, do Brasil independente.

Esses itens, contudo, não são estanques, posto que estão intimamente imbricados. Trata-se, em
linhas gerais, da construção de uma história linear para a sociedade brasileira que a entende como
uma espécie de continuidade da sociedade europeia. Mesmo quando ocorre um esforço de exalta-ção das características locais resultantes, elas acabam por centralizar a reflexão em torno de uma
elite branca local.

A história da moda brasileira é construída em torno da convicção de que a relação com a roupa e
com os adornos no Brasil se inicia com a vinda da família real para a colônia. Isso ocorre porque
acredita-se que um processo similar de individualização dos corpos, como aquele que se entende
haver ocorrido na Europa, processa-se na sociedade brasileira a partir de então. A corte teria pro-
duzido na América portuguesa um efeito de modernização que, no vestuário, se caracterizaria por
uma alteração profunda na relação com a moda: a partir daquele momento, o desejo local era ser
como um europeu nas vestes. Por mais que a historiografia ainda não tenha elementos para confirmar que esse foi o destino
inevitável da sociedade brasileira, o ponto que queremos destacar é outro e remete ao momento
anterior. Trata-se da vida na colônia. Ainda que seja conhecido o fato de que as manufaturas foram
proibidas no Brasil no século XVIII e que a única produção local de tecidos era daqueles utilizados
nas roupas dos escravizados, é inevitável perguntar do que se vestiam os colonos. Mesmo que acreditemos que a maioria ou todas as roupas fossem importadas, é bastante difícil acreditar que
não havia uma tecnologia local das roupas.

Com tecnologia, estamos falando de técnicas de costura, lavagem e passadoria das roupas que
efetivamente eram utilizadas aqui. O próprio Gilberto Freyre ressalta que as roupas utilizadas na

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Moda e decolonialidade

colônia dialogavam mais com formas orientais e africanas e daí trazemos a questão sobre como
essas roupas eram confeccionadas e cuidadas. O que desejamos apontar é que há grandes chances
de ter trabalho negro escravizado e tecnologia negra envolvidos na confecção e cuidado dessas roupas. Tal percepção pode ser confirmada pela presença de anúncios do trabalho de escravizados
como alfaiates e costureiras durante o século XIX (Freyre, 1979).

A pergunta é: será possível que durante todo esse período colonial não houve qualquer margem
para um desenvolvimento criativo local por parte desses escravizados? Muitos dos africanos que foram desembarcados no Brasil eram selecionados por suas competências profissionais, como é o
caso de africanos barqueiros e mineradores. Assim, será que aqueles que atuavam como alfaiates
e costureiros, especialmente quando consideramos as limitações coloniais, não utilizavam as tec-
nologias trazidas de seus países de origem para o desenvolvimento e manutenção das roupas? E
será que essas tecnologias não tiveram nenhum impacto sobre a moda local?O que se deseja enfrentar aqui é a narrativa presente em praticamente toda a historiografia sobre
as roupas no Brasil de que todo o vestuário aqui utilizado era cópia das versões europeias. Esse
tipo de percepção torna-se especialmente delicada quando nos debruçamos sobre o trabalho de
Mello e Souza e de Freyre que, quando discorrem sobre a moda, ignoram o trabalho dos escravi-
zados com as roupas, por um lado, e, por outro, centram suas análises numa perspectiva que se
volta para as elites, o que reproduz um tipo de análise eurocentrada sobre a moda. Nesse sentido,
apaga-se um conjunto de experiências relativas ao campo do trabalho e ao vestuário que, entende-
mos, resulta de uma lógica colonial de olhar, mesmo para um autor como Freyre que publicou uma obra sobre os anúncios das atividades profissionais dos escravizados e que ressalta a importância
de uma moda local. Percebe-se que essa narrativa claramente exclui um passado negro.

