TOMO. N. 39 JUL./DEZ. | 2021
Uso de Substâncias Psicoativas e
Controle Social do Uso do Álcool: Mestres
Beberrões na Casa de Jurema Mestre
Carlos – RN
Janaina Alexandra Capistrano da Costa*1
Resumo
Neste artigo apresento elementos empíricos que caracterizam a atua-
ção ritual dos Mestres Beberrões, espíritos antepassados que incorpo-
ram em médiuns praticantes do Culto da Jurema para promover curas,
e realizo uma breve discussão sobre como a regulação do consumo do
álcool se dá nesse contexto. Especialmente por meio de valores trans-
mitidos através dessas atuações e dos preceitos do desenvolvimento
mediúnico preconizado no âmbito da minha pesquisa; a Casa de Ju-
rema Mestre Carlos, situada na zona rural da cidade de Extremoz no
Rio Grande do Norte (RN). Esta pesquisa contribui para aprofundar
o conhecimento tanto sobre a categoria dos Mestres da Jurema, ainda
incipiente na academia, quanto sobre os mecanismos sociais de con-
trole do consumo de substâncias psicoativas desenvolvidos em meio
religioso.
Palavras-chave: Jurema. Religião. Controle de drogas.
* Professora no curso de Ciências Sociais da Universidade Federal do Tocantins - Campus
de Porto Nacional. E-mail: janacapis@uft.edu.br
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USO DE SUBSTÂNCIAS PSICOATIVAS E CONTROLE SOCIAL DO USO DO ÁLCOOL
TOMO. N. 39 JUL./DEZ. | 2021
El Uso de Sustancias Psicoactivas y Control Social Del
Uso Del Alcohol: Maestros Bebedores en La Casa de
Jurema Mestre Carlos – RN
Resumen
En este artículo presento elementos empíricos que caracterizan la ac-
tuación ritual de los Maestros Bebedores, espíritus ancestrales que
incorporan en los médiums que practican el Culto de la Jurema para
promover curas, y realizo una breve discusión sobre cómo se da la re-
gulación del consumo de alcohol en este contexto. Especialmente por
intermedio de los valores transmitidos a través de esas actuaciones y
de los preceptos de desarrollo mediúmnico recomendados en el ámbi-
to de mi investigación, la Casa de Jurema Mestre Carlos, ubicada en la
zona rural de la ciudad de Extremoz en Rio Grande do Norte (RN ). Esta
investigación contribuye a profundizar el conocimiento tanto sobre la
categoría de Maestros de Jurema, aún incipiente en la academia, como
sobre los mecanismos sociales de control del consumo de sustancias
psicoactivas desarrollados en un ambiente religioso.
Palabras clave: Jurema. Religión. Control sobre drogas.
Use of Psychoactive Substances And Social Control
of Alcohol Use: Mestres Beberrões At Casa De Jurema
Mestre Carlos - RN
Abstract
I present in this article empirical elements that characterize the ritual
performance of the Mestres Beberrões, ancestral spirits that incorpo-
rate mediums practicing the Cult of Jurema to promote cures, and I also
hold a brief discussion on how the regulation of alcohol consumption
occurs in this context. Especially through the values transmitted by
these performances and precepts of mediumistic development recom-
mended in the scope of my research, the Casa de Jurema Mestre Carlos,
located in the rural area of the city of Extremoz in Rio Grande do Norte
(RN). This research contributes to deepen the knowledge about the
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category of the Mestres da Jurema, still incipient in the academy, and
about the social mechanisms of control of the consumption of psycho-
active substances developed in a religious environment.
Keywords: Jurema. Religion. Drug control.
Introdução
O chamado Culto da Jurema é, certamente, um dos mais antigos
cultos presentes na região que hoje conhecemos como território
brasileiro. Sendo de origem indígena, foi protagonista nos pri-
meiros encontros com a cristandade e o esoterismo europeus.
Neste artigo, apresento uma pequena parte dos elementos em-
píricos construídos ao longo de mais de uma década de pesqui-
sa sistematizada na Casa de Jurema Mestre Carlos, situada na
zona rural da cidade de Extremoz no Rio Grande do Norte (RN).
Os elementos que apresento aqui caracterizam a atuação ritual dos
“Mestres Beberrões” e fazem parte dos preceitos religiosos preco-nizados por essa Casa. Por meio deles, identifico um conjunto de re-
gras e valores que orienta a regulação do consumo do álcool nesse
contexto, estabelecendo um contraponto aos mecanismos de regu-
lação/regulamentação que são predominantes na sociedade englo-
bante e na ação dos dispositivos estatais. No texto a seguir, teço pri-
meiramente algumas considerações que caminham no sentido da definição do Culto da Jurema, da sua contextualização sociopolítica
e das relações que ele estabelece com o uso de substâncias psico-ativas. Em seguida, traço um panorama dos aspectos específicos e definidores do contexto ritual pesquisado, para adentrar, num ter-
ceiro momento, na discussão sobre a atuação dos Mestres em ques-
tão e o uso do álcool. Essa abordagem tem o intuito de contribuir
para suprir lacunas ainda existentes nas pesquisas sobre o culto
em tela, bem como trazer à tona um exemplo de pensamento de
fronteira de acordo com o pensamento decolonial.
