TOMO. N. 39 JUL./DEZ. | 2021

“Um Bicho de Sete Cabeças”:
HIV-Aids e Homens Jovens

que Fazem Sexo com Homens em
Campo Grande (MS)*1

Tiago Duque**2

Resumo
Este artigo tem como objetivo analisar, qualitativamente, as diferentes
experiências de homens jovens que fazem sexo com homens em rela-
ção ao hiv-aids na cidade de Campo Grande (MS). Para isso, realizou-se
dez entrevistas com moradores da cidade que se autodeclararam jo-
vens entre 19 e 25 anos. Os convites para participar da pesquisa foram feitos a partir de espaços online e offline de sociabilidade. A perspecti-
va teórica para as análises dos dados levantados é a da Sociologia das
Diferenças. Os resultados permitem problematizações identitárias a
partir da construção do corpo, das vulnerabilidades, da avaliação que
eles fazem em relação ao hiv-aids e as atuais estratégias de prevenção por meio da medicalização. Além disso, reflete-se sobre o persistente
estigma em relação à homossexualidade e ao hiv-aids.
Palavras-chave: Jovens. HIV. Aids. Prevenção. HSH.

* O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) – Código de Financiamento 001.** Doutor em Ciências Sociais pela UNICAMP. Professor no Programa de Pós-Graduação em Educação do Campus Pantanal e da Faculdade de Ciências Humanas da UFMS. E-mail:
tiago.duque@ufms.br.

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“UM BICHO DE SETE CABEÇAS”

TOMO. N. 38 JAN./JUN. | 2021

“Un Animal de Siete Cabezas”:
VIH-Sida y Hombres Jóvenes que Tienen Sexo con

Hombres en Campo Grande (MS)

Resumen
Este artículo tiene como objetivo analizar cualitativamente las diferen-
tes experiencias de hombres jóvenes que tienen sexo con hombres en
relación al vih-sida en la ciudad de Campo Grande (MS). Para ello, se
realizaron diez entrevistas a habitantes de la ciudad que declararon ser
hombres jóvenes de entre 19 y 25 años. Las invitaciones para participar
en la investigación se hicieron desde espacios de sociabilidad online y offline. La perspectiva teórica para el análisis de los datos recopilados es
la de la Sociología de las Diferencias. Los resultados permiten problema-
tizaciones de identidad desde la construcción del cuerpo, las vulnerabi-
lidade s, la valoración que hacen en relación al vih-sida y las estrategias actuales de prevención a través de la medicalización. Además, se refleja
el persistente estigma hacia la homosexualidad y el vih-sida.
Palabras clave: Jóvenes. VIH. Sida. Prevención. HSH.

“An Animal With Seven Heads”:
HIV-Aids and Young Men Who Have Sex With Men

in Campo Grande (MS)

Abstract
This article aims to qualitatively analyze the different experiences of
young men who have sex with men in relation to hiv-aids in the city of Campo Grande (MS). For this purpose, ten interviews were conducted
with city dwellers who declared themselves as young men between 19
and 25 years old. The invitations to participate in the research were made from online and offline spaces of sociability. The theoretical perspective
for the analyses of the data collected is the Sociology of Differences. The
results allow identity problematizations based on the construction of the
body, vulnerabilities, the assessment they make in relation to hiv-aids and

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current prevention strategies through medicalization. Furthermore, it re-flects on the persistent stigma regarding homosexuality and hiv-aids.
Keywords: Young. HIV. Aids. Prevention. MSM.
IntroduçãoDesde o início dos anos 1990, do slogan “A Aids vai te pegar1” até o mais atual “Fique Sabendo2”, passando pelo “Use sempre cami-
sinha3”, muitas coisas mudaram, tanto em relação ao tratamento
e ao estigma como à prevenção ao hiv/aids4 no Brasil e no mun-
do. No entanto, a questão das vulnerabilidades à infecção/trans-
missão é central na discussão a respeito da epidemia de hiv-aids
nas últimas décadas, especialmente entre homens que fazem
sexo com homens. Considerando isso, o objetivo deste texto é
analisar, qualitativamente, as diferentes experiências de homens

