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As viagens de Caliban na América Latina:
um estudo comparado entre Oswald de Andrade e Aimé Césaire

Rafael Marino1

Resumo:
A peça “A tempestade”, de William Shakespeare, teve ressonâncias profundas e diversas de seu contexto de
origem. Prova disso é que ela e seus personagens foram utilizados sistematicamente, e num espaço tempo-
ral alargado, para se pensar metáforas sobre a América – suas condições de colonização, disputas geopolí-
ticas, construção de identidades e cristalização de imagens a respeito do continente. O caso que aqui temos
em tela é um recorte desse quadro geral: pretendemos, aqui, estudar o chamado momento caliban do pen-
samento latino-americano. De forma mais precisa, intentamos fazer um estudo comparado das experiências
intelectuais de Oswald de Andrade e Aimé Césaire. O nosso objetivo com este estudo comparativo é oferecer
uma leitura sobre a constituição, as potencialidades e as limitações do calibanismo – que foi e é essencial
para conformações de imagens e ideias sobre a América Latina.
Palavras-chave: América Latina. Pensamento político e social latino-americano. Calibanismo. Estudos pós-
-coloniais/decoloniais. Identidades latino-americanas.

Introdução

O artigo que aqui temos em tela pretende desenvolver elementos importantes do chamado mo-
mento canibalesco do pensamento latino-americano. Para tal, o nosso recorte será um estudo comparativo a respeito de algumas obras de Oswald de Andrade e Aimé Césaire. A justificativa para este trabalho é que, refletindo sobre esse corpus intelectual que chamamos de canibalesco,
lograremos entender com maior acuidade ideias e imagens, cuja circulação é transnacional, que
foram decisivas para conformação de identidades políticas e culturais da América Latina e de pa-
íses a ela pertencentes.

Este trabalho se vincula, desse modo, a um esforço maior de compreender como personagens retirados da peça “A tempestade”, de Shakespeare, foram decisivos para se pensar, via identifica-
ção e metaforização, a América Latina (Ricupero, 2014, 2016, 2018a, 2018b), não só na esfera da
cultura, mas, sim, na conformação de identidades políticas as quais respondessem aos processos
de (des)colonização e de dominação da Europa e dos Estados Unidos frente aos países latino-ame-ricanos e que pudessem refletir sobre o que seria constitutivo em suas conformações identitárias
– seu povo, sua cultura, suas diferença, etc.

1 Universidade de São Paulo. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. Departamento de Ciência Política. São Paulo,
São Paulo, Brasil. E-mail: rafael.marino50@gmail.com. https://orcid.org/0000-0002-2659-6434.

Revista TOMO, São Cristóvão, v. 42, e16328, 2023
DOI: 10.21669/tomo.v42i

Data de Publicação: 10/01/2023
Dossiê: Teorias Críticas Decoloniais

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Rafael Marino

Os pressupostos que guiam este trabalho são, pelo menos, quatro. Em primeiro lugar, considera-
mos que produtos simbólicos variados, como peças, ideias e outros artefatos, têm uma vida e um
funcionamento que vão para além de seu contexto de origem (Brandão, 2005) e das trajetórias dos
atores que as pensaram ou as reinterpretaram (Botelho; Bastos, 2019). Em segundo lugar, esses
artefatos simbólicos variados podem ser entendidos como forças políticas e sociais que fornecem interpretações urdidoras de significados para as disputas políticas e intelectuais e para a própria
vida social (Bastos, 2002; Brasil, 2015; Schwarcz; Botelho, 2011; Brandão, 2005; Ricupero, 2011). Em terceiro lugar (Skinner, 2010, 2018), podemos afirmar que mesmo as ideias e as imagens mais
abstratas não estão acima das batalhas políticas e conceituais de um período. Nesse sentido, não
servem a essas como meros objetos de disputa, mas como as armas a partir das quais as contendas
são travadas. Por último, que artefatos simbólicos e convenções políticas e teóricas são usados e condicionados, contextualmente, por influxos políticos, ideológicos e materiais os quais estimu-
lam, enfatizam ou ofuscam determinados sentidos e aspectos da produção em questão (Skinner,
2002). Desse modo, a partir desses pressupostos, podemos explorar de forma mais estruturada
como personagens de uma peça – e a própria peça – de Shakespeare, escrita em 1611, possam ser
utilizados como metáforas para se pensar diversas disputas a respeito do caráter da colonização e suas heranças, identidades e os sentidos da América (Ricupero, 2014) – mais especificamente do
que se convencionou chamar de América Latina, cuja nomeação, ela mesma, passa pelas aventuras
desses personagens no referido subcontinente.A justificativa de fazermos um trabalho de comparação entre dois autores se dá pelos motivos seguintes: (i) parte significativa dos estudos sobre o calibanismo (Retamar, 2004; Monegal, 1978;
Vaughan, 1988) latino-americano não possui um caráter marcadamente comparativo entre obras e atores e (ii) esse caráter comparativo é eficiente para evidenciar o escopo, as potencialidades e
os limites dessa forma de metaforização sobre a América Latina. Dessa forma, resta-nos comentar
sobre a escolha de Aimé Césaire e Oswald de Andrade. Se o primeiro autor é comum de ser visto nas revisões e artigos sobre o calibanismo, o segundo é mais raro, salvo exceções como Monegal (1978) e Jáuregui (2008). Ademais, parte considerável desses trabalhos se concentra nas décadas
de 1950 e 1960, sendo que a produção intelectual de Andrade está nas décadas de 1920 e 1940.
Isso abre a possibilidade de que a comparação entre os dois atores possa providenciar visadas in-
teressantes a respeito do calibanismo, uma vez que, estudados em conjunto, podem atualizar e até
relativizar achados de estudos que tenham como objeto o referido momento do pensamento la-
tino-americano. Ademais, a comparação de autores, no contexto político e intelectual calibanista, de regiões cuja história e geopolítica são distintas providenciaria uma leitura significativa sobre a
constituição, as potências e as limitações do calibanismo.

1. Relato de viagem de uma peça

Para que possamos falar das aventuras de Caliban na América Latina, é preciso que as localize-
mos dentro de uma epopeia ainda maior, a saber: os usos que a peça “A tempestade”, de William
Shakespeare, teve neste subcontinente. Essa obra, comumente identificada como a última peça do bardo, foi escrita em 1611 e teve uma de suas primeiras encenações montada antes do casamento de Elizabeth, filha de Jaime I, com o eleitor do Palatino e futuro rei da Boêmia, Frederico V, no ano de 1612 ou 1613 (Lee, 2007, p.
254). Seu contexto mais imediato contava com os inícios de incursões coloniais inglesas na Irlan-

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As viagens de Caliban na América Latina

da, um dos primeiros laboratórios do colonialismo europeu; porém, as experiências de coloniza-
ção da América ainda não haviam ganhado a relevância que teriam para os ingleses. É preciso ter em mente também que o contato com os nativos do “Novo Mundo” já havia ocorrido, mas a sua
subjugação por parte desse país não. À época, outro fato marcante para o dramaturgo inglês foi o
naufrágio do navio Sea Venture, em 1609, na região das Bermudas, que transportava o governador
da Virgínia, Sir Thomas Gates, que se constituiu como a primeira colônia inglesa na América (Ri-cupero, 2014; Frey, 1976) A peça conta com 20 personagens – dos quais podemos destacar: Caliban, Próspero, Ariel, Mi-
randa, Sycorax, Alonso, Ferdinand, Antônio, Gonzalo, Trínculo e Stephano –, cinco atos mais um
epílogo e um enredo que, grosso modo, gira em torno da vingança de Próspero, duque de Milão que
estava exilado numa ilha distante do mediterrâneo devido a uma conspiração política forjada por seu irmão (Antônio) e o rei de Nápoles (Alonso). A fim de dar consecução à sua vendeta, Próspero,
por meio de suas magias alquímicas e com a ajuda de Ariel, um espírito alado por ele liberto e que
lhe serve, invoca uma tempestade cujo resultado é o naufrágio do navio – em que seus algozes e o príncipe herdeiro de Alonso (Ferdinand), futuro marido da filha de Próspero (Miranda), estavam –
na ilha do exílio. Em meio aos acontecimentos decorrentes do naufrágio, Caliban, outro dos servos
de Próspero, revolta-se contra seu senhor, dado que, segundo argumenta, a ilha deveria ser dele, pois no passado as terras pertenceram à sua mãe, a bruxa Sycorax. Ato contínuo, Caliban une-se aos naufragados Trínculo e Stephano para tomar aquilo que seria seu de direito. Ao fim, ainda com
a ajuda de Ariel, o senhor da ilha consegue o que intentava: confronta Alonso e Antônio a respeito da traição que sofreu. Mas, por meio da sensibilização de Ariel, os perdoa e casa sua filha (Miran-
da) com o sucessor de Nápoles, Ferdinand, assegurando sua sucessão e retorno ao reino. Além disso, o senhor da ilha, Próspero, e seu servo alado, Ariel, também dão fim à desastrosa rebelião de Caliban. Importante notar também que Ariel, ao fim da última cena, é libertado por Próspero,
Caliban é castigado e mantido sob o julgo prosperiano e, já no epílogo, Próspero renúncia a sua
magia e poderes retirados dos livros.