Desde o ponto de vista etimológico, Jurema advém da palavra
da língua Tupi Yu-r-ema, cujo significado seria: planta ou árvore
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com espinhos por meio da qual se produz beberagem capaz de
gerar sono ou êxtase em quem a consome (Gaspar, 2019; Cas-
cudo apud Assunção, 2010a, p. 19). O signo Jurema, porém, é
marcado por uma vasta e complexa polissemia que perpassa a
farmacopéia de origem indígena, o campo religioso brasileiro e
até mesmo a ideia de identidade nacional, simbolizando o gru-
po mestiço dos caboclos (Bairrão, 2002). No que diz respeito à categoria classificatória Culto da Jurema, ela designa os investi-
mentos simbólicos realizados em torno da planta Jurema e/ou
da bebida de mesmo nome produzida a partir dessa planta, a
despeito de possíveis variações das subespécies utilizadas, das
formas de produção e de uso dessa bebida. Ditos investimentos
produzem formatos rituais dos mais variados tipos que no refe-rido campo transitam sem ordem pré-definida num arco entre a afirmação de identidades étnicas indígenas, como o Toré, e a
imagem genérica do caboclo presente na Umbanda, por exemplo
(Tromboni, 2012, p. 118-120). Dessa maneira, o Culto da Jurema pode se constituir em religião autônoma classificada no conjun-
to de religiões “afro-indo-brasileiras” (Campos & Neri, 2020), assim como pode se “camuflar” no interior de uma religião como
o Candomblé (Campos & Rodrigues, 2013).
Em termos botânicos a Jurema pertence à subfamília Mimosa-
ceae e as subespécies mais comumente presentes no culto são
a Mimosa tenuiflora (jurema-preta), a Mimosa ophthalmocentra
(jurema-vermelha) e a Mimosa verrucosa (jurema-branca ou
jurema-mansa) (Gaujac, 2013). Fisiologicamente, uma caracte-
rística marcante dessas subespécies é o fato de elas conterem na
sua estrutura molecular a dimetiltriptamina (DMT), o que torna
as substâncias criadas a partir delas potencialmente psicoativas.
Entretanto, para que dita molécula chegue ao cérebro a partir
da ingestão, é necessário que a enzima estomacal monoamino-
xidase (MAO), que a degrada, seja neutralizada por algum meio,
como o consumo simultâneo de outra substância que contenha
beta-carbolinas (Ott, 2009). A Jurema não possui uma composi-
ção padrão e o seu preparo é mantido na esfera do segredo, que
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é um aspecto central no culto em questão. Muito embora haja
menções nativas aos elementos que compõem a substância (As-
sunção, 2010a p. 202-203), elas nunca são homogêneas e citam
alternada ou conjuntamente: casca de jurema, raiz de jurema,
vinho de uva, cachaça, espécies do gênero Cyperus, especiarias,
frutas e mel (Camargo, 2014). Houve ademais menção à casca de
jurema batida em água gelada somente, mas nenhuma composi-
ção explica os efeitos psicoativos alcançados e, sendo assim, se
chegou a conjecturar que o excessivo consumo do tabaco, fuma-
do pelos juremeiros durante os rituais, os proveria da citada en-
zima (Ott, 2009). O que pode nos levar a crer que o mencionado
uso do rapé (pó inalante composto majoritariamente por cinzas
de espécies vegetais como a Nicotina Tabacum e a Piptadenia pe-
legrina) nesse culto (Cascudo, 1951, p.84-85) também exerceria
a mesma função. Contudo, uma vez que a ciência ocidental ainda
não oferece pesquisas conclusivas, a questão da veiculação dos
efeitos visionários da Jurema continua aberta (Ott, 2009).
A DMT é considerada o “protótipo da molécula visionária”, e isso significa que seus efeitos podem provocar alterações na percep-
ção visual sem perda de consciência e de memória, motivo pelo
qual as drogas visionárias são consideradas “drogas de excur-
são” e não “drogas de rapto”, como as substâncias alucinógenas.
Sua ingestão, geralmente, produz a percepção de diluição do eu
indivíduo e desvelamento de dimensões anímicas da vida, que
tendem a compor quadros cosmológicos e, portanto, a vincular
a autoconsciência a um sentido planetário ou universal. Uma das
explicações para esses efeitos é a de que a estrutura molecular
dessas substâncias guarda grandes semelhanças com os neuro-
transmissores monoanímicos (dopamina, serotonina, acetilcoli-
na, histamina e norepinefrina), assim, sua presença no cérebro
diminui o tempo empregado na transmissão dos sinais nervo-
sos aumentando a quantidade de informações nesse órgão (Es-
cohotado, 2015, p. 40, 117, 159-161). Já em relação à potência
desses efeitos, há o entendimento de que em ritos ligados aos
cultos mais tradicionais prevalece o efeito de baixa potência que
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poderia ser classificado como “psicotrópico”, do grego psychê +
optikos, “que produz visões mentais ou espirituais” (Ott, 2009)1.
Poderíamos dizer que a Jurema, em virtude do seu caráter vi-
sionário, se constitui numa “hierofania mediata”, ou seja, numa
mediadora da hierofania enquanto experiência extraordinária e
reveladora de algo localizado para além da situação vivida con-
cretamente (Eliade, 2010, p. 355-359). A morte é uma das pri-
meiras experiências hierofânicas do ser humano e como tal des-
perta, concomitantemente, veneração e temor e assim consagra
determinada fração do espaço e do tempo. A repetição desse
evento permite que as pessoas comunguem o sagrado (re)ela-
borando-o constantemente (Eliade, 2010, p. 2-39, 296). Logo, da
experiência dos efeitos visionários dessa substância, tais como
os descritos acima, decorrem sua consagração e vinculação a
sistemas simbólicos, mágicos e míticos.
No sistema mítico do Culto da Jurema, a árvore e a bebida da
Jurema são consideradas sagradas e em torno delas gravita o
reino dos encantados, que é formado por cidades habitadas pe-
los Mestres, que incorporam nos médiuns praticantes para rea-lizar curas físicas e espirituais (Assunção, 2010b, p. 172). Tanto
a espécie vegetal quanto a substância funcionam como chave de
acesso a esses territórios, que se apresentam no mundo mate-
rial através de lugares na natureza, bem como se plasmam no
mundo espiritual. Adentrando esses espaços, o praticante tem
acesso a saberes e a segredos que ao longo dos anos podem tor-
ná-lo um Mestre, quer dizer, um detentor da Ciência da Jurema.