Contudo, o que mais impressiona é que essa narrativa não silencia apenas o trabalho dos escravi-
zados com as roupas, mas também repercute na invisibilização da presença estética negra durante
o século XX, pois quando Freyre discute a necessidade de se dialogar com a ecologia e a estética lo-
cais, a abordagem se volta unicamente para certa elite branca que reproduziria a moda europeia:
pior, trata as mulheres “morenas” e, especialmente, as negras como exceções nessa sociedade. As
negras, em particular, são como elementos estranhos a essa cultura, uma vez que, lembremos, há
“pretas, embora o seu número seja reduzido. Mas existem. São brasileiras. E brasileiras em ascen-
são social quanto as morenas” (Freyre, 1987, p. 189).Esses pontos, para nós, exemplificam a constituição da subalternidade acima mencionada que é,
fundamental ressaltar, profundamente racista/eugenista. Diante desse tipo de abordagem tradi-cional das narrativas empreendidas no pensamento social brasileiro, percebemos a importância
de iniciativas na produção do conhecimento como publicações, congressos, assim como as do Co-
letivo Moda e Decolonialidade: Encruzilhadas do Sul Global – CoMoDe, o qual integramos, que agrega professores e pesquisadores em diferentes áreas das ciências social e humana para refletir sobre a moda, de forma a interromper esse fluxo de reprodução de lógicas que reforçam nossa colonialidade e, dessa maneira, construir nossa decolonização. O objetivo, enfim, é tornar essa
prática uma contribuição para sairmos da cilada monocultural histórica e, assim, ampliarmos as
narrativas.

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Heloísa Helena de Oliveira Santos; Mi Medrado

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15

Moda e decolonialidade

Fashion and Decoloniality: Colonialism,
Clothing and Binarism

Abstract:
We understand that the Fashion concept com-
poses, in its historical-sociological spectrum, cat-
egories raised within the coloniality of power. At
the same time, the notion of Fashion associates
intellectual, productive, cultural, and space-time
capacities. Thus, we ask whether colonialism is in the first Brazilian sociological publications that
addressed fashion, notably in Gilberto Freyre and
Gilda de Mello e Souza. The objective of this work
is to question how the different approaches to
clothing, developed from the epistemology of the
North Axis, legitimize and produce a reading that
hierarchizes the relationships of clothing, man-
ners, and fashion, reproducing and disseminating
the conception that societies dress non-whites
is in a cast or is inferior. In this way, to verify the
dynamics and gaps of silencing and erasure that
the project of modernity impelled as a universal
practice, we methodologically propose the artic-
ulation of the decolonial aesthesis movement to
verify how modernity carried out historical con-
trol in partnership with the colonial project that
displaced and excluded and has resulted in the hi-
jacking of reality and the need to highlight what
was expelled from the historical and aesthetic ma-
teriality of fashion.
Keywords: Fashion. Colonial path. Fashion versus
tradicional costume. Gilda de Mello e Souza. Gil-
berto Freyre.

Moda y decolonialidad: colonialismo,
indumentaria y binarismo

Resumen:
Entendemos que el concepto de moda compone,
en su espectro histórico-sociológico, categorías
creadas dentro de la “colonialidad del poder”. Al
mismo tiempo, la noción de moda asocia capaci-
dades intelectuales, productivas, culturales y es-
pacio-temporales. Así, nos preguntamos si hay
colonialismo en las primeras publicaciones soci-
ológicas brasileñas que abordan la moda, en par-
ticular en Gilberto Freyre y Gilda de Mello e Souza.
El objetivo de este trabajo es cuestionar cómo los
diferentes enfoques del vestuario, desarrollados
desde la epistemología del eje Norte, legitiman y
producen una lectura que jerarquiza las relaciones
del vestuario, los modos y la moda, reproducien-
do y difundiendo la concepción de que el vestir de
las sociedades no blancas es enyesada o es inferi-
or. De esta manera, para constatar las dinámicas
y los vacíos de silenciamiento y borrado que im-
pulsó el proyecto de la modernidad como prácti-
ca universal, proponemos metodológicamente la
articulación del movimiento decolonial aesthesis para verificar cómo la modernidad ejerció el con-
trol histórico en sociedad con el proyecto colonial
que desplazados y excluidos y ha resultado en el
secuestro de la realidad y la necesidad de resaltar
lo expulsado de la materialidad histórica y estética
de la moda.
Palabras-clave: Moda. Camino decolonial. Moda
versus vestido tradicional. Gilda de Mello y Souza.
Gilberto Freyre.