Sabe-se, textualmente, que a ilha na qual a peça transcorre se localiza em algum lugar entre Nápo-les e Túnis, cidade na qual Alonso deixou sua filha como esposa do rei da cidade africana (Shakes-
peare, 2011). Não obstante, já em seu contexto imediato e na peça em si, alguns elementos podem ser ligados ao “Novo Mundo”. Em primeiro lugar, os primeiros episódios da exploração colonial da
América. Em segundo lugar, a presença também textual de elementos americanos e em referência ao “Novo Mundo” (Frey, 1976), como a referência feita por Ariel às Bermudas (Shakespeare, 2011, p. 27) e a de Miranda ao admirável mundo novo. Em terceiro lugar, a referência a Caliban como um
indígena americano feita por Trínculo ao dizer que seria rentável expor um índio morto na Europa
(Shakespeare, 2011, p. 56). Em quarto lugar, Caliban se refere a Setebos, divindade adorada pelos gigantes da Patagônia, como o deus que é reverenciado por Sycorax (Lee, 2007). Como último ele-
mento, pode-se lembrar das falas de Gonzalo, conselheiro de Alonso, que, ao aportar na ilha, elucu-
bra sobre uma idade de ouro ali existente, baseando-se claramente no famoso ensaio “Dos Canibais”, de Montaigne (1987), que, por sua vez, foi extensivamente inspirado pelos relatos de viajantes sobre
as Américas e o contato, mesmo que indireto, com os índios Tupinambá (Arinos, 2000). Por outro lado, de modo mais específico, é possível também argumentar que “A tempestade” foi interpretada de acordo com contextos específicos (Orgel, 2012; Murphy, 2013), de modo que seus
personagens podem passar por crivos de leitura bastante distintos. Próspero pode ser desde um mago equilibrado até um colonizador paranoico e tirânico (Morse, 1988). Caliban seria desde um
incivilizado inapto ao aprendizado, passando por um escravo natural, até um homem negro revol-tado ou protótipo do revolucionário terceiro-mundista (Retamar, 2004; Jáuregui, 2008) e símbolo

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da negritude (Césaire, 1997). Ariel, por seu turno, foi interpretado tanto como uma forma de vida
espiritualizada e superior, típica dos latino-americanos, em contraposição ao materialismo caliba-
nista da América do Norte (Rodó, 1993), quanto como escravo submisso ao colonizador (Césaire, 1997). Miranda, por sua vez, passaria de uma mulher passiva, sem voz e que sofre uma tentativa
de estupro por Caliban, para alguém incestuosamente desejada por seu pai (Thompson, 1995) ou
para uma agente moral, agindo de forma muito mais “avançada” que as mulheres de sua época
(Slights, 2001). Trínculo e Stephano evoluiriam de bobos da corte para proletários brancos opor-tunistas (Federici, 2017). A Bruxa Sycorax, mãe de Caliban e antiga dona da ilha, mudaria de uma personagem quase sem menção para um símbolo muito mais legítimo e eficaz para as(os) revolu-
cionárias(os) latino-americanas(os), dado que a resistência anticolonial e anticapitalista teria sido capitaneada pelas mulheres (Federici, 2017). À vista disto é lícito dizer que, apesar dos elementos americanos imanentes à peça, é apenas no século XVIII que o trabalho de Shakespeare passa a ser identificado de modo mais sistemático pela crítica ao “Novo Mundo” (Frey, 1976; Vaughan, 1988; Ricupero, 2014). Para tal, duas figuras foram centrais: Edmond Malone e Sidney Lee. O primeiro foi editor das obras do dramaturgo in-glês no período e vinculou “A tempestade” aos “Panfletos das Bermudas”, nos quais eram narradas histórias sobre importantes naufrágios da região, à maneira do já referido navio Sea Venture. O segundo, biógrafo do escritor inglês, argumenta que a identificação da ilha da obra com as Bermu-das é “inquestionável” (Lee, 2007, p. 253) e que Caliban e Próspero seriam, respectivamente, um aborígene selvagem do “Novo Mundo” e um mago equilibrado que havia tomado a ilha para si (Lee, 2007, p. 257). No mesmo período, o reverendo americano Frank M. Bristol, em seu “Shakespeare
and America”, também teria apontado a relação direta com a ilha americana e tomado Caliban como um índio do continente. Posição um pouco distinta teria sido a de Edward Everett Hale, clé-
rigo de Boston, para quem a ilha, apesar de ainda ser americana, seria, na verdade, a Cuttyhunk, pertencente ao estado de Massachusetts (Vaughan, 1988). De todo modo, nessa quadra histórica, a leitura americanista da peça shakespeariana tornou-se dominante (Frey, 1976; Vaughan, 1988).
Essa aproximação se daria por ao menos dois motivos. Primeiro, a trama shakespeariana e a histó-ria da colonização do “Novo Mundo” teriam proximidades muito claras, principalmente na relação
colonizador – colonizado, visto na peça a partir de Próspero e Caliban (Skura, 1989; Vaughan,
1988). Segundo, o século XVIII, no qual essas leituras passaram a entrar em cena, foi marcado
decisivamente pelo romantismo, cuja nova sensibilidade teria aberto caminho para essas novas interpretações americanas (Murphy, 2013; Ricupero, 2014). Como lembra Ricupero (2014), re-tomando definições clássicas sobre a divisão entre neoclássicos e românticos, as leituras do pri-
meiro tipo valorizaram Próspero, visto que ali os impulsos humanos poderiam ser domados pela
razão e pelo intelecto. No romantismo, por sua vez, o mais valorizado seriam os impulsos vitais e
a rebeldia de Caliban. À vista disso, pouco importam os argumentos para os quais essas leituras
não fariam sentido, dado que Shakespeare, originalmente, não havia pensado nisso, uma vez que
o essencial para o nosso argumento não é a literalidade do bardo e de sua peça, mas, sim, as rela-
ções e as metáforas pensadas entre as personagens de “A tempestade” e seus usos criativos para
se pensar a América Latina. Jaúregui (2008) e Brotherson (2000) chamam atenção para o fato de que escritores importan-
tes para o modernismo latino-americano foram decisivos nos inícios dos usos de personagens
da referida peça shakespeariana para pensar a América Latina, dentre os quais podemos citar: o poeta nicaraguense Rubén Dario (1920, 1998), o crítico francês Paul Groussac (1898, 1987) e o escritor uruguaio José Enrique Rodó (1993) (Ricupero, 2016). Nos dois primeiros, em linhas

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As viagens de Caliban na América Latina

bastante gerais, Caliban e Ariel são chamados à baila para representarem as diferenças entre os Estados Unidos da América, personificado por Caliban, utilitarista, democrático – no sentido de
uma espécie de estado social na qual o popular passa a ter vez e pesar nos destinos da nação – e baseado num materialismo anglo-saxão, e a América-Latina figurada em Ariel e forjada desde um espiritualismo desinteressado e contrário, de um ponto de vista aristocrático e romântico, à me-
canização decorrente dos avanços do capitalismo industrial. Em Rodó, diferentemente, uma elite ou uma aristocracia do espírito latino-americano, identificada com Próspero, deveria ter um papel
dirigente no sentido de conciliar os opostos: Caliban e Ariel.

As ideias de Rodó e de seu Ariel tiveram, por meio da circulação e de suas sucessivas edições (Ri-
cupero, 2016), papel destacado na conformação de um movimento arielista entre a juventude de vários países, indo do México, passando pelo Caribe, até as repúblicas mais ao Sul do continente, e, no final das contas, na constituição de uma identidade latino-americana – notabilizada por um
espiritualismo aristocrático desinteressado em oposição ao capitalismo selvagem dos EUA. Desse modo, autores como Mignolo (2012), Sánchez (1998) e Jáuregui (2008) veriam nessa definição
da identidade latino-americana uma preocupação com a ascendência greco-latina do latinismo,
deixando de lado elementos populares, indígenas, negros e de mulheres, devido ao seu patriar-calismo. Jáuregui (2008) vê um certo reacionarismo, o qual, contudo e ao nosso ver, precisa de uma qualificação: era um reacionarismo que, apesar de ambiguidades, trazia um protesto contra as transformações trazidas pelo avanço do capitalismo identificado com Caliban, quase como um
anticapitalismo romântico (Löwy; Sayre, 2015).

De toda forma, tais pensamentos latinistas devem ser entendidos num contexto histórico espe-cífico, localizado na segunda metade do século XIX e no início do século XX, no qual pode-se ver os seguinte elementos: i) já se pensava a divisão entre América do Norte e do Sul como análoga à
divisão entre Europa do Norte e do Sul, isto é, entre germânicos protestantes e latinos católicos (Chevalier, 1837); ii) estavam ocorrendo incursões imperialistas dos EUA no México e na América Central; iii) havia intenções e ações imperialistas – como o governo do príncipe austríaco Maxi-miliano no México – incutidas e apoiadas pelo II Império Francês, de Napoleão III, em territórios da América, justificadas de acordo com uma ideologia da latinidade; e iv) naquele período o co-lombiano José Maria Torres Caicedo (2006) e o chileno Francisco Bilbao (1995), que residiam em
Paris e estavam incomodados com o imperialismo estadunidense, passaram a falar em América Latina (Mignolo, 2012; Ardao, 1993).Se esse foi o momento arielista, também podemos identificar um momento caliban do pensamen-to político e social latino-americano (Retamar, 2004; Monegal, 1978; Vaughan, 1988; Jáuregui,
2008). Nesse momento, Caliban deixa de ser visto como representando um opressor utilitaris-
ta do Norte e passa a representar um oprimido terceiro-mundista pelo imperialismo europeu e
estadunidense (Vaughan, 1988). De acordo com Vaughan, a metamorfose de caliban teve início, menos sistemático, com as obras de Jean Guéhenno (1928) e de Aníbal Ponce (1938). No primeiro, a imagem de Caliban é mais simpática. No segundo, por meio de sua obra “Humanismo burguês e humanismo proletário”, Caliban é identificado com as massas exploradas, numa resposta direito
ao livro de Ernest Renan, “Caliban, suíte de La Tempête”, em que o francês, por meio de Caliban,
constrói uma imagem bastante negativa do povo e da comuna de Paris. Seguindo argumento de Monegal (1978), Oswald de Andrade, com seu “Manifesto Antropófago”, também poderia ser visto
como um precursor calibanista de toda a discussão posterior sobre a temática.

De todo modo, a sua presença mais sistemática nos debates latino-americanos é explicada por
Vaughan (1988) a partir de dois motivos. Em primeiro lugar, desde pelo menos os anos 1950, ocor-

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reram mudanças nas forças sociais latino-americanas e na situação sociopolítica, principalmente
com os movimentos anticoloniais, terceiro-mundistas e de libertação nacional que transforma-
ram decisivamente a estrutura de sua vida intelectual. De sorte que uma nova geração de estu-
diosos, em sua maioria, etnicamente não-europeus e com formulações culturais locais, levaram a mudanças importantes da figuração de Caliban. Em segundo lugar, o debate gerado pelo livro
“La psychologie de la colonisation”, lançado em 1950 e escrito pelo psiquiatra francês Dominique Octave Mannoni também foi de suma importância. Nele, Mannoni, que havia trabalhado como psiquiatra da administração colonial francesa em Madagascar, discute a revolta anticolonial que
lá ocorreu. Apesar de achar as dimensões políticas e sociais importantes, o psiquiatra francês en-
fatiza a dimensão psicanalítica da situação. Para tal, parte de uma visão, pretensamente contrária à sociologia e à antropologia evolucionistas, de que haveria uma unidade na humanidade e em
sua razão e enfatiza a relação entre o colonizador europeu e o colonizado malgaxe, na qual aquele acabaria por subjugar este e impor, via dominação, a cultura europeia. Nesse bojo, Mannoni lança
mão de dois complexos, os quais são vistos nessa relação colonizador – colonizado: o complexo de Próspero e o complexo de colonizado ou de Caliban (Mannoni, 1956). O primeiro seria marcado
pela força, pela capacidade de estabelecer relações e por ter uma personalidade misantrópica; o
segundo, por sua vez, seria caracterizado pela disposição em ser dominado, cuja raiz não seria ple-
namente social e deveria ser entendida a partir de um germe de inferioridade que lhe seria inato (Mannoni, 1956, p. 40). Mannoni, até onde se sabe, queria, curiosamente, fazer uma obra contra a
política de dominação colonial. Contudo, a sua recepção nos círculos anticoloniais foi o contrário disso, suscitando respostas diretas de Césaire (2017, 1997) e de Fanon (2008).
À vista do que foi dito, procuraremos trabalhar o pensamento de dois autores que identificamos
como importantes para o pensamento calibanesco: Aimé Césaire e Oswald de Andrade. Nosso
argumento se divide em três momentos. Em primeiro lugar, ambos procuram identificar os modos
de vida e as culturas de povos e sociedades destruídas ou oprimidas pela colonização europeia
não só como exemplo de sociedades anticapitalistas e democráticas, mas também como vias
civilizacionais para a humanidade. Em segundo lugar, nesse movimento de identificação, ambos os
autores acabam por produzir um elogio da diferença “local” perante o, pretensamente, universal
(identificado o Ocidente), e que pode ser visto como um pós-colonialismo avant la lettre. Em últi-mo lugar, esse elogio político ao particular porta ambiguidades, desde as quais podemos identifi-car um movimento culturalista cujo móvel seria um orientalismo às avessas (Chibber, 2013), em
que essa ênfase na diferença pode abarcar elementos próximos até mesmo do arielismo.