Os “Mestres são, pois, vivos e mortos, e os que hoje vivem e fa-
1 Em comunicação realizada nas Jornadas Plantas Sagradas em Perspectiva (UNICAMP
- 10/08/2016) o reconhecido pesquisador da Jurema Rodrigo A. Grünewald sublinhou
esse aspecto à diferença da ayahuasca, uma bebida de origem indígena e amazônica que
também contém DMT na sua formulação e é consumida no bojo de grupos religiosos sin-
créticos como o Santo Daime. Durante mais de uma década de pesquisa participativa nos
âmbitos do Culto da Jurema e das “religiões ayahuasqueiras” pude constatar por meio da
experiência empírica essa diferença na potência entre tais substâncias.
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zem seu trabalho de culto aos Mestres do além, um dia também
serão espíritos e como tais serão chamados nas cerimônias de
auxílio mágico aos viventes” (Prandi, 2010, p. 15).
No que diz respeito às pesquisas sobre as religiões afro-indo--brasileiras existe um deficit de estudos que se dediquem aos
Mestres da Jurema, em comparação às pesquisas desenvolvi-
das sobre as divindades do panteão africano no Candomblé e
as entidades da Umbanda. Por outro lado, o Culto da Jurema configura-se como um contexto de consumo de diferentes subs-
tâncias psicoativas, mas os mecanismos de regulação interna
desse consumo são pouco pesquisados. Com algumas variações
entre os grupos praticantes, encontramos o uso concomitante
de uma substância visionária, a Jurema, do tabaco, que é uma
substância majoritariamente estimulante, e de uma substância
depressora que é o álcool, destilado ou fermentado. Como vimos
anteriormente, o álcool pode estar presente na formulação da
Jurema, mas esse não é seu único modo de consumo, pois ele
pode ser eventualmente servido aos Mestres durante os rituais,
os quais podem, por sua vez, oferecer uma pequena quantidade
da substância aos consulentes a partir da sua própria cuia ou copo. Chama atenção o fato de dentre uma infinidade de Mes-
tres que trabalham com a Jurema e o Cachimbo, existir uma li-nhagem específica cuja especialidade é trabalhar com o álcool, além desses elementos. Refiro-me aqui aos Mestres Beberrões.
Espíritos que em vida foram consumidores abusivos de bebidas
alcoólicas, mas que se consagraram na Jurema e após seu “pas-
samento” integraram o panteão juremeiro.
O contexto da pesquisa
Contemporaneamente, no universo de modalidades de Culto da Jurema, seria possível identificar três linhas principais que
aglutinam determinadas características: a “jurema nordestina-
-indígena-rural”, marcada pela presença de ritos indígenas e do
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Catimbó, que é caracterizado pela junção da religiosidade rural
portuguesa e elementos dos ritos nativos; a “jurema afro-urba-
na”, que é a Jurema como representação dos espíritos dos cabo-clos dentro dos rituais de origem africana; e, por fim, a “jurema europeia-ocidental-urbana”, definida pelo consumo urbano da
substância psicoativa fora do contexto religioso propriamente
dito, mas ligado a esse conhecimento (Mota, 2005, p. 223).
Porém, durante a última década, o Culto da Jurema tem trilhado
um percurso da invisibilidade à visibilidade (Campos & Rodri-gues, 2013) por meio de um movimento que procura afirmar a tradição da Jurema e que se autodefine como “povo de jure-
ma”. Esse movimento teria emergido com força sob a incidên-
cia das políticas de promoção da igualdade racial e das políticas
de combate às desigualdades, que a partir do primeiro decênio
do séc. XXI reconheceram os “povos de terreiro” como sujeitos
de direitos (Miranda, 2018). Nesse contexto, os modelos rituais
ditos tradicionais como a Jurema de Mesa e a Jurema de Chão,
que estariam mais próximos da linha do Catimbó e, portanto,
mais ligados às origens ameríndias e mestiças, passaram a ser mais valorizados. Ademais, o culto passou a ser afirmado cada
vez mais como religião autônoma, a Jurema Sagrada, sinalizan-
do o interesse pelo reconhecimento dos grupos numa horizon-
talidade com relação a outras religiões. Dessa forma, podemos
vislumbrar duas vias de presença da religião no espaço público,
conforme tese assente nos estudos da religião (Giumbelli, 2008,
p. 88-89), a “via culturalista”, que absorve as demandas dife-
rencialistas, e a “via generalista”, que absorve as demandas por
equanimidade de acesso a direitos como o direito à liberdade
religiosa.
No RN, onde realizo minha pesquisa, o referido processo de vi-sibilização pode ser identificado na realização do “Fórum esta-
dual das comunidades tradicionais de terreiro” em Natal desde
2018 e que se constituiu num espaço privilegiado para o “povo
de jurema” reivindicar seu reconhecimento como “povo tradi-
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cional de matriz afro-indígena” e, portanto, como parte do “povo
de terreiro”, sujeito de direitos. Por outro lado, um exemplo de
como o apelo à tradição tem se dado no campo religioso natalen-
se é a referência a uma origem comum, já largamente legitimada
pela literatura antropológica, que é a Jurema do Acais na Para-
íba (Assunção, 2014). Diferentemente, a Casa de Mestre Carlos
se destaca nesse campo por dois motivos principais, primeiro
porque seu dirigente Melquisedec Costa da Rocha, que é meu principal informante, figura como uma grande liderança política
e religiosa no estado e, segundo, porque o grupo que lidera par-ticipa do referido processo afirmando sua identidade a partir do
formato ritual que pratica que é a Jurema de Chão. Um formato
ritual que teria se originado nos “pé de serra” do sertão potiguar.