1 Em 1993, o Ministério da Saúde lançou uma campanha de prevenção às DSTs/aids que, em seu vídeo para TV, dizia: “Eu tenho aids, eu não tenho cura. Nos próximos dias,
nos próximos meses, no próximo ano, milhares de pessoas vão pegar aids e vão morrer. Se você não se cuidar, a aids irá te pegar”. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=lc_sbLoqgRE. Acesso em: 30 jan. 2021.2 No início dos anos 2000, o Ministério da Saúde lançou a campanha “Fique Sabendo”. Segundo informações do site do próprio Ministério, “O Fique Sabendo é uma mobiliza-
ção de incentivo ao teste de aids e tem como objetivo conscientizar a população sobre a importância da realização do exame. Artistas e formadores de opinião já estão se envol-
vendo para incentivar a população a fazer o teste e diminuir cada vez mais o preconceito em relação ao HIV/aids. Fazer o teste de aids é uma atitude que mostra como você se preocupa com a sua saúde”. Disponível em: http://www.aids.gov.br/pt-br/campanha/campanha-fique-sabendo-2003. Acesso em: 30 jan. 2021.3 Em 2005, o Ministério da Saúde lançou a marca (selo) “Vista-se”, associado ao slo-gan “Vista-se! Use sempre camisinha”, que assinou todas as peças de promoção do uso do preservativo produzidas pelo Governo Federal e incentivou o seu uso também por
ONGs, empresas da iniciativa privada e outras instituições governamentais. Segundo in-formações do próprio Ministério, o uso da marca justifica-se por: aumento da lembrança
espontânea da mensagem; devido à força do símbolo como elemento de comunicação e à sua capacidade de mobilização. Disponível em: http://www.aids.gov.br/pt-br/campa-nha/campanha-de-carnaval-vista-se-2005. Acesso em: 30 jan. 2021.4 Não há uma uniformidade nas grafias de “hiv” e “aids”. Tentando contrapor qualquer
pânico moral em torno da doença, quando eu escrever usarei letras minúsculas. Nos
casos de citações diretas, farei o uso conforme a referência utilizou.

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“UM BICHO DE SETE CABEÇAS”

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jovens que fazem sexo com homens em relação ao hiv-aids na
cidade de Campo Grande, estado de Mato Grosso do Sul (MS).
Considerando essa realidade, o enfoque teórico-metodológico
é o da Sociologia da Diferença. Ela, somada a uma perspectiva
queer e pós-colonial, tem se dedicado a problematizar as novas
identidades, parte do movimento social, algumas iniciativas do
poder público e a própria forma acadêmica de abordar questões
do gênero e da sexualidade na contemporaneidade (Miskolci e Pelúcio, 2006).Sabe-se que a noção de juventude é elaborada
cultural e historicamente. Há, pelo seu caráter político, frequen-temente, uma disputa de classificações. Mesmo levando em con-
ta os organismos internacionais ou legislação nacional no que se refere à definição de quem é e quem não é jovem, este estudo também ficou atento às próprias noções dos seus interlocuto-res de pesquisa, isto é, não se desprezou as balizas etárias fixa-das por organismos oficiais e legislações nacionais, pois são essas
as referências acionadas no que tange à formulação e aplicação de
políticas públicas. Elas servem, ainda, como indicadores sociais que
têm a capacidade de orientar a sociedade em geral quanto a esses
descritores geracionais. Contudo, interessa aqui pensar os homens jovens deste estudo a partir de suas próprias definições de “ser jo-
vem”. Sendo assim, consciente dessas tensões e disputas, entre 2017 e 2019 foram entrevistados dez homens que se autodecla-
raram jovens entre 19 e 25 anos, todos com experiências afetivo-
-sexuais com outros homens, moradores de Campo Grande.

O convite para que os jovens participassem da pesquisa foi feito em ambientes online e offline, de forma individualizada e priva-
tiva. No ambiente online, foram acessados em grupos temáticos de encontros afetivo-sexuais entre homens no WhatsApp e no Facebook. As abordagens em ambientes offline foram feitas em
atividades do Movimento LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Tra-
vestis e Transexuais), em festas temáticas em uma Sauna Gay e em projetos de extensão desenvolvidos pela Universidade Federal de
Mato Grosso do Sul, com temática em questões de gênero e sexu-alidade. A partir da minha interação nesses espaços, identifiquei