Sabe-se, entretanto, que Césaire faz menção direta e trabalha de forma sistemática com o perso-
nagem Caliban e Oswald de Andrade não. Além disso, os escritos do modernista brasileiro teriam vindo à tona muito antes dessas discussões. Contudo, pelos elementos acima explicitados e pelo
que exporemos, Andrade e suas discussões sobre a antropofagia devem fazer parte desse conjunto
de discussões do momento Caliban na América Latina. Oswald de Andrade, conforme argumenta Monegal (1978), seria um autor destacado dessa movimentação política e ideológica e seria, ra-
dicalizando o argumento em polêmica com Roberto Retamar, o verdadeiro Caliban. Algo próximo também é sugerido por Jáuregui (2008). Além disso, do ponto de vista etimológico e filológico, a
raiz seria indubitável nesse sentido, dado que caliban é um anagrama de canibal, o qual, por sua
vez, vem de Caribe ou caraíba (Retamar, 2005).

Nas próximas seções, exploraremos elementos que julgamos ser decisivos para nosso argumento
a respeito dos pensamentos de Aimé Césaire e Oswald de Andrade.

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As viagens de Caliban na América Latina

2. Lineamentos sobre Aimé Césaire: calibanismo e negritude A obra do martinicano Aimé Césaire é extensa e diversa. A fim de dar conta de seu pensamento, à
vista do que é importante e funcional aos argumentos deste artigo, trabalharemos com as seguin-
tes obras do escritor: i) “Diário de um retorno ao país natal”, escrito e refeito entre os anos de 1939
e 1956; ii) “Discurso sobre o colonialismo”, lançado em 1950 e iii) a peça “Une tempête”, publicada
em 1969. Tais obras são escritas em momentos diversos de sua vida política e carreira intelectu-
al, mas todas, de um modo ou de outro, trouxeram em seu interior problemáticas que lhe foram
essenciais, como, por exemplo, o movimento político e social da negritude e as críticas ao projeto
colonial interno ao capitalismo, bem como possibilidades civilizacionais para sua superação. Césaire, em 1931, foi para Paris e lá teve contato com outros importantes partícipes do Movimento
da Negritude: os senegaleses Léopold Senghor e Ousmane Socé. Entre os anos de 1932 e 1934,
Aimé Césaire participou, com Senghor, Damas e outros, da revista Légitime Défense, composta
por estudantes antilhanos, marxistas e surrealistas, além de fundar, com os mesmos companhei-
ros, a revista L´Etudiant noir, na qual recusaram modelos artísticos brancos e proclamaram a sua
negritude. Em 1935 ingressou na Escola Normal Superior e em 1936 começou a escrever um dos
livros símbolo desse movimento: “Diário de um retorno ao país natal”. Em Paris, Césaire e seus
companheiros encontraram uma esfera pública negra bastante desenvolvida, com revistas e sa-
lões literários, como as das irmãs Nardal (Wilder, 2005). À vista disto, três pontos são dignos de
nota. Em primeiro lugar, Wilder (2005, 2015) enfatiza que a negritude foi forjada no coração do colonialismo europeu, de sorte que é em Paris que foram dados os primeiros passos no Movimen-
to da Negritude (Toledo, 2014) e é de onde puderam fazer críticas contundentes ao imperialismo
e ao assimilacionismo francês, o qual era destinado apenas a certas elites coloniais e pretendia
fazer tábula da história de escravidão colonial. Como segundo elemento, pode-se ver que, por
meio das revistas anteriormente referidas (Légitime Défense e L´Etudiant noir), Césaire e outros intelectuais negros, ao mesmo tempo em que resistiam às normas artísticas e intelectuais euro-peias, puderam forjar uma estratégia específica de inserção e destaque no campo literário (Wilder,
2005). Em terceiro lugar, a política de desenraizamento e migração promovida pela França foi de
suma importância para instigar questionamentos de ordem identitária e nacional nesses autores, interessados em análises a respeito da migração e da nação (Hall, 2003). Aqui é preciso lembrar também que outra cidade, além de Paris, foi essencial para o Movimento da Negritude: Nova Iorque. Ali viu-se florescer, no Harlem, um importante movimento conhecido
como New Negro, fortemente antirracista e com rasgos socialistas (Perry, 2009). O movimento propunha uma crítica radical à situação do negro e da cultura negra nos Estados Unidos a partir
da constituição da consciência e de uma identidade negras, bem como a reabilitação de suas raízes
históricas e do passado, subjugadas pela ideologia racista e pelas políticas de segregação referen-dadas pelas leis de segregação racial. Uma das figuras de maior destaque do New Negro é Huber Harrison, cuja militância e atividade intelectual foram importantes para percepção da necessidade
de uma consciência negra ativa contrária ao suprematismo branco. Além disso, as raízes intelec-
tuais do movimento devem ser buscadas nos escritos e nas atividades políticas do sociólogo negro
W. E. B. Du Bois, que já em 1903, em seu “The Soul of Black People”, denunciava o racismo em rela-ção aos negros nos EUA e defendia a necessidade de uma consciência afirmativa dos negros contra
os estereótipos da supremacia branca. Ademais, Du Bois defendia que as pessoas negras deveriam
resolver seus problemas, internacionalmente, por elas mesmas – daí a sua forte militância pan-a-
fricanista (Du Bois, 1999).

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Com a perseguição desse movimento e a repressão ao Harlem, uma série de jovens negros estadu-nidenses foi para a Europa, particularmente para a cidade de Paris, como Claude Mc Kay e Countee
Cullen. O primeiro com seu romance “Banjo” (1923), que, juntamente com a obra “Batouala”, de René Maran (1921), tornou-se livro de cabeceira dos estudantes africanos e antilhanos em Paris (Chevrier, 1999). Em 1915, há uma nova invasão no Haiti, dessa vez pela marinha dos Estados
Unidos, que suscita forte reação e uma tomada de consciência negra, que preconizava a retomada
de valores raciais e culturais afro-diaspóricos haitianos. É nesse caldo cultural que é possível en-tender não só a eclosão do Movimento da Negritude, com o protagonismo de Leon Damas, Leopold Senghor e Aimé Césaire, e as revistas que vieram em sua esteira, como também a influência enor-
me que a chamada “arte negra” teve nas manifestações artísticas de vanguarda. É nesse período, e nutrindo-se de todas essas influências, que Césaire inicia a escrita de seu “Di-
ário de um retorno ao país natal”. A ideia e os movimentos envoltos na negritude não podem ser vistos como dotados de um único sentido nem podem ser identificados exclusivamente à expe-
riência intelectual de pensadores negros de colônias francesas (Toledo, 2014). Contudo, o neo-logismo negritude foi concebido por Césaire, no ano de 1935, em meio à socialização intelectual constituinte da revista L´Etudiant noir, mais especificamente no ensaio “Conscience Raciale et Ré-
volution Sociale”:

Por nós, queremos explorar nossos próprios valores, conhecer nossos pontos fortes através
da experiência pessoal, cavar nosso próprio domínio racial, certos de que devemos encon-
trar as profundas fontes que jorram do humano universal. Portanto, antes de fazer a Re-volução e tornar a revolução - a real - o cenário destrutivo e não o tremor das superfícies, uma condição é essencial: quebrar a identificação mecânica das raças, separar os valores superficiais, apreender em nós o negro imediato, plantar nossa negritude como uma bela
árvore até dar o fruto mais autêntico (Césaire, 1935, p. 1, tradução nossa). Tal árvore da negritude, bem como suas ramificações e raízes, estrutura o poema épico “Diário de um retorno ao país natal” e liga a América à África (Pestre de Almeida, 2012). Nos versos de

Césaire: “Quem e o que somos/ Admirável pergunta!”/ De tanto olhar árvores tornei-me árvore e
meus longos pés de árvore cavaram no solo largas bolsas de veneno altas cidades de ossadas/ de tanto pensar no Congo/ tornei-me um Congo farfalhante de florestas e rios [...]” (Césaire, 2012, p. 37). Nesse poema fundante da negritude como poesia, Césaire elaborou uma viagem espacial e
temporal, mítica e simbólica, abrindo o caminho para (re)elaboração estética e política do passado
e do futuro. Assim, opera-se uma forma de crítica intertextual frente ao surrealismo, aos clássicos greco-romanos e negro-africanos, à oralidade tradicional, aos poetas modernos e aos épicos de
viajantes (Pestre de Almeida, 2012).

Exemplar dessa relação intertextual de elaboração crítica efetuada por Césaire será a crítica e as
inversões operadas frente a um texto como “Os Lusíadas”, de Camões (Pestre de Almeida, 2012).
O épico português canta as incursões dos colonizadores na imposição das normas ocidentais e do
catolicismo sob os povos “pecadores” num ritmo que vai da euforia do “descobrimento” do “Novo Mundo” a certo sentimento de declínio com os destinos de Portugal, cujo lamento torna a voz do
poeta rouca no poema. O épico da negritude, por seu turno, elabora e canta os colonizados e des-terrados tentando restabelecer a relação com a África pós-diáspora. Seu tom, apesar de começar
pessimista, lamentando o caráter inerte da ilha em que está e passar em revista pelas violências
impostas aos povos negros pela colonização, acaba numa toada triunfal e que nega criticamente os
navios da escravidão e a colonização.