Num eloquente depoimento sobre a preservação da tradição, ele
nos deixa entrever sua articulação com vistas à defesa de uma
identidade religiosa e um ideal de autenticidade que poderia ser
aproximado da noção de pureza:
Conheci uma jurema, uma jurema de pé no chão, uma jurema
de camisa de manga comprida, era uma jurema de chapéu de palha, com fios de conta, dessa conta de capim de lágrima de
Nossa Senhora e algumas sementes. Hoje nós vemos juremei-
ros de torço com orelhas, com roupas que são advindas do
Candomblé, eu creio que a jurema tem uma identidade pró-
pria, a jurema, ela é um culto à parte, ela não é Umbanda, ela
não é Candomblé; é jurema. Aí tem hora que a gente vê, a pes-
soa diz lá, óh sou juremeiro, sou Mestre juremeiro e tal, você
olha assim é uma pessoa que é um Babalorixá, mesmo que
ele seja Babalorixá, mas ele não vai botar roupa de jurema
para o Candomblé. Então seria muito interessante que cada
um use as suas indumentárias de jurema, para caracterizar a
jurema, para fortalecer esse movimento jurema, o Candom-
blé já é por si, assim como a jurema também é por si. O que
nós precisamos é ter essa consciência de dizer: perai! Eu não
preciso botar uma roupa de Richelieu para ir para uma mesa
de jurema, eu boto uma camisa de manga comprida, boto um
chapeuzinho de palha, um chapéu de couro, um chapéu de
massa, aí realmente é caracterização. Ah o ano passado me
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chamaram para uma outra coisa que se fala muito, axé de ju-
rema. Eu nunca vi isso na minha vida meus irmãos! Se disser
assim: eu estou renovando a minha jurema, eu estou refor-
çando a minha jurema, aí eu vou compreender. Aí vai uma
pessoa me chama, uma conhecida minha. A eu vou tomar um
axé de jurema! Eu digo: Vou ver como é. Aí fui. Chegando lá
de juremeiro só tinha eu, que o povo, o restante do pessoal
estava todo mundo vestido como se fosse para um Candom-
blé, era panos e mais panos, orelhas e mais orelhas, eu lá com
meu chapeuzinho de palha, minha conta de capim, minha
roupinha branca, manga comprida, eu demorei um tempo lá,
mas foi uma misturada tão grande, que eu digo: É eu já vou.
Depois ela veio me perguntar: E aí o que foi que achou do meu axé? Eu disse: minha filha, jurema não tem axé, quem
tem axé é Candomblé, axé quem tem é Candomblé, jurema
tem ciência, bota isso na tua cabeça: jurema é ciência! (MCR
15/07/2016).
Coerente com uma perspectiva interessada na manutenção de
uma identidade, em fala elaborada num momento posterior, Me-
lquisedec descreveu o posicionamento da Casa que dirige frente a influência das entidades da Umbanda ligadas ao Exu e à Pomba Gira. É interessante notar que tal posicionamento parece modifi-
car a posição do Culto da Jurema ocupada, até bem pouco tempo
atrás, na relação com os cultos de matriz africana.
O que nós precisamos compreender é que nós não podemos
perder a nossa identidade, nós não podemos, é... moder-
nizar os nossos rituais porque eles são tradicionais. Hoje
você vê que existe uma diferença do rito da mesa para o rito
da gira, porque gira já é coisa de Umbanda. Então você vê
muitas, muitas cantigas, que ali já deixou de ser hinos de
Jurema. Porque eu vou cantar para as Pombo Gira... parece
mais cantiga de ruedeira de bar de esquina. E quando a gen-
te sabe que essas cantigas mais antigas, eram umas cantigas que elas tinham início, meio e fim; elas traziam um recado;
elas traziam um fortalecimento. Porque na Jurema não tem
Exu, não tem Pombo Gira. Não tem. Mas como a maioria das
pessoas tem, então se tira um dia reservado para o culto a
eles. Aí no dia que tem Jurema, não precisa cantar nem pra
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Exu nem para Pombo Gira, porque na Jurema também tem
seus guardiões. É... Cada, cada mestre, de acordo com a sua
ciência tem o seu espírito guardião que segura a entrada da
casa. (MCR 26/08/2016).
Durante o século XX, diante da intensa urbanização que ocorria
no país e com a aproximação cada vez mais integrativa com as re-
ligiões de matriz africana, o Culto da Jurema teria adquirido uma dimensão subterrânea e se camuflado no interior de outros for-
matos religiosos e espaços como os terreiros de Candomblé e de Umbanda. Essa invisibilização teria sido influenciada pela maior
aceitação da sociedade que se modernizava para com essas mani-
festações da religiosidade africana, devido à prevalência da dico-
tomia magia/religião que reservava a dito Culto o polo da magia e,
portanto, o colocava como foco das repressões policiais (Campos & Rodrigues, 2013). Outro fator que influenciou esse movimento
foi o fato de as Federações de Umbanda e de cultos de matriz afri-
cana, que podiam representar alguma garantia de reconhecimen-
to da condição de grupo religioso, exigirem dos juremeiros uma autoclassificação concernente aos modelos religiosos que essas
instituições representavam, deixando pouco ou nenhum espaço institucional para uma classificação estritamente juremeira (Mi-
randa, 2018). Quer dizer, mesmo que um dirigente de um culto
da jurema buscasse institucionalizar seu grupo, devia realizar seu
registro com nomenclaturas alheias. Sujeito a um constante pro-
cesso de reelaboração, o Culto da Jurema deu origem a formatos
rituais hibridizados, como o autoproclamado Candomblé de Ca-boclo e a “Jurema umbandizada”, mais precisamente identificada
dentro dos terreiros ditos de Umbanda do interior da PB, CE e PI
(Assunção, 2010a). Em decorrência, até mais ou menos a década
de 1990, pouco se ouvia falar da Jurema enquanto conjunto indi-vidualizado e específico de práticas mágico/religiosas, mais bem
a Jurema era cultuada em espaços rituais reservados ou até espa-
ços privados de alguns praticantes (Assunção, 2014).