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diferentes perfis de jovens que fazem sexo com homens, sendo
feito o convite a muitos deles. Todos que aceitaram participar as-
sinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido5. As en-trevistas foram realizadas em diferentes locais: na moradia dos
participantes, em praças de alimentação de shoppings, na univer-
sidade e em um café, conforme a decisão de cada entrevistado. As entrevistas foram gravadas e, posteriormente, transcritas6. Os nomes dos interlocutores usados aqui são fictícios. A partir delas,
os interlocutores se dispuseram a se colocar na condição de ter de dar conta de si mesmos nos termos que reflete Butler (2009, p. 55): “quando dou conta de mim mesmo em um discurso, as pa-
lavras nunca expressam ou contêm plenamente este eu vivente”.
Para a autora, as palavras desaparecem logo que são pronuncia-
das, elas são interrompidas pelo tempo de um discurso que não é o mesmo que o tempo da vida de quem os diz. “Essa ‘interrupção’
recusa a ideia de que o dito se funda somente em mim, dado que
as estruturas indiferentes que permitem o meu viver pertencem a uma sociedade que me excede” (Butler, 2009, p. 55). Dito de ou-tro modo, “quando o ‘eu’ procura dar conta de si mesmo, pode começar consigo, mas comprovará que esse ‘si mesmo’ já está im-
plicado em uma temporalidade social que excede suas próprias capacidades narrativas” (Butler, 2009, p. 19). Assim, com as en-
trevistas, os interlocutores procuraram dar conta de si mesmos,
mas, inevitavelmente, não deixaram de incluir as condições de
sua emergência (identitária-experimentacional-histórica).O fato
de este estudo ser realizado na capital de Mato Grosso do Sul traz elementos particulares a essas experiências, afinal, apesar de ser tida como uma “cidade grande”, segundo parte dos pró-prios interlocutores, ela “parece de interior”. A cidade se locali-za no bioma do cerrado brasileiro e em 2020 teve sua população
5 O projeto que deu origem a este estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul.6 Agradeço a transcrição das entrevistas realizadas por acadêmicos/as do bacharela-do em Ciências Sociais da UFMS, meus orientandos de iniciação científica: Anna Beatriz Passos da Silva Carlos, Aylyme Reynaud D’Avila, Eloise Nogueira da Silva e Johnny Daniel
Matias Nogueira.

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estimada pelo IBGE em 786.797 pessoas7. Em meio a um estado
fortemente voltado ao agronegócio, está localizada em uma rede
viária longe dos grandes centros; não se caracteriza como uma metrópole, mas exerce influência no próprio estado e nos estados
próximos. Em termos de epidemia de hiv-aids, é a 11ª capital do país no ranking de detecção e mortalidade (Brasil, 2020). Entre os municípios com mais de 100 mil habitantes, ocupa a 37ª posi-ção no ranking nacional (Brasil, 2020). Na primeira seção deste
artigo, apresento os participantes de forma a destacar suas mul-
tiplicidades identitárias. Essa apresentação dos interlocutores a
partir do que os diferencia é um importante contraponto a usos da categoria HSH, isto é, “Homens que fazem Sexo com Homens”8, de forma generalizante e “politicamente neutra” (Gosine, 2008). Posteriormente, reflito a respeito da construção do corpo e alguns
aspectos das vulnerabilidades desses jovens, considerando infor-
mações que trazem dados bastante particulares de cada um deles.
Essa discussão envolvendo vulnerabilidade e corpo se dará a par-
tir da compreensão de que o corpo é sujeito de dinâmicas sociais,
lócus de articulação de relações e legitimador de princípios sobre a sociedade (Monteiro, 2012). Por fim, discuto a historicidade do
estigma em relação ao hiv-aids e à homossexualidade, indicando
o quanto processos de controle e normalização têm tido efeito nas
experiências deles diante da doença.

Das identificações-diferenciações

Os interlocutores deste estudo são compreendidos a partir das suas multiplicidades identitárias. Isso, porque “as identificações nunca se concretizam plena e finalmente [...]. Constantemente se
7 Disponível em: https://cidades.ibge.gov.br/brasil/ms/campo-grande/panorama. Acesso em: 30 jan. 2021.8 HSH é tido, comumente, como qualquer homem que faz sexo com homens, mesmo aqueles que não se identificam como homossexuais ou gays. O termo inclusive refere-se também a indivíduos que não são classificados como adultos, podendo ser usado para identificar menores de 18 anos (UNAIDS, 2008).