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As viagens de Caliban na América Latina

De modo mais pormenorizado, o poema de Césaire terá três grandes movimentos (Pestre de Al-meida, 2012). O primeiro será uma articulação entre: (a) o desrecalque de monstros e figuras do inconsciente de um sujeito colonizado, (b) a descrição das Antilhas e da crítica ao asfixiamento
produzido no poeta e (c) a partida dessa ilha e a volta ao país natal com um pequeno breviário e in-
ventário da história dos negros. Num segundo momento, de contornos mais alusivos e surrealistas,
Césaire muda o sentido individual da obra para algo coletivo; desde o qual tenta-se reconquistar a história, as figuras míticas, a feitiçaria e as palavras ancestrais, e produz um discurso de revolta
contra a civilização branca ocidental, encaminhando uma desinterdição da memória coletiva dos povos colonizados. Já o último movimento, caracterizado pelo tom ascensional e orgulhoso frente aos negros colonizados, articula noções de negritude que escapam à pura etnicidade e incorporam
noções como de sofrimento, aceitação e entendimento da história, feito uma enorme árvore e suas ramificações. Dessa feita, pela sua vinculação com a Martinica e pela sua aposta na condição do negro como unificador da luta anticolonialista, o poema ressoará e influenciará inúmeras gerações
de estudantes e militantes antilhanos e africanos (Toledo, 2014).

A partir dessa visão mais ampla do poema, nos concentraremos em algumas de suas passagens
que julgamos centrais para a negritude e ao nosso argumento. Vejamos o seguinte trecho:

E eu me digo Bordeaux e Nantes e Liverpool/e Nova York e São Francisco/ não há nem
um pedaço desse mundo que não tenha minha impressão digital/ o meu calcâneo sobre
o dorso dos arranha-céus e minha sujeira/ no cintilar das gemas!/ Quem pode gabar-se
de ter mais do que eu?/ Virgínia. Tenesse. Geórgia. Alabama/ Putrefações monstruosas de
revoltas inoperantes,/ pântanos pútridos de sangue/ trombetas absurdamente abafadas/
Terras rubras, terras sanguíneas, terras consanguíneas (Césaire, 2012, p. 33)

Nessa parte do “Diário”, Césaire conseguiu articular variadas negritudes, em seus sofrimentos, re-
voluções e existências, numa unidade diversa da negritude. De sorte que a árvore, com que começa
seu poema, pode render frutos e ramas canibalescas críticas da colonização. Algo que podemos ver nos próximos fragmentos: “Porque vos odiamos a vós e à vossa razão, reivindicamos a demên-cia precoce a loucura flamejante o canibalismo tenaz” (Césaire, 2012, p. 35) e

E sobre esse sonho antigo minhas crueldades canibais:/ (As balas na boca saliva espessa
nosso coração de quotidiana baixeza explode/ os continentes rompem a frágil amarra dos
istmos/ terras saltam segunda a divisão fatal dos rios/ e o morro que há séculos reprime
o seu grito dentro de si, é ele/ que por sua vez esquarteja o silêncio/ e esse povo bravura renascente/ e nossos membros em vão disjuntos pelos mais refinados suplícios/ e a vida
mais impetuosa jorrando desse esterco/ - como a graviola imprevista na decomposição dos
frutos da jaqueira!) / E sobre esse sonho envelhecido em mim minhas crueldades canibais
(Césaire, 2012, p. 58-59).

Nesses trechos vê-se, claramente, a articulação de uma permanente revolta contra o autoritarismo da civilização ocidental e a dominação colonial, em que atitudes canibais são chamadas à baila tanto como imagem de contraposição à branquitude quanto como arcabouço onírico ou posição metafísica que embasaria a revolução dos povos colonizados. Revolta e revolução que viriam des-de tempos passados com a Revolução do Haiti e se encarnaria nas lutas pelos direitos civis nos
EUA, nos movimentos anticoloniais, no pan-africanismo, no radicalismo do marxismo negro, etc.
De nossa parte, lembramos dois elementos: em primeiro lugar, o elo claro com outro autor que
dará um lugar ainda mais destacado ao canibalismo antropófago, Oswald de Andrade, e sua re-
volta calibanesca contra o Ocidente e, em segundo lugar, a sugestão de que aqui já estavam dadas

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Rafael Marino

as bases para conversão do Caliban shakespeariano, fazendo-o passar de servo monstruoso em
negro escravizado revolucionário, cuja revolta contra o colonizador marcou o pensamento político
latino-americano.

Das primeiras versões de seu “Diário” até a escrita de obras como “Discurso sobre o colonialismo”, novos elementos entraram em cena na experiência intelectual de Césaire (Confiant, 1993). Por
volta de 1941, vê-se a aproximação mais decidida de Césaire com o surrealismo, publicando vários de seus poemas na recém-criada – por ele e René Ménil – revista Tropiques, publicação a partir da
qual André Breton conhecerá a sua obra. No campo político, Césaire, já atraído pelo comunismo e militando nas fileiras da juventude comunista desde meados da década de 1930, virou deputado pela Federação Martiniquense do Partido Comunista Francês na Assembleia Francesa em 1945.
Naquele período, vê-se uma polêmica em torno do pensamento político de Césaire, dado que será
o período no qual se dedicou intensamente ao anticolonialismo por meio de obras ensaísticas, da militância partidária e de viagens, por exemplo, ao Haiti. Contudo, Césaire defendeu, até meados de 1956, uma política não de autonomia nacional da Martinica, mas, sim, de departamentalização. Isso, porque Césaire enxergava, para além da influência do PCF, a departamentalização como um meio importante para os caminhos do autogoverno da Martinica e como uma forma de transfor-
mar a própria França (Wilder, 2015). Não obstante, com algumas mudanças de caminhos e de
condições, Césaire irá reorientar seu programa de descolonização. Em seu “Discurso sobre o colonialismo”, sob o influxo do Movimento da Negritude e já identifi-
cado com o comunismo (Vrancic, 2018), Césaire dirá que a Europa é simplesmente indefensável,
uma vez que fecha os olhos para questões essenciais da humanidade no período: o problema do proletariado e o problema colonial (Césaire, 2017). Desde o início de sua argumentação, Césaire
critica aqueles que defendiam o colonialismo, direta e indiretamente. Para o crítico martinicano,
a colonização não seria destrutiva apenas para os povos por ela destroçados, mas também para
o próprio colonizador, descivilizando-o, embrutecendo-o e despertando seus “recônditos instin-tos em prol da cobiça, da violência, do ódio racial e do relativismo moral” (Césaire, 2017, p. 19).
Ou seja, a colonização seria uma espécie de “cabeça de ponte da barbárie em uma civilização, da qual pode chegar a qualquer momento a pura e simples negação da civilização” (Césaire, 2017,
p. 26), de sorte que a conquista colonial, fundada no desprezo e na bestialização do outro, gera
consequências em quem a empreende, que, “para acalmar a sua consciência, tende objetivamente a transformar-se ele próprio em besta” (Césaire, 2017, p. 29). Dessa feita, não há exemplo maior
de bestialização interna da civilização Europeia que o próprio Nazismo, a partir do qual europeus
passam a ser dizimados como se fossem “nativos”. Ademais, essa postura para a ser funcionalizada como reação à própria luta dos trabalhadores no centro do capitalismo, pois as burguesias das
metrópoles, ao se verem assoladas não só por movimentos anticoloniais, mas também pelo pro-
letariado, e prevendo a sua inevitável decadência, passam a usar da força bruta e se tornam um receptáculo da mais bárbara violência (Césaire, 2017). Uma das contraposições essenciais nessa obra de Césaire será, justamente, em relação a Mannoni
e sua obra sobre a psicologia da colonização. A resposta do martinicano ao psiquiatra francês se dividiu em três etapas. Já de saída, Césaire nega a ideia de que há uma simples relação humana
entre colonizador e colonizado, pois o que há é uma dominação violenta daquele sobre este. Em um segundo momento, o escritor da Martinica diz que a suposta inferioridade dos malgaxes, e dos
colonizados em geral, é forjada com base na violência e em todo um aparato ideológico de con-
vencimento a respeito da uma pretensa subalternidade inata dos povos colonizados; nesse bojo, a psicanálise é identificada por Césaire como um dos instrumentos mais sutis de colonização (Cé-

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As viagens de Caliban na América Latina

saire, 2017). Em terceiro lugar, Césaire, para contradizer ainda mais Mannoni, aponta as revoltas
anticoloniais como exercícios de autonomia revolucionários, desde os quais é impossível levantar
qualquer dúvida a respeito da capacidade de organização política e social dos povos colonizados.

Esse último tópico faz sistema com outra das ideias-força do ensaio de Césaire, a saber: a enuncia-
ção calibanesca de que faz uma apologia sistemática das civilizações para-europeias:

Eram sociedades comunitárias e não para alguns poucos. [...] Eram sociedades não só ante--capitalistas, como foi dito, mas também anticapitalistas. [...] Eram sociedades democráti-cas, sempre. [...] Eram sociedades cooperativas, sociedades fraternais. [...]. Eu faço apologia sistemática das sociedades destruídas pelo imperialismo. [...]. Elas eram o fato, não tinham
nenhuma pretensão de ser a ideia; não eram, apesar dos seus defeitos, nem detestáveis nem condenáveis (Césaire, 2017, p. 33-34).

Continuando sua exposição, o revolucionário martinicano argumenta que o único consolo que lhe
sobra é o fato de que a colonização irá embora e os povos irão permanecer. Dessa forma, no perí-odo colonial, as nações apenas ficaram adormecidas pela dominação. Apesar desse forte elogio às
nações ancestrais destruídas pelo capitalismo colonial, Césaire diz que sua saída não é passadista,
na medida em que não quer nem uma reduplicação de civilizações passadas nem prolongar a
existência de sociedades coloniais, mas, sim, a criação de uma sociedade nova, “com ajuda de to-
dos os nossos irmãos escravos, enriquecida por toda potência produtiva moderna, aquecida pela fraternidade antiga” (Césaire, 2017, p. 44). Para Césaire, o exemplo dessa possibilidade seria dado
pela própria União Soviética. Aqui as proximidades com a saída técnico-antropofágica de Oswald
de Andrade são fortes, uma vez que ambos projetam a construção de uma nova civilização a partir
da combinação entre elementos “ancestrais” e modernos.

Antes de partirmos para uma breve análise da peça “Uma tempestade”, é preciso ter em mente que
a trajetória de Césaire teve novas determinações. Politicamente, o crítico martinicano, em 1956, rompe com o Partido Comunista Francês, devido à visão reducionista do partido frente ao pro-cesso colonial, funda o Partido Progressista da Martinica, milita pela autonomia nacional do país
antilhano e faz uma oposição radical aos diversos partidos franceses no poder. Posteriormente, nos anos de 1970 e 1980 (Confiant, 1993), Césaire faz alianças eleitorais de caráter cada vez mais
nacionalistas, buscando a consolidação de uma nação caribenha autônoma e, entre os anos de 1980 e 1990, flerta com os governos socialistas da França e dá menos atenção ao estatuto político da ilha e mais a resolução dos graves problemas econômicos e de endividamento da Martinica.
Artisticamente, a começar da publicação da peça “Tragédie du Roi Christophe” (1963), Césaire
passa por uma imersão na escrita e na produção teatral, da qual a peça “Uma tempestade” é um
dos resultados.