Contudo, no séc. XXI, num ambiente mais favorável ao reconhe-
cimento da diversidade religiosa, pelo menos até 2016, os inves-
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timentos simbólicos em torno do Culto da Jurema caminharam no sentido da autoafirmação. Então, é interessante notar que se
antes a Jurema era acomodada por outras religiões minoritárias,
na fala citada anteriormente se dá o inverso. A Umbanda no caso
foi acomodada na Casa de Jurema Mestre Carlos num espaço--tempo à parte, como influência que chega com os próprios pra-
ticantes da Jurema, mas não se confunde com esta. Esse movi-
mento já vinha se conformando na trajetória dessa Casa com
quatro décadas de existência e que chegou a adotar, no passado,
o uso dos tambores em seus rituais, mas logo retomou o formato
da Jurema de Chão que preconiza o uso isolado do maracá.
As duas citações anteriores marcam as fronteiras identitárias com
relação àquela “jurema afro-urbana” (Mota, 2005, p. 223), entre-
tanto, há marcadores oriundos das relações com a sociedade en-
volvente também. São distintivos do formato ritual preconizado
pela Casa de Jurema Mestre Carlos a disposição dos médiuns con-
sagrados ou desenvolventes sentados em banquinhos próximos ao
chão em um semicírculo diante da mesa da jurema e o maracá de
cabaça como único instrumento musical. Segundo meu informante, essa configuração foi influenciada pela intensa perseguição que as
práticas tradicionais da Jurema sofreram ao longo da história e que
obrigaram os juremeiros a dissimularem seus rituais:
Essa Jurema dos nossos ancestrais nasce desse conjunto de
saberes do europeu que chega aqui com as suas rezas, dos
indígenas com seus saberes ancestrais, do africano que tam-
bém e eu creio que até mais o Banto que chegaram aqui pri-
meiro, depois foi que chegaram os Nagôs. Eles tiveram assim
um entrelaçamento de saberes que enriqueceu muito esse
culto do catimbó Jurema. Então antes se dizia assim: a grande
potência da Jurema é a fumaça, o pensamento e a reza forte.
Então era reza para algum tipo de problema, depois vinha o
cachimbo com as suas misturas [de ervas] de acordo também com as dificuldades, então se fumaçava, se rezava, aquela coi-
sa toda, então essa é a Jurema ancestral, a Jurema pé de serra,
não tinha tambor, quando muito se tinha palmas. Por quê?
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Uma das coisas era a perseguição policial e quando se pegava
um juremeiro o negócio era dar uma surra de pinhão roxo
para quebrar suas forças. Eu ainda peguei essa fase de perse-
guição em cidade do interior. A minha Madrinha tinha lá um
centro, mas ela tinha que ter a licença da delegacia, tinha a
licença da Federação, mas tinha que ter a licença da delegacia
para poder funcionar (MCR 11/2015).
Essa realidade é um exemplo cabal de regulação indireta do reli-
gioso que marca o regime de relações entre Estado e religião no
Brasil e que atingiu mormente grupos religiosos minoritários e subalternizados. Com a justificativa de preservar a saúde públi-
ca, o Código Penal brasileiro de 1890, juridicamente vigente até
1942, incidiu na formação de um ambiente marcado pelo precon-
ceito. Seu Artigo 157 considerava crime: “praticar o espiritismo,
a magia e seus sortilégios, usar de talismãs e cartomancias, para
despertar sentimentos de ódio ou amor, inculcar cura de mo-léstias curáveis ou incuráveis, enfim, para fascinar e subjugar a
credulidade pública” (Coleção de Leis do Brasil apud Giumbelli,
2003, p. 254). Essa criminalização ademais é uma expressão do
contexto de aliança entre o Estado e a medicina, como corrobo-
ram o Artigo 156 e o Artigo 158 do mesmo Código, que crimi-
nalizavam o curandeirismo e previam punições para o exercício
da medicina sem títulos acadêmicos, aplicação ou prescrição de substâncias com fins terapêuticos (Giumbelli, 2003). Na década
de 1930, com a criação da Comissão Nacional de Fiscalização de
Entorpecentes (CNFE), foi instituída a Seção de Entorpecentes Tó-xicos e Mistificações que tinha como um dos seus objetivos moni-
torar os cultos afro-indígenas (Carvalho, 2015), revelando como o controle oficial sobre o uso de substâncias encontrava-se atrelado
ao controle de expressões religiosas ligadas aos povos indígenas
e africanos. O que ajuda a explicar não só porque os ritos deviam
zelar pela discrição, mas também porque o segredo sobre o uso de
substâncias psicoativas devia ser preservado.
Durante minha pesquisa, uma questão, que eu sempre trazia à tona
na convivência com meu informante, era a formulação da Jurema,
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ao que Melquisedec invariavelmente respondia: “preparação é Ci-
ência”. Com o tempo fui ampliando minha compreensão sobre essa
Ciência e sobre a importância do segredo e do comedimento no
relativo ao uso da bebida. Segundo minha visão inicial, havia uma
hierarquia entre as substâncias internas no grupo, na qual a Jurema
estaria no topo, e essa visão se revelou, posteriormente, encontrar-
-se pautada por uma percepção do ambiente proibicionista que na-
turaliza o uso do álcool, tem um preconceito sobre o uso do tabaco
e ressalta o uso de drogas visionárias como sendo uma das práti-
cas de consumo de drogas mais excêntricas, exóticas ou perigosas. Agregado a isso, estava o fato de eu estar influenciada pela pesquisa
que desenvolvera com anterioridade sobre as “religiões ayahuas-
queiras brasileiras”, em que a bebida sacramental ayahuasca, que
também contém DMT como a jurema, possui proeminência sobre
qualquer outra substância que porventura seja consumida nesse
contexto. Além desses fatores que incidiam no meu olhar, havia um certo anseio de minha parte por uma “descoberta científica” (Bour-
dieu, 1983), que me levou a repetir a questão tantas vezes, tensio-nando com a paciência de minha fonte, mas, por fim, observei que
essa situação requeria redimensionamento, se tratava de entrar
num outro tempo para poder conhecer, compreender e ter ciência,
se tratava de entrar no tempo mítico.