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as reordena, se as consolida, se as cerceia, se as combate e, em certas ocasiões, se as obriga a ceder” (Butler, 2008, p. 159). Po-demos afirmar isso em relação a diferentes marcadores sociais,
não apenas em relação à sexualidade, mas também à raça/cor,
classe, religião, gênero e idade. A seguir, os dez interlocutores são apresentados a partir dessas diferenciações identitárias. A ideia não é esgotar a exposição so-
bre suas marcas de diferenciação, mas indicar o quanto homens
jovens que fazem sexo com homens podem ser tão diferentes
entre si a ponto de qualquer encapsulação identitária, essen-
cialismos ou generalizações poderem ser perigosos quando se quer pensar em saúde e doença. Dito de outro modo, refiro-me
a marcadores no sentido de convidar quem lê a ter um olhar de-talhado, contextualizado e circunscrito ao “pensar as dimensões da vida social que são generificadas, racializadas, sexualizadas, classificadas, enfim, nomeadas de modo a afetar a vida das pes-
soas de distintas maneiras; tornam-se, assim, marcadores so-ciais da diferença” (Hirano, 2019, p. 51).Alaska, de 23 anos, afirmou que “a crise da metade dos 20 está che-gando”, indicando o quanto a identificação como jovem não está li-
vre de tensionamentos. No seu caso, como em todos os outros deste
estudo, a categoria gay é apenas uma das quais faz uso – inclusive nem é a que mais se identifica. Ele também se declara “queer” e “geek”, explicando que a primeira significa “estranha, esquisita” e a segunda “nerdão”. É asiático, segundo ele, “apesar de não pare-cer tanto”. No “meio gay”, entende-se como pansexual, isto é, “sente atração pelo desejo ao invés da figura da pessoa”. Em suas palavras: “simplificando, eu não tô nem aí pra sua aparência”. Em termos de
gênero, avalia-se como afeminado. Não trabalha por estudar em
uma universidade pública em período integral e não pratica nenhu-
ma religião. Disse ser de classe média. Mora com os pais.

Ângelo, de 21 anos, é branco de olhos claros e já foi questiona-do sobre “seus privilégios” em ser branco em uma cidade de

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“bugrinhos”9. Ele disse não se sentir privilegiado pela cor branca
e por não ser afeminado; não se percebe sendo mais desejado por ter os fenótipos da branquidade e ser “mais masculino”. Ele
é o único interlocutor que informou ser soropositivo. Ele contou
que foi por meio de um canal do YouTube que mudou a sua iden-tificação de “urso” para “lontra”, afinal, apesar de ser peludo, não
é gordo. Em termos de idade, disse que são várias coisas que o fazem se sentir jovem em certos aspectos, mas afirmou também se sentir “um idoso de 50 anos às vezes”. Ele concluiu o Ensino
Médio e não estuda mais. Trabalha no ramo administrativo em
uma instituição privada. Não possui nenhuma religião, mas fre-
quentou muitas, cristãs e não cristãs.Carlos, de 25 anos, diz ser “muito jovem”. Justifica dizendo que “gosta muito de sair”. É branco e universitário. Trabalha como
assistente administrativo na área hoteleira. Cresceu na religião
católica, frequentou igreja evangélica, mas não frequenta mais. Acredita em Deus, mas não tem uma religião específica. Disse ter sofrido com a sua homossexualidade: “O meu maior pedido para
Deus era para que Deus tirasse esses desejos de dentro de mim,
para me tornar uma pessoa que agradasse a Deus”. Mora com
uma amiga; a família é do interior do estado. Diferente da maio-
ria dos participantes, a sua família não sabe sobre sua orienta-
ção sexual.Dênis, de 22 anos, identifica-se como “mestiço”, por ter na fa-
mília negros, japoneses e brancos. Por isso, disse-me que a sua identificação étnico-racial depende muito de onde ele está. Isso,
porque dependendo do lugar as pessoas perguntam se ele tem
descendência indígena, mas também perguntam se ele tem des-

9 No contexto local, “bugre” é uma expressão pejorativa relacionada, principalmente, a indígenas, isto é, a pessoas não brancas. Os usos e a origem desse adjetivo desqualifica-dor foram discutidos por Guisard (1999). Em seus estudos, “há uma menção ao termo bugre no diminutivo – bugrinha, bugrinho –, sendo o ‘inho(a)’ considerado carinhoso,
acolhedor, caridoso, reconhecimento da situação de inferioridade em que se encontra o seu portador, necessitando de amparo e proteção” (Guisard, 1999, p. 97).