Lançada em 1969, a peça “Uma tempestade” pode ser identificada como um exercício de resistên-
cia pós-colonial, pois, ao reescrever a peça de Shakespeare, Césaire muda seu sentido em direção à revolta contra estereótipos de povos colonizados e fica centrado em temas como racismo e colo-
nialismo (Bonnici, 2000; Zabus, 2002). No geral, vários elementos da peça original são mantidos, porém as mudanças feitas são decisivas. Em primeiro lugar, a localização deixa de ser indefinida e passa a ser uma ilha no Caribe. Em segundo lugar, Caliban deixa de ser de difícil identificação
e passa a ser um escravizado negro. Em terceiro lugar, Ariel, de mero espírito alado, torna-se um
escravizado “mulato”. Em quarto lugar, a escrita é mudada de verso para prosa, gerando um efeito mais afastado e teatralizado (Pestre de Almeida, 1978). Em quinto lugar, Exu, que não estava na versão original, figura agora entre as personagens – tendo um papel importante. Em sexto lugar,

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Rafael Marino

os acontecimentos nos atos se encontram em ordem diferente. Em sexto lugar, enquanto Shakes-
peare reitera falas e situações, Césaire é mais simples e direto em sua escrita (Pestre de Almeida, 1978), o que pode ser notado no fato de a peça do bardo ter cinco atos e a do martinicano possuir
três. Em sétimo lugar, se a peça de Shakespeare é “A tempestade”, a de Césaire é “Une tempête”,
o que pode ser interpretado do seguinte modo: a tempestade do dramaturgo inglês refere-se ao episódio que ocorre na peça, a de Césaire, por seu turno, pode ser vista como a figuração de uma
das tempestades de revolta anticolonial no mundo.

Além desses elementos, há uma distinção importante presente já nas primeiras páginas do teatro. Os atores, presumidamente todos negros (Pestre de Almeida, 1978), são convidados por um mes-
tre de cerimônia a escolherem as máscaras que lhes cabem, de acordo com as personagens que
irão representar. Note-se que, na peça, há pessoas negras vestindo máscaras brancas. Na fala do
mestre de cerimônia, uma atmosfera de psicodrama é criada e, por meio dessa preparação, é como
se os convidados se habilitassem a assistir uma representação de segundo grau, de um teatro den-
tro do teatro e, quando Próspero monta o seu teatro, é como se assistíssemos um teatro dentro de um teatro dentro de um teatro (Pestre de Almeida, 1978). Já no início da peça, nota-se também que a vingança de Próspero perde centralidade e, em seu lugar, vemos o conflito entre o colonizador, Próspero, e os colonizados, Caliban e, em menor grau,
Ariel. Tal é a centralidade dessa disputa que tudo na peça passa a gravitar em torno disso. Num movimento de desmistificação e simplificação, as relações de amor são desfeitas ou apresenta-das como seguindo códigos brancos alienados, tudo soa falso (Césaire, 1997, p. 30-31). O núcleo
plebeu, ao tentar “civilizar” e dominar o selvagem de acordo com os seus ditames de abater o rei, é ainda mais caricatural que em Shakespeare e figura esquematicamente a oposição entre fran-
ceses, Stéphano, e ingleses, Trinculo: aquele sempre pronto a decapitar o rei e este mais ingênuo
e comedido. O núcleo nobre é representado como sendo mais perigoso que na peça inglesa, dado
que o seu poder e discricionariedade são mais expostos. Desse modo, é essencial lembrar que
Próspero se apresentará sistematicamente como um maestro promulgador da ordem (Césaire, 1997), defensor da civilização, do início ao fim da obra (Césaire, 1997). Nesse sentido, Próspero se
apresenta como aquele que tenta retirar o canibal de sua brutalidade e que utilizará de todos os
meios para realizar seus intentos coloniais, chamados por ele de civilização. Até mesmo Gonzalo,
na reescrita de Césaire, é passado pelo crivo da crítica ideológica, pois se no livro do dramaturgo inglês Gonzalo emitiria uma visão utópica sobre os selvagens, na obra de Césaire (1997, p. 39-44),
por seu turno, tal personagem é caracterizado pelo cinismo de quem quer preservar locais “natu-
rais” e “selvagens” como fontes exóticas da eterna juventude. Fonte a partir da qual almas urbanas
poderiam se “refrescar”.

Entre Caliban e Ariel também se desenvolve uma disputa interessante e vê-se uma atualização
criativa da obra do Bardo. Na primeira cena, do segundo ato, ambos travam uma discussão im-portante sobre escravidão, liberdade e métodos de luta e resistência (Césaire, 1997, p. 35-38). Enquanto Caliban figura a violência revolucionária, Ariel acaba representando o diálogo e o pa-cifismo. Ambos se veem como escravizados, mas enquanto Ariel vê ambos como irmãos que têm
métodos diversos de luta, Caliban marca mais a tentativa de Ariel em se aproximar e emular os algozes coloniais e desacredita suas ponderações pacifistas. Outro momento da peça em que essa diferença entre os personagens fica acentuada é quando Caliban, respondendo Próspero e sua
ideia que teria trazido a civilidade ao escravizado ensinando-lhe uma língua europeia, argumenta
que a língua foi ensinada apenas para poder responder ordens e, ato contínuo, nega o nome dado
pelo colonizador:

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As viagens de Caliban na América Latina

Primeiramente, não é verdade. Você não me ensinou nada. Exceto, é claro, por tagarelar seu idioma para entender suas ordens [...] Quanto à sua ciência, você já me ensinou? Você
guardou bem isso! Sua ciência, você a mantém egoisticamente guardada apenas para você, trancada aqui nos grandes livros (Césaire, 1997, p. 25, tradução nossa) Me chame de X. Será melhor. Como quem diria o homem sem nome. Mais precisamente,
o homem cujo nome foi roubado. Você fala sobre história. Bem, isso é história, e famosa!
Sempre que você me chama, isso me lembra o fato básico de que você roubou tudo de mim e até a minha identidade! (Césaire, 1997, p. 28, tradução nossa).

Para além dessa espécie de confrontação não ser feita por Ariel, é forçoso notar mais um elemen-to. Essa disputa entre Caliban e Ariel, entre violência e pacifismo, remete à dicotomia ideológica entre Malcolm X e Martin Luther King, no contexto estadunidense da luta em prol dos direitos civis iguais para toda a população e o fim da segregação racial. Isso fica ainda mais explícito com a
autonomeação de X por parte de Caliban. Ademais, essa batalha mostraria ambiguidades políticas
do próprio Aimé Césaire (Sarnecki, 2000).

O último elemento da peça para o qual gostaríamos de chamar atenção, até para enfatizar a cele-bração da negritude feita por Césaire, é a presença de Exu na peça e seu papel (Césaire, 1997, p. 67-73). Durante a obra, Caliban, em momento algum, canta para Exu. A bem da verdade, em três momentos, Caliban cantará para Xangô (Césaire, 1997), orixá conhecido pelas tempestades, pela cor vermelha e por ser quem faz justiça (Pestre de Almeida, 1978). Dessa feita, Exu e sua interven-ção obscena, que afasta todas as divindades presentes para o casamento de Miranda e Ferdinando,
funcionam como uma irrupção que prenuncia o caos e a desorganização do mundo branco e pre-figuram a revolução calibanesca. Essa movimentação de Exu serve, da mesma forma, como uma
profunda desestabilização do colonizador Próspero, que passa a se sentir fatigado.

Tendo em vista o que foi exposto sobre Aimé Césaire, pode-se ver a constituição de um pensa-
mento calibanesco assentado numa celebração crítica da negritude perante o falso universalismo
europeu autoritário. Algo que guarda profundas semelhanças com o pensamento de outro intelec-
tual que aqui iremos explorar: Oswald de Andrade.

3. Experiência intelectual de Oswald de Andrade: antropófagos e caraíbas A fim de dar corpo ao nosso argumento de que o pensamento de Oswald de Andrade e o pen-
samento de Aimé Césaire poderiam ser vistos como componentes do momento calibanesco no
pensamento político e social latino-americano, nos concentraremos, principalmente, em textos distintos e de épocas diversas da vida de Andrade, a saber: i) “Manifesto da poesia Pau-Brasil”, pu-blicado no Correio da Manhã, em 18 de maio de 1924; ii) “Manifesto Antropófago”, encontrado na Revista de Antropofagia em abril de 1928; e iii) “A crise da filosofia messiânica”, que é uma versão da tese preparada para o concurso da cadeira de Filosofia da Universidade de São Paulo, de 1950. Já no primeiro dos três textos expostos acima é possível notar uma aproximação com o que cha-
maríamos de momento caliban do pensamento latino-americano, dado que a ênfase, e até o elo-
gio, da diferença brasileira frente ao mundo lhe é constitutiva. Dentro dessa posição, aparece, de
modo ainda mais característico e decisivo, o papel e a centralidade da antropofagia. Isso se dá a partir da positivação de um aspecto ritual e central do pensamento metafísico de alguns povos
ameríndios, que era considerado uma marca da barbárie desde os primeiros europeus que nessas

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terras, doravante chamadas Brasil, aportaram. A antropofagia, é preciso lembrar, assombrou-os a
tal ponto que se tornou uma pedra de toque na chamada tradição pictórica colonial – como na tela “América” (segunda metade do século XVII), de Stephen Kessler, ou nas gravuras de Theodore de
Bry intituladas “Cenas de Antropofagia no Brasil” (1596) ou nos relatos de viagens. Essa postura
de positivação poderia ser vista como uma aproximação com os estudos pós-coloniais (Ricupero,
2018b).