Foi participando dos rituais da minha própria consagração na
Jurema Sagrada, na qual representamos a nossa “caminhada mí-
tica”, que vivenciei um “desprendimento” da “colonialidade do
saber” (Mignolo, 2008, p. 250)2, que me possibilitou enxergar
que a prática do segredo nesse contexto não representa apenas
2 A colonialidade do saber é a manifestação no domínio epistêmico da colonialidade do
poder, a qual se constituiu a partir da matriz colonial de poder, que se impõe nas socie-dades ocidentais baseada na classificação da população mundial segundo raça e gênero. As identidades geradas a partir da racialização e da generificação justificam a dominação
e exploração de certos corpos, bem como a subjugação e o apagamento da episteme des-
ses corpos (Mignolo, 2010). Nessa perspectiva o desprendimento se dá quando o pensa-
mento se abre a possibilidades encobertas pela racionalidade moderna, se conectando a
epistemes outras (Mignolo, 2008, p. 250).
Janaina Alexandra Capistrano da Costa
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uma estratégia política de proteção ao culto, como se tal práti-
ca se restringisse a uma reação de resistência. Guardar o segre-
do também tem a ver com o poder adquirido dentro da Ciência
da Jurema, passo a passo, durante um caminhar que não pode
queimar etapas sob pena de comprometermos essa formação, o
conhecimento e o poder que dela advém. Nesse sentido, o zelo pela Jurema pode ser visto como um “contrapoder” (Hofbauer,
2011), que possibilita a ruptura com a lógica epistêmica imposta
pelo entorno abrangente.
No seguinte discurso podemos acompanhar as palavras de Me-
lquisedec referidas ao núcleo dos investimentos simbólicos do
culto ao mencionar o preparo e o consumo da Jurema e o protago-
nismo da árvore dentro da cosmologia e da farmacopéia nativas.
Olha, a Jurema, nós temos o conhecimento que é uma árvore
de muita ciência. É um símbolo, né? É um símbolo que já
passa a ser, assim, um grande mito: A Jurema Sagrada. [...]
A Jurema Sagrada será preparada para as grandes mesas,
para os consagrados ou para aqueles que estão se consa-
grando. Que era uma forma de não profanar essa ciência
da Jurema. [...] Se não houver a ritualística para acordar
aquela energia, aí eu vejo assim como uma profanação de
algo tão sagrado para nós. [...] Porque assim, esse processo
é passado de... quando aquele discípulo, ele chega ao ponto
de ter novos discípulos, essas coisas são passadas para ele,
para que ele possa fazer. Então, a gente faz a primeira junto
com ele, que é para ele pegar todos os dados direitinho e
dar continuidade. Vou dizer que é um saber. É uma ritua-
lista de continuidade. [...] É uma vivência de adquirir uma
maturidade pra poder então preparar, e saber porque vai
preparar. Não é preparar aleatoriamente. É você prepa-
rar para dar continuidade a toda a ritualística a novos discí-
pulos. [...] E quando a Jurema é aquela árvore, ela atua como
um antibiótico, porque ela cura, ela tem aquela energia de
você tomar um banho e aquilo dá uma restauração na sua
aura astral. O descarrego, você se sentir leve. Tem a mistura
da folha com o fumo para defumações. E você vai vendo que
ela é uma árvore de mil e uma utilidades. Que pra tudo: para
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o cachimbo... até se faz o cachimbo com ela, e tudo... Quer di-
zer, a Jurema tem tudo aquilo que precisamos. É uma árvore
por excelência. (MCR 17/11/2019).
Nesses dizeres podemos vislumbrar um protocolo de relação
com a Jurema, que possibilita exercer certo controle sobre a
substância e seu consumo garantindo a segurança dessa práti-
ca, ao mesmo tempo em que transmite valores que asseguram
a perpetuação desse controle. A ritualística e a continuidade,
assim como o saber porque vai preparar, ou seja, as razões e os
sentidos dessa relação com a substância, constituem mecanis-
mos de controle social situados na Ciência da Jurema.
Nessa perspectiva, respeitando o passo a passo, cada discípu-
lo da Jurema poderia se tornar um Mestre de Ciência e como
a caminhada é concomitantemente coletiva e individual, cada
Mestre irá desenvolver sua Ciência dentro da Ciência da Jure-
ma. “As ciências da Jurema Sagrada se forjam na complexa trama
de conhecimentos que fundamentam a prática e na dimensão dos enigmas e segredos concernentes ao culto” (Rufino, 2016).
No âmbito da Casa de Jurema de Mestre Carlos são consagradas
quatro linhas de Mestres, sendo elas: Caboclos e Caboclas, Ciga-
nos e Ciganas, Mestres de Jurema – antepassados do Culto – e
Pretos e Pretas velhas. A linhagem dos Mestres Beberrões é con-
sagrada dentro dessa linha de antepassados que já foram gran-
des Mestres encarnados e se encantaram no reino da Jurema.
Uma característica que chama atenção nessa composição é o
conjunto de tipos sociais subalternizados, todos fazem parte de
minorias étnicas, sobre os quais recai uma série de estigmas so-ciais, oriundos dos processos de “racialização” e “generificação”
que demarcam a colonialidade do poder na chamada moderni-dade. O que pode suscitar reflexões acerca da identificação de praticantes e frequentadores com essas figuras e tudo o que elas significam. Um desses estigmas é o do “bêbado”, usado para mar-
car a pessoa que faz uso abusivo de bebida alcoólica, mas prin-
Janaina Alexandra Capistrano da Costa
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cipalmente se essa pessoa pertencer a uma classe social mais
baixa e/ou pertencer a alguma minoria étnica, pois quando se
trata de uma pessoa em alta posição social, política e econômica,
são usadas outras designações como alegre, alterado, festivo e
até alcoólatra, mas raramente bêbado.
Os Mestres Beberrões e o uso controlado de bebidas
alcoólicas
Como mencionei, o contexto ritualístico em questão é um con-
texto de consumo de substâncias psicoativas com efeitos de
naturezas e potências diversas, isso não quer dizer, porém, que
esse consumo se dá de maneira “aleatória” ou com prejuízos à
saúde de seus participantes. Os mecanismos de controle perpas-
sam todo o campo e, no que se refere às bebidas alcoólicas, a
atuação do Mestres Beberrões contribui com a transmissão de
valores que orientam o uso mais adequado. Ao dominar esse uso
e a manipulação da “energia” contida nessa substância, esses
Mestres se consagram em sua Ciência e se tornam espíritos de
grande importância para a cura das pessoas. Quer dizer, trans-
gredem a regra do estigma, mostrando que o “bêbado” é alguém
importante, dotado de capacidades positivas e assim ele adquire
dignidade dentro do complexo ritual e esse é o primeiro espelho
no qual pode se ver qualquer participante que eventualmente
tenha problemas com o consumo de álcool. Uma das cantigas
que ajudam a estruturar o ritual e que remete a essa espécie de
contradição complementar do Mestre diz o seguinte:
Sibamba
Meu Mestre me chamou
Eu venho trabalhar
Seu Sibamba é beberrão
Mas sabe trabalhar
Com seu garrafão de cana
Tomba aqui
Tomba acolá
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Se um bêbado pode ser bom trabalhador, a bebida alcoólica não
necessariamente precisa ser alcoólica, nem ingerida para ser
consumida, o que parece ser contraditório para a lógica raciona-
lista, mas faz todo o sentido dentro da lógica nativa. Nesse senti-
do, um aspecto importante é o da presença multiversal da bebida
alcoólica, isso quer dizer que tal presença não se encontra deli-
mitada a uma substância ou até mesmo à substância alcoólica em
si, como a concebemos no sentido laico e mundano. Em primeiro
lugar, apesar de atualmente prevalecer o uso do vinho tinto de
uva nos rituais, muitas outras bebidas podem ser utilizadas. Em
segundo lugar, conforme Melquisedec, o consumo de água com
ervas ou ainda o consumo que poderíamos traduzir como “sim-
bólico”, embora perdendo com isso boa parte do sentido atribuído pela expressão “fluído da bebida”, também representam o uso de
bebida alcoólica pelo Mestre incorporado no médium.
A bebida na Jurema, que ela deve ser assim, com muita par-
cimônia para que não haja essa permissão do álcool afetar o
mental. O álcool ele passa a ser apenas um indutor quando
ele é completado ou somado com essas ervas. Então ele passa ser uma bebida específica. Mas, também, usamos muito vi-
nho. A outra bebida que se usava também era a Genebra, era
o vinho de jurubeba. Quando não se conhecia o vinho de uva,
era vinho de jurubeba, vinho de caju... e hoje não, hoje tem
uma série de vinhos aí que a gente também usa. [...] Mas essa
fórmula que eu procuro ver muito claramente é a questão dos
cuidados que precisamos ter quando usamos o álcool dentro
dos ritos. [...] Nós temos a questão que não é só a bebida em
si que é usada no rito da Jurema. Eu conheci Mestres que eles
trabalhavam com água e raiz de Jurema numa quartinha. Era
a bebida que ele usava na mesa dele. Hum? Às vezes tinha
uma raiz de Jurema, tinha raiz de umburana. Ele botava ali, às
vezes uma outra erva, eles colocavam ali, então aquela água
era a bebida. Ele não usava bebida alcoólica. Porque vai de-
pender de cada forma de trabalhar. [...] A gente sempre orien-
ta que essas pessoas que trabalham com Mestre mais, assim,
que gostam mais das bebidas, antes do trabalho colocar a bebida dele lá, firmar, fazer sua firmeza com a cachaça, ou o
vinho, a Genebra. Que ele já bebe lá. Que ele vai beber o quê?
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É aquele fluído da bebida. É tanto que, quando chega, parece
até água. Sai todo aquele futum. (MCR 17/11/2019).
Essa relatividade do álcool parece transitar com desenvoltura
no que se refere a possíveis fronteiras com outra substância, a
Jurema, não somente porque essa pode conter álcool na sua for-
mulação. Nesse caso, podemos notar que os objetivos de uso es-
tão claros e associados, enquanto uma facilita as incorporações,
a outra fortalece o médium, conforme explica meu informante
sobre tais substâncias:
Nós procuramos fazer uma dosagem leve apenas para a fi-
nalidade, que é abrir esses canais, esses chacras, para que
possa perceber melhor essa energia desses espíritos, facili-
tar as incorporações. Porque a gente precisa compreender
que a bebida, quando ela contém o álcool, que na Jurema
tem que ser com muita parcimônia esse uso para que ele
não possa causar, digamos, a embriaguez, mas apenas forta-lecer o médium para que não haja o desgaste físico. Por isso
que ela tem que ser em pequenas doses. Só pra manter essa
energia em equilíbrio (MCR 17/11/2019).
Cauim, por exemplo, é a bebida alcoólica fermentada tradicional
dos índios Tupi e no Culto da Jurema esse nome pode se referir
tanto à bebida da Jurema quanto à bebida alcoólica pura, inclu-
sive se essa não for o fermentado de mandioca (Cascudo, 1951). O que certamente dificulta as tentativas de se estabelecer fron-
teiras rígidas entre substâncias sagradas e profanas, na verdade
todas elas fazem parte do complexo de cura da Jurema de Chão
em questão. Quando questionado sobre os sinônimos de Jure-ma tradicionalmente usados, meu informante afirmou serem:
Cauim, Jarambada e Vinho de Jurema.