Por outro lado, é forçoso notar que se trata de três momentos distintos da trajetória de Oswald de
Andrade. Os dois primeiros textos pertencem a sua fase modernista, já o terceiro é de uma fase
posterior. Enquanto aqueles são manifestos construídos a partir de imagens metafóricas, apolo-
gias, alusões, aforismos e certa doutrinação, o último, por seu turno, já não é de todo avesso ao
discurso “lógico”. Além disso, tais momentos são marcados por movimentos políticos e partidários
diferentes do autor modernista. Se, primeiramente, foi simpatizante e ligado ao Partido Republi-cano Paulista, posteriormente, liga-se ao Partido Comunista Brasileiro, mais especificamente após
a crise de 1929. Algo que repercute em seus pensamentos, tanto é que no prefácio de 1933 de “Serafim ponte-grande” considera-se, juntamente com o poeta francês Blaise Cendrar e o poeta brasileiro Emílio de Menezes, um palhaço da classe burguesa (Andrade, 1971, p. 132). Contudo,
rompe com o PCB em 1945, em função de sua política sectária e de certo ressentimento em não ocupar lugar mais destacado (Fonseca, 2007), e volta-se, dois anos depois, novamente, para a an-
tropofagia (Nunes, 2011b). Lançado no jornal Correio da Manhã, no dia 18 de maio de 1924, “O manifesto da Poesia Pau-Bra-
sil” tinha forte ar de família com outros manifestos e projetos artísticos vanguardistas europeus,
como cubistas, surrealistas e dadaístas. Esse ar de família se dava por utilizarem um conceito polê-
mico de primitivismo, o qual representou, segundo Nunes (2011a, p. 12), “a tendência para buscar
os elementos originários da arte nos sentimentos ou na descarga das emoções, condicionados a
necessidades de caráter instintivo ou na fraqueza de visão, na simplicidade formal, como fonte de possibilidades à expressão plástica pura”.
Porém, apesar da proximidade com as vanguardas europeias nesse sentido, há duas diferenças
interessantes na obra de Oswald, já nesse momento pau-brasil. Em primeiro lugar, se os vanguar-
distas europeus se interessavam pelo primitivismo como uma formalização estética externa, para
Andrade o primitivismo deveria ser tanto na forma exterior estética quanto na natureza psicoló-
gica interior, incorporando de modo ainda mais radical o choque ocasionado pela descoberta do
pensamento selvagem na cultura europeia, em que se negava o domesticado e utilitário em prol
do mitopoético (Nunes, 2011a).

Tais elementos são importantes para podermos entender o programa estético pau-brasil. No mani-festo, fica bastante claro que dever-se-ia pensar o Brasil em termos de combinação entre elemen-tos arcaicos e modernos: i) “Temos a base dupla e presente – a floresta e a escola. A raça crédula e
dualista e a geometria, a álgebra e a química logo depois da mamadeira e do chá de erva-doce. Um
misto de ‘dorme nenê que o bicho vem pegá’ e de equações” e ii) “Uma visão que bata nos cilindros
dos moinhos, nas turbinas elétricas, nas usinas produtoras, nas equações cambiais, sem perder de vista o Museu Nacional. Pau Brasil” (Andrade, 2011, p. 65).
Desse modo, do lado do primitivismo psicológico, Oswald encarava os estados brutos da alma
coletiva como fatos culturais de grande importância; do lado do primitivismo externo, Andrade dá relevo “à simplificação e à depuração formais que captariam a originalidade nativa subjacente”
(Nunes, 2011a, p. 14), de modo que buscando tal originalidade a “Poesia Pau-Brasil” faz uma vol-

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As viagens de Caliban na América Latina

ta ao material que coincide com a pretensão de trabalhar um sentido depurado e uma inocência
construtiva na arte. Depuramento e inocência construtiva que colocam na ordem do dia uma ver-
dadeira reeducação da sensibilidade e uma teoria da cultura brasileira, ensinando “o artista a ver
com olhos livres os fatos que circunscrevem sua realidade cultural, e a valorizá-los poeticamen-te, sem excetuar aqueles populares e etnográficos” (Nunes, 2011a, p. 15-16). Assim, servindo-se,
como sua matéria, do “gabinetismo”, das frases prontas de sabedoria nacional e de citações bacha-
relescas amalgamados ao elemento primitivo (que o bacharelismo, justamente, tentou recalcar), a
estética pau-brasil decompõe, humoristicamente, o arcabouço intelectual da sociedade brasileira,
para retomar, através dele e contra ele, a originalidade nativa e para fazer dessa o ingrediente de
uma arte nacional exportável (Nunes, 2011a). Nas palavras de Andrade: “Não há luta na terra de vocações acadêmicas. Há só fardas. Os futuristas e os outros. Uma única luta – a luta pelo caminho.
Dividamos: Poesia de importação. E a Poesia Pau Brasil, de exportação” (Andrade, 2011, p. 61).

Essa combinação entre moderno e arcaico, apesar de aparecer também em outros textos do autor, terá duas especificidades nesse momento pau-brasil.
Em primeiro lugar, pensando desde essa ideia de poesia de exportação, o ângulo de análise e con-
sagração será dado pelo centro europeu e não pelo país periférico. Por conseguinte, como nas relações de importação-exportação, o Brasil passaria a ocupar um lugar específico na divisão in-ternacional do trabalho. Nesse sentido, é interessante lembrar o que diz Paulo Prado (2017, p. 15)
no que seria o prefácio para o livro de poesias “Pau-Brasil”: “Oswald de Andrade, numa viagem a
Paris, do alto de um ateliê da Place Clichy – umbigo do mundo – descobriu, deslumbrado, a sua própria terra”, abrindo sua mente “à visão radiosa de um mundo novo, inexplorado e misterioso”.
Em segundo lugar, Oswald de Andrade tinha como ponto de partida uma relação entre os elemen-
tos convencionados “universais” (formações europeias e do Norte) e “particulares” (ex-colônias e países do Sul). Dessa maneira, apesar da radicalidade com que o “Manifesto da Poesia-Pau-Brasil”
surge, Andrade buscava, nela, uma estética do equilíbrio entre o universal e o particular, o moder-no e o arcaico ou entre a escola e a floresta. Essas dualidades, na estética pau-brasil, poderiam ser
resolvidas por meio da combinação entre esses elementos. Essa postura de combinação é inter-pretada por Schwarz (2012, p. 13) como otimista, pois aí “o Brasil pré-burguês [...] assimila de for-ma sábia e poética as vantagens do progresso, prefigurando a humanidade pós-burguesa, desre-calcada e fraterna; além de oferecer uma plataforma de onde objetar à sociedade contemporânea”.
Benedito Nunes (2011a, p. 18), por seu turno, vê esse amálgama como um “composto híbrido que ratificaria a miscigenação ética do povo brasileiro” e ajustaria, por meio de um balanço espon-
tâneo de sua história, “o melhor de nossa tradição lírica com o melhor da nossa demonstração modernista”, que seria beneficiado pela tecnologia renovada – independentemente de um centro
radiador. Essa postura pode ser vista, por exemplo, no aforisma “Obuses de elevadores, cubos de
arranha-céu e a sábia preguiça solar. A reza. O carnaval. A energia íntima. O sabiá. A hospitalidade
um pouco sensual, amorosa. A saudade dos pajés e os campos de aviação militar. Pau Brasil” (An-drade, 2011, p. 65) e na poesia “Pobre alimária” (Andrade, 2017, p. 73).
À vista de tais elementos, vê-se como resultado um programa estético que tentaria tirar o país da
irrelevância e, para isso, visava “aproximar e articular dados que a ideologia colonialista, e sobre-
tudo a sua interiorização pelo colonizado, separam em compartimentos estanques”. Em resumo,
tratava-se “nada menos que de conquistar a reciprocidade entre a experiência local e a cultura
dos países centrais, como indica a exigência de uma poesia capaz de ser exportada, contra a rotina unilateral da importação” (Schwarz, 2012, p. 26-27).

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É um pouco comum na bibliografia sobre Oswald de Andrade se aglutinar o “Manifesto da poesia Pau-Brasil” e o “Manifesto Antropófago”. Se, por um lado, isso tem a sua justeza dada a
aposta estética na diferença brasileira em ambos os momentos, há, pelos menos, três distin-
ções importantes a serem feitas entre o primeiro e o segundo. A exposição dessas distinções
será importante também para podermos explicitar características que julgamos importantes
da antropofagia.

Se, como mostramos anteriormente, no pau-brasil buscava-se uma acomodação ou mesmo uma
conciliação entre o que era tomado como o elemento particular e o universal, na antropofagia a in-
tenção de Oswald era mais radical. A estética antropofágica intentava, desse modo, produzir uma inversão da subordinação do particular perante o universal, ou, mais especificamente, da América frente à Europa (Ricupero, 2018b). Construindo, assim, uma posição fortemente alinhada ao que
procuramos mostrar como momento calibanesco do pensamento político e social latino-america-no. Algo que fica bastante claro, por exemplo, nestes dois aforismas do “Manifesto Antropófago”: i) “Queremos a revolução Caraíba. Maior que a Revolução Francesa. A unificação de todas as revoltas eficazes na direção do homem. Sem nós a Europa não teria sequer a sua pobre declaração dos
direitos do homem./ A idade de ouro anunciada pela América. A idade de ouro. E todas as girls” (Andrade, 2011, p. 68) e ii) “Já tínhamos o comunismo. Já tínhamos a língua surrealista. A idade de ouro” (Andrade, 2011, p. 70). Com isso, Oswald quer dizer que, ao menos desde o período da Re-nascença e da Modernidade, as utopias e as revoluções europeias foram influenciadas diretamen-te pelos indígenas do Brasil e pela descoberta do chamado “Novo Mundo”. Opinião próxima será
exposta por Afonso Arinos (2000), para quem os chamados selvagens brasileiros seriam centrais nas utopias, nos escritos de Morus até Rousseau e em suas críticas à civilização europeia. Arinos
argumenta que, na Europa, de uma noção de selvagem cruel passa-se, por meio dos depoimentos de viajantes, à ideia de bom selvagem e que essa mudança foi essencial para as reviravoltas ideo-
lógicas que desembocaram na Revolução Francesa.

Destarte, a antropofagia, antes uma fantasmagoria colonial em relação ao selvagem, passa a ser base para uma visão positiva em relação à diferença brasileira e de crítica frente à Europa e sua pretensa civilidade. Com isso, pode-se identificar a retomada pelos brasileiros do impulso antro-
pofágico de rebeldia, matéria-prima dos ameríndios e que foi elaborada e transmitida por missio-nários, viajantes e pensadores. Sendo, no fim das contas, essencial para a elaboração das noções
de igualdade e de liberdade imanentes ao conceito de “homem natural”, suas implicações e uto-
pias. Nesse movimento calibanesco de positivação da diferença, Nunes (2011a) argumenta que
Oswald de Andrade operou tanto uma reintegração de posse quanto uma crítica da razão políti-
ca do exotismo. Por conseguinte, Andrade mostrava que o manancial de rebeldia e novidade da
modernidade europeia, das vanguardas artísticas e das revoluções modernas deitavam raízes na
antropofagia ameríndia; colocando, dessa forma, o matriarcado de pindorama como vanguarda e
fundamento da rebeldia no mundo.

Ao efetuar esse lance argumentativo, Andrade se contrapunha a duas outras correntes impor-tantes da época, a saber: i) o verdeamarelismo de Menotti Del Picchia, Cassiano Ricardo e Plínio
Salgado e ii) a interpretação de Graça Aranha sobre o modernismo no Brasil. Para os primeiros, seguindo o “Manifesto Nhengaçu verde-amarelo”, o modelo indígena seria o índio tupi, que, den-
tre outras coisas, estaria pronto para ser absorvido, isto é, a partir de uma visão colonialista,
esses autores indicariam que os tupis não existiriam mais objetivamente e que a sua “herança”
estaria pronta para ser diluída “no sangue da gente nova”. Assim, tupis apenas estariam dispo-
níveis para “viver subjetivamente” e para “transformar numa prodigiosa força a bondade do

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As viagens de Caliban na América Latina

brasileiro e o seu grande sentimento de humanidade” (Del Picchia, 1929, p. 4). Para Aranha (1925, p. 36-37), por sua vez, a cultura existente no Brasil viria diretamente da Europa, não como cópia, dado que havia passado pelas modificações do meio e das confluências de diversas
raças. Assim, o empenho deveria ser criativo e não imitativo, como foi até agora, de modo que
a nacionalidade e tradições brasileiras ainda seriam meros rascunhos. Não obstante, nesse es-forço criativo, dever-se-ia evitar a barbárie selvagem, pois ser “brasileiro não significa ser bar-
baro” e os “escriptores que no Brasil procuram dar de nossa vida a impressão de selvageria, de
embrutecimento, de paralysia espiritual, são pedantes literarios” (Aranha, 1925, p. 43). No caso,
é impossível não lembrar de Oswald de Andrade. Porém, duas poderiam ser as concordâncias
básicas entre antropógafos, verdeamarelistas e Graça Aranha. Em primeiro lugar, a busca pela especificidade brasileira, de modo que é afirmando “a sua particularidade que a cultura brasi-leira encontraria a sua universalidade” (Ricupero, 2018b, p. 879). Por último, que é por meio da intuição que esses projetos se dariam (Jardim, 1978, p. 167). Enquanto, por exemplo, Mário de
Andrade enfatizaria o trabalho de pesquisa sistemático e construtivo, principalmente num país
como o Brasil que não possuiria uma tradição de séculos.

Essa radicalidade crítica da antropofagia, frente ao que foi feito em pau-brasil, faz com que ela
deixe de pertencer somente ao campo estético e faz com que se espraie para a política, para a crí-tica da cultura e para a filosofia (Campos, 2017; Nunes, 2011a). Em relação ao campo político, já
o tratamos anteriormente quando exploramos a antropofagia enquanto revolução caraíba, dessa feita falta falarmos da crítica da cultura e de sua metafísica.
Na crítica da cultura (Nunes, 2011a), Oswald de Andrade enxerga, na construção da sociedade
brasileira, uma série de processos de repressão e divisão. Tais processos foram forjados por meio
da catequese e do Governo-geral, os quais, respectivamente, trouxeram o cristianismo e as orde-nações, bases constitutivas do código ético do senhor de engenho patriarcal e escravocrata. Mes-
mo assim, por baixo do verniz dessas instituições importadas, havia um substrato carregado pelo
paganismo tupi e africano, o direito de vingança tupinambá, a política e a economia primitivas e
a imaginação indígena surrealista avant la lettre. Isso pode ser visto no manifesto de Oswald na contraposição sistemática de figuras e momentos consagrados (Padre Vieira, Anchieta, Goethe, a Mãe dos Gracos, a Corte de D. João VI e João Ramalho) à mitos culturais efetivos (Sol, Cobra-gran-de, Jabuti, Jacy, Guaraci, índios antropófagos). Oswald de Andrade formula uma crítica à certa metafísica catolicista, propondo, em seu lugar, uma metafísica bárbara que positiva figuras do chamado terror primitivo, “concebendo o instinto
antropofágico, de que deriva a própria libido, como vínculo orgânico e psíquico ligado ao homem
da terra” (Nunes, 2011a, p. 30). Para constituição desse quadro, Oswald, feito Benjamin, pilha, ao modo de um Caliban revoltado, as ideias de vários autores como Freud, Keyserling, Nietzsche e Montaigne. Porém, a ideia de bárbaro, mais especificamente do bárbaro tecnizado, é de Key-
serling. Não obstante, se o diagnóstico desse a respeito de uma tribalização do mundo é crítico,
em Andrade isso será algo positivo. Positivação em que, por meio da vitória da máquina, haveria
a abundância de bens de consumo, os quais deveriam ser assimilados ao novo homem bárbaro, com o intuito de criar uma outra Idade de Ouro – próxima a de Montaigne. Essa, talvez, seja uma das formas pelas quais Oswald abriu espaço para leituras que o viam como portador de uma fi-losofia da alteridade (Castro Rocha, 2011) ou como promessa de uma imaginação da alteridade.
Imaginação que negaria a ideia de cópia e original. Tais leituras, contudo, precisam ser matizadas,
dado que, ao proporem uma antropofagia desnacionalizada, deixam de lado a rica relação entre as
discussões sobre colônia-metrópole e a antropofagia (Ricupero, 2018b).

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Rafael Marino

Outra diferença importante da antropofagia frente ao pau-brasil, era o caráter fortemente coletivo
do primeiro frente ao segundo (Ricupero, 2018b). Os componentes do movimento antropofágico foram fortemente influenciados pelas trocas e teses que circulavam. Isso pode ser visto de dois
ângulos. O primeiro é da publicação coletiva Revista de Antropofagia, que teve duas etapas, ou
dentições – a primeira dentição com dez números e a segunda com 15 edições no Diário de São
Paulo –, e participações variadas. O segundo ângulo é o das diversas obras ligadas ao movimento:
as telas “Abaporu”, “Antropofagia”, “Urutu” e “Floresta”, de Tarsila do Amaral, “Macunaíma”, de Má-rio de Andrade – esse, em boa medida, contrafeito com a filiação antropofágica, “Cobra Norato”, de Raul Bopp, a “Revista de Antropofagia”, o próprio “Manifesto Antropófago” e “Serafim Ponte
Grande”, de Oswald de Andrade. Apesar do tempo que separa textos como “Manifesto Antropófago” de “A crise da filosofia messiâ-
nica” e “A marcha das utopias” – e o fato de esses textos já terem um tom mais sério (Nunes, 2011a)
e, por vezes, conservador, no sentido de indicar uma via civilizacional que se aproxima de certa noção de mestiçagem (Ricupero, 2018b, p. 892) –, havia, neles, uma espécie de metafísica caliba-nesca – a qual informará também toda uma filosofia da história (Lima, 2019) –, algo que, desde o “Manifesto Antropófago”, pode ser visto no aforisma “Única lei do mundo. Expressão mascarada de
todos os individualismos, de todos os coletivismos. De todas as religiões. De todos os tratados de paz” (Andrade, 2011, p. 67). Argumentamos isso, pois, logo na abertura de sua “A crise da filosofia
messiânica”, Oswald veria a antropofagia como uma wentalschauung, isto é, uma visão de mundo:

A ANTROPOFAGIA RITUAL é assinalada por Homero entre os gregos e segundo a documen-
tação do escritor argentino Blanco Vilíalta, foi encontrada na América entre os povos que haviam atingido uma elevada cultura. [...] Tratava-se de um rito que, encontrado também
nas outras partes do globo, dá a ideia de exprimir um modo de pensar, uma visão do mundo, que caracterizou certa fase primitiva de toda a humanidade. [...] Considerada assim, como
weltanschauung, mal se presta à interpretação materialista e imoral que dela fizeram os jesu-
ítas e colonizadores. Antes pertence como ato religioso ao rico mundo espiritual do homem
primitivo. Contrapõe-se em seu sentido harmônico e comunal, ao canibalismo que vem a ser
a antropofagia por gula e também a antropofagia por fome (Andrade, 2011, p. 138).

De certa forma, armado desde essa cosmovisão, Andrade veria um caminho distinto para toda a
humanidade e sua história. Numa primeira etapa, seríamos bárbaros, num segundo momento, serí-amos civilizados e, num estágio final, seríamos bárbaros tecnizados, voltados para o que há de mais
elementar e para uma vida sem repressões. Para Oswald, a história do mundo seria dividida entre
patriarcado e matriarcado. Ligada ao primeiro temos uma cultura antropofágica e ao segundo uma cultura messiânica. Essa última está aparada na “constatação de que a esperança depositada no Mes-sias vem funcionando como apaziguador de qualquer resposta à escravidão decorrente da substitui-
ção do matriarcado primitivo pelo patriarcado” (Sterzi, 2011, p. 446) – no qual há o predomínio de
uma classe sacerdotal sobre todas as demais. O patriarcalismo, assentando no predomínio de uma
classe sacerdotal, seria absorvido dialeticamente pelo matriarcado, por meio de uma síntese em que, ao matriarcado, serão somadas as conquistas técnicas. Nesse raciocínio, a URSS teria prefigurado elementos dessa nova civilização, todavia, pelo seu dogma obreiro, retrocedeu à reforma e à própria filosofia messiânica. Assim, só uma restauração tecnizada de uma cultura antropofágica poderia res-
taurar os problemas dos seres humanos, reinstaurando um matriarcado cujas manifestações seriam
o Estado sem classes (ou a ausência do Estado) e propriedade comunal do solo.

É interessante notar que, nesses textos mais tardios, o momento caliban de Oswald de Andrade
chega mesmo a tocar o arielismo, no qual é possível ver uma contraposição entre a América La-

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As viagens de Caliban na América Latina

tina e o utilitário Estados Unidos da América, mostrando as possíveis ambiguidades desse elogio oswaldiano à diferença brasileira. Essa aproximação se dá justamente pela ênfase e celebração do particular diante de um universal (Chibber, 2013) – identificado com noções particularistas
impostas pelo Ocidente –, cujo resultado acaba sendo a desistorização de complexos processos so-
cioculturais, os quais passam a ser percebidos como características essenciais de um “povo”, desde
as quais pode-se pensar alternativas civilizacionais para outras nações. Postura que, de modo até
mesmo não intencional, pode aproximar projetos e interpretações progressistas e conservadoras.
Nesse sentido, veja-se a seguinte passagem de “A marcha das utopias”:

Quando falo em Contra-Reforma, o que eu quero é criar uma oposição imediata e firme ao
conceito árido e desumano trazido pela Reforma e que teve como área cultural particular-
mente a Inglaterra, a Alemanha e os Estados Unidos da América. Ao contrário, nós brasi-
leiros, campeões da miscigenação tanto da raça como da cultura, somos a Contra-Reforma,
mesmo sem Deus ou culto. Somos a Utopia realizada, bem ou mal, em face do utilitarismo
mercenário e mecânico do Norte. Somos a Caravela que ancorou no paraíso ou na desgraça da selva, somos a Bandeira estacada na fazenda. O que precisamos é nos identificar e con-
solidar nossos perdidos contornos psíquicos, morais e históricos (Andrade, 2011, p. 228). Algo que se aproxima, também, de uma série de conclusões tiradas por Richard Morse (1988) a respeito do que chama de Ibero-América. Essa, pelo compromisso ibérico religioso e científico organicista, barroco e arquitetural, configuraria não só uma via civilizacional distinta da Anglo-

-América (mecanicista, individualista e desencantada), como uma alternativa para essa última se repensar e sair para a sua crise cultural gestada nas décadas de 1960 e 1970.
Considerações finaisÀ vista do que foi exposto e do contexto específico do calibanismo na América Latina, ensaiaremos
algumas aproximações e diferenciações entre Oswald de Andrade e Aimé Césaire.