Outro aspecto que demonstra uma aproximação da Jurema com
o contexto de festa típico do consumo social das bebidas alcoó-
licas é revelado pelo depoimento de Melquisedec acerca da prá-
tica dos folguedos:
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Na Jurema antiga tinha a noite de folguedo, esse folguedo
que era equivalente a estas festas que se faz hoje, muito
enfeite, muita bebida, muita comida, é tanto que nessa
época eles se juntavam, aqueles juremeiros conhecidos ou
numa comunidade que tinha aquele juremeiro que cuidava
das pessoas, então na noite de folguedo [...] eles abriam
a mesa, aí os Mestres vinham só para dizer prosa, dizer
loa, beber e fumar, e era dia de diversão para o povo. (MCR
17/11/2019).
Já durante os rituais comumente praticados na Casa, é como se
a embriaguez do Mestre embriagasse aos presentes, com seus
andares cambaleantes os Mestres Beberrões chegam no terrei-
ro cantando seus linhos e pedindo algo para beber. Assim que
bebem começam a conversar e dizer “loas”, que são brincadei-
ras com situações sérias da vida, e é através dessas loas que
transmitem ensinamentos sobre a superação de problemas e
a melhor conduta a ser seguida. Os presentes riem e muitas
vezes entram no jogo do Mestre saudando-o ou respondendo
suas provocações. Esses Mestres demonstram que a despei-
to de serem beberrões, trabalham na caridade espiritual, por
meio de passes magnéticos, cachimbadas e, assim, transmutam
os estados de ânimo na medida em que instauram um clima
festivo.
Um Mestre bastante presente nos rituais da Casa de Jurema
Mestre Carlos é o chamado Zé Bebinho, cuja cantiga diz:
Zé Bebinho
Bebia com meu dinheiro
Hoje bebo se me dão
Eu sou um bebo bebinho
Eu sou um bebo bebão
A cachaça está no copo
O copo tá no balcão
Cachaça e muier bonita
Foi a minha perdição.
Janaina Alexandra Capistrano da Costa
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Essa cantiga parece informar que o uso desregrado da cachaça
e a promiscuidade causam prejuízos a quem os pratica e isso
sugere a importância do controle do consumo da substância. Na
seguinte fala de meu informante ele explica o modus operandi
dessa linhagem de Mestres e comenta a referida cantiga:
Ele vai lá, ele vem cá, mas ele tá trabalhando ali, ele tá
trabalhando. Ele tá, simplesmente, fazendo a limpeza das
pessoas naquela forma de trabalhar. [...] Vai dizer assim:
“não, é um bêbado”. A gente não sabe o que é que existe por
trás daquele bêbado. Porque nós vemos que tem aquele
Mestre que é orientador, é sério, mas já vem aquele que é bem expansivo. Qual é o que as pessoas vão se identificar
mais? É aquele que chega assim e as pessoas começam a
prestar atenção e ali já vão liberando aquelas energias to-
das. [...] O Zé Bebinho é outro beberrão. Quando ele diz,
olha só: “Bebia com meu dinheiro, hoje bebo se me dão”,
porque ele, como espírito, não pode comprar. Antes ele
bebia, ele podia pagar, ele comprava a bebida dele. Mas,
hoje, quer dizer, só tem um “se me dão”. Então as pessoas
é que dão de beber a ele, tá entendendo? Mas você vê que
por trás disso tudo existe um Grande Mestre no trabalho,
porque quando ele vem e tal, aquela coisa, mas quando ele vai trabalhar, ele se firma como um Mestre Trabalhador.
(MCR 11/2019).
Conclusão
Finalmente, podemos chegar ao entendimento de que a despei-
to dos investimentos simbólicos se concentrarem em torno da
Jurema, não há no contexto pesquisado grandes tabus sobre a
interação dessa bebida com outras substâncias que fazem parte
do seu campo de atuação. A consagração da Jurema não estabe-
lece fronteiras rígidas, ela representa acima de tudo a comunhão
com um mundo e como partes desse mundo as demais substân-
cias se situam numa certa horizontalidade em relação a ela. No interior dessa cosmologia os controles e limites definidos para
o consumo do álcool se valem de imagens mundanas e sagradas,
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visando uma melhor integração com esse todo e, consequente-
mente, a cura e o equilíbrio dos participantes.
No âmbito da Jurema de Chão do lócus pesquisado, as substân-
cias psicoativas consumidas durante os rituais são a Jurema, em momentos específicos e somente para os já consagrados, o taba-
co por meio dos cachimbos e as bebidas alcoólicas durante a ma-
nifestação dos Mestres. Sobre cada uma dessas substâncias recai
uma modalidade de controle realizada pelo Estado no contexto
do proibicionismo. A DMT ainda hoje é uma molécula proibida
pela Convenção Única das Nações Unidas de 1971, o tabaco é
regulamentado e seu consumo é coibido por meio de políticas de propaganda que alertam para os seus malefícios e, por fim, o
álcool que também é regulamentado, porém não coibido, embo-
ra haja proibição de venda para menores de 18 anos. Trata-se de
um controle formal que molda de maneira geral as relações com
as citadas substâncias, mas o controle social desenvolvido no
grupo pesquisado escapa a essa lógica racionalizante estabele-
cendo seus próprios parâmetros dentro de uma dialógica entre
o “pensamento empírico/técnico e racional” e o “pensamento
mito/mágico e simbólico” constituindo, assim, um pensamento
de unidade na diferença (Morin, 2012). Finalmente, é possível afirmar que ao tecer relações simbólicas
com os psicoativos, o grupo religioso em tela vai revelando mu-
danças e permanências concernentes à tradição que representa
e reproduzindo mecanismos de controle interno, os quais garan-
tem sua autonomia face aos controles externos sem, entretanto,
necessariamente negá-los. Sendo assim, esse culto pode ser con-
siderado um espaço de fronteira na “matriz colonial de poder”
(Mignolo, 2010, 2008).
Janaina Alexandra Capistrano da Costa
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TOMO. N. 39 JUL./DEZ. | 2021
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Aprovado em 31/05/2021