Oswald de Andrade e Aimé Césaire se sentiram, respectivamente, brasileiro e fazendo parte de um
movimento geral de negritude em Paris. A partir desses lugares, passaram a pensar uma crítica radical ao Ocidente. Mesmo com essa aproximação, é importante fazer distinções quanto à posi-ção social de ambos: enquanto Aimé Césaire era negro e filho de um funcionário público de posto baixo e de uma mãe costureira (Pestre de Almeida, 1978; Confiant, 1993), indo à Paris por meio de
bolsas que reconheciam seu rendimento escolar; Oswald de Andrade, por sua vez, era branco e foi
a Paris, várias vezes, por meio da fortuna familiar e pertencia a uma aristocrática família brasilei-
ra. Nesse movimento de radicalização política e teórica dos autores, vê-se, nos seus, uma espécie
elogio ao que era considerado – pela norma europeia – atraso. Aspecto claro em várias passagens
de Oswald, quando fala, por exemplo, na felicidade pré-cabralina de um matriarcado de Pindora-
ma ou, no caso de Césaire, em seu “Discurso sobre o colonialismo”, em que faz uma apologia das
sociedades cooperativas a anticapitalistas destruídas pelo imperialismo. Tanto é que Césaire irá
mesmo sugerir que, a despeito da colonização brutal, o que o consola seria o fato dos povos, com
suas tradições, resistirem e existirem. Algo muito próximo da sugestão de Oswald a respeito da
existência de outro Brasil, antropófago, por baixo da norma europeia.

Nesse diapasão, pode-se entender também o destaque das obras dos dois autores em meio ao
vanguardismo estético nacional e internacional. Uma das disposições que mais alimentou as van-

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Rafael Marino

guardas modernistas no seu ímpeto de se opor e romper com a civilização e a arte burguesas foi
o chamado mito da evasão. Tal mito nutriu uma disposição sistemática de artistas, como Picasso, Kandinsky, Klee, Breton e outros, de abandonar a Europa civilizada e buscar tudo “o que era ‘bár-baro’, tudo o que não era Grécia clássica, ou Renascença, ou tradição a ela relacionada” (Micheli,
2004, p. 55).

Tanto em Oswald de Andrade quanto em Aimé Césaire havia uma posição forte contra o processo de homogeneização política, racial e cultural vindo desde a colonização e uma crítica à universa-
lidade – paradoxalmente marcada por forte europeísmo. Levando-os a questionar palavras pre-
tensamente unívocas como o universal. Além, é claro, de um conteúdo fortemente anticolonialista. Mesmo que também nessa seara partissem de pressupostos distintos, dado que, enquanto Oswald
de Andrade vivia no Brasil, país formalmente independente, Aimé Césaire, por seu turno, era pro-veniente da Martinica, colônia e posterior departamento francês de ultramar. Ambos identificam e criticavam as submissões materiais e mentais da colônia ou ex-colônia à metrópole europeia, as
quais conformavam uma situação de exploração e opressão generalizada. Além disso, enquanto a ênfase de Andrade é nas figuras indígenas, na sua vida desrecalcada pré-cabraliana e sua resistên-
cia posterior, o destaque de Césaire é sobre povos negros escravizados na ligação afro-diaspórica entre América – África. À vista disto, não é à toa que tanto Andrade quanto Césaire defendam que
por baixo da religião, das leis e dos costumes europeus existentes nas colônias e ex-colônias have-
ria uma socialidade complexa baseada na antropofagia e seus ditames e na vida popular pré-colo-
nial, isto é, por baixo das vestimentas coloniais, Caliban era soberano.

Apesar da construção política e estética deveras radical de Andrade e Césaire, calcada justamente
na preconização do seria considerado primitivo e original em suas realidades históricas, não é
possível deixar de notar ambiguidades sensíveis. Consoante ao que já havíamos exposto sobre o pensamento de Oswald de Andrade, podemos identificar duas oscilações significativas: em pri-meiro lugar, vê-se, em seu elogio à diferença local, um movimento de exotização comparável a um orientalismo às avessas (Chibber, 2013). Em segundo lugar, nos textos finais de Andrade pode-se
reconhecer um dos tópicos diletos do arielismo latino-americano, a saber: que o Brasil e a América
Latina seriam dotados de uma espiritualidade e de uma cultura desinteressada que faria frente ao
utilitarismo da América do Norte. O que também traria consigo uma imagem idílica e iberista de
uma América orgânica e socialmente coesa. Em Césaire, apesar dessa identificação com certo arielismo ser mais difícil, pode-se notar, em meio à sua crítica frente ao pretenso universalismo abstrato europeu, a tentação de hipostasiar mo-mentos históricos de sociedades específicas. Dito isso, é preciso notar também que essa posição culturalista de um orientalismo às avessas aparece em Césaire de forma menos explícita e mais
amalgamada a uma crítica radical ao colonialismo capitalista. Em Andrade, por seu turno, essa postura exoticizante irá se reafirmando ao longo de sua experiência intelectual e ganhará plena cidadania em seus escritos utópicos finais.
Quanto ao posicionamento político, é interessante termos em vista que ambos foram ligados aos
Partidos Comunistas de seus países e que isso foi importante em suas trajetórias, mesmo que (a)
tenham criticado a linha obreirista praticada em determinados períodos pelos comunistas, (b)
tenham desenvolvido estéticas diversas ao realismo socialistas e (c) que tenham sido vistos com desconfiança pelas direções partidárias (Dantas, 2006; Vrancic, 2018). Ambos, de um modo ou de outro, viam o comunismo, ao menos por um tempo, em uníssono ou à construção anticolonial e de libertação nacional, no caso de Césaire, ou à construção de uma nova civilização antropófaga,

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As viagens de Caliban na América Latina

como gostaria Oswald de Andrade. Se ambos se aproximaram dos comunistas na década de 1930, afastaram-se desses em períodos distintos: Andrade em 1945 e Césaire, definitivamente, em 1956.
Outros dois pontos dignos de nota são os seguintes: Césaire, apesar de não ter sido do secretaria-do central, assumiu certo destaque dentro do partido como deputado pela Martinica, e Oswald de Andrade, por sua vez, segundo contou Jorge Amado (Dantas, 2006, p. 169), fora preterido na
formação da chapa parlamentar de 1945 por Luís Carlos Prestes e Diógenes Arruda Câmara. Após o rompimento, Césaire criará um novo partido, o Parti Progressiste Martiniquais e será deputado da Martinica e prefeito de Fort-de-France por 56 anos.
Em último lugar, em suas obras vemos imagens do canibalismo. Em Oswald de Andrade, como foi
visto, isso é mais sistemático e estruturante; em Aimé Césaire, por sua vez, a imagem é mais rápida e
está presente com mais força em “Diário de um retorno ao país natal”. Não obstante, o essencial é que
em ambos os atores as imagens do canibalismo e da antropofagia terão o mesmo sentido: fazer com
que Caliban, visto anteriormente como um escravizado, embrutecido e marcado pela “feiura mate-
rialista”, passe a ser visto como a imagem da revolução caraíba anticolonial. Assim, essa diferença
calibanesca, com ambiguidades e limites, poderia fazer frente ao universalismo ocidentalista e sua homogeneização, à magia colonialista de Próspero ou ao colaboracionismo de Ariel. Dessa forma, as
obras de Andrade e Césaire se apresentam como genuínas contribuições anticolonialistas. Mesmo que com usos variados da peça de Shakespeare, a navegação pelo seu manancial de metá-
foras e imagens para pensar a América Latina mostra-se frutífero para compreensão das identida-
des políticas desse subcontinente ao longo da história.

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As viagens de Caliban na América Latina

Caliban’s travels in Latin America: a
comparative study between Oswald de
Andrade and Aimé Césaire

Abstract:
William Shakespeare’s play “The Tempest” had
deep and diverse resonances from its original con-
text. Proof of this is that she and her characters
were used systematically, and in a broad tempo-
ral space, to think metaphors about America – its
conditions of colonization, geopolitical disputes,
construction of identities and crystallization of
images about the continent. The case we have on
screen here is an excerpt of this general picture:
we intend, here, to study the so-called caliban mo-ment of Latin American thought. More precisely,
we intend to make a comparative study of the in-
tellectual experiences of Oswald de Andrade and
Aimé Césaire. Our objective with this comparative
study is to offer a reading on the constitution, po-
tentials and limitations of calibanism – which was
and is essential for conforming images and ideas
about Latin America.
Keywords: Latin America. Latin American politi-
cal and social thought. Calibanism. Postcolonial/
decolonial studies. Latin American identities.

Los viajes de Caliban por América Latina:
un estudio comparativo entre Oswald de
Andrade y Aimé Césaire

Resumen:
La obra de William Shakespeare, “La tempestad”,
tuvo resonancias profundas y diversas de su con-
texto original. Prueba de ello es que ella y sus
personajes fueron utilizados sistemáticamente, y
en un amplio espacio temporal, para pensar me-
táforas sobre América: sus condiciones de colo-
nización, disputas geopolíticas, construcción de
identidades y cristalización de imágenes sobre el
continente. El caso que tenemos aquí en pantalla
es un extracto de ese cuadro general: pretende-
mos, aquí, estudiar el llamado momento calibán del pensamiento latinoamericano. Más precisa-
mente, pretendemos hacer un estudio comparati-
vo de las experiencias intelectuales de Oswald de
Andrade y Aimé Césaire. Nuestro objetivo con este
estudio comparativo es ofrecer una lectura sobre
la constitución, las potencialidades y las limitacio-
nes del calibanismo, que fue y es fundamental para
conformar imágenes e ideas sobre América Latina.
Palabras clave: América Latina. Pensamiento po-
lítico y social latinoamericano. Calibanismo. Estu-
dios poscoloniales/decoloniales. Identidades lati-
noamericanas.