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cendência japonesa. Em termos de gênero, ele se vê como “mui-to afeminado” e se define como “homem cis10 homossexual”. Per-
tence à classe média, trabalha como garçom e estuda em uma
universidade pública. Perguntado sobre a religião, ele respon-
deu que se considera sincretista, mas não se apega a nenhuma em específico. Ele foi o único que se recusou a me apresentar um nome fictício para ser usado neste estudo, dizendo que essa prá-
tica de nomear já foi feita pela sua mãe. Sendo assim, diferente
dos demais, depois da autorização de Dênis, esse é o único nome fictício que eu atribuí, sendo todos os outros nomes fictícios da-
dos pelos próprios entrevistados quando solicitado. João, de 26 anos, considera-se preto. Tem formação evangéli-
ca, mas não frequenta nenhuma igreja atualmente. Ele trabalha
como auxiliar em uma loja. Em termos de classe social, ri ao res-ponder com uma pergunta: “A classe social mais baixa é a D, né?”. Mas retoma a resposta para dizer que é de “classe intermediá-ria”. Mora com a mãe. Percebe-se jovem por saber “que ainda
tem muita coisa que passar na vida”. Diferente do que disse a maior parte dos entrevistados, ele afirma nunca ter tido expe-
riência afetivo-sexual com mulheres. Segundo ele, o fato de ser
negro não tem implicação na sua prática-afetiva sexual e não in-
terfere em sua identidade enquanto gay; ele tampouco percebe
que isso possa interferir na relação que tem com outros homens.Juliano, de 23 anos, considera-se gay “por ser a realidade da vida”. Em termos de cor, assume-se rindo: “moreno, bonitão”. Reconhe-ce que é de família de negros, mas se declara “moreno”. Estudou
até o primeiro ano do Ensino Médio e pertence à classe baixa. Explica: “Luxo a gente pode ter em qualquer canto, não importa
o que você tem, ou seja, pode ser o mínimo, muito simples, mas

10 “Cis” refere-se a “cisgênero”, isto é, às pessoas não transexuais/transgêneros/traves-
tis. Considerando a abordagem dos marcadores sociais da diferença neste texto, con-cordo com a reflexão de Favero (2020). A autora indica o quando a “cisgeneridade” não
pode ser lida analiticamente como ilesa diante de diferentes marcadores sociais, o que permite problematizar a ideia de “privilégio cis” diante das próprias experiências trans.

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você toma aquilo ali como se fosse um luxo, entendeu?”. Do pon-
to de vista religioso, ele é umbandista. Trabalha como atendente. Ele tem dois filhos, pois, em suas palavras, “quando tentava fugir da realidade” aprontava: “Todo dia era uma mulher diferente”.
Junior, de 25 anos, acha que não tem uma mentalidade de pes-
soa jovem, pois associa juventude à irresponsabilidade. Mas sabe que não é “velho”; tem o que chama de “infantilidade”. Ele se identifica como “homoafetivo”. Justifica dizendo: “Porque eu
não faço sexo apenas pelo sexo em si... há sentimento... a partir
do momento que há sentimento... tem afeto, e se tem afeto é afe-
tivo”. Também é umbandista. Trabalha como pedreiro e critica as pessoas que querem trabalhar com “coisa fácil”, não com “coisa difícil”. Mas, às vezes, trabalha com colorações de cabelo; tem algumas clientes. Ele se identifica como “pardo”, por ser “uma
mistura de raças”. Concluiu o Ensino Médio e iniciou um curso superior, mas não o finalizou. Ele não tem estabilidade econô-
mica com o trabalho, então, diz pertencer à classe baixa. O ex-
-namorado mora com ele.

Lucas, de 24 anos, é branco. Estudou até o primeiro ano do En-
sino Médio. Mora com a família. Como todos os participantes, afirma saber que é homossexual desde a infância, pelo desejo
afetivo-sexual em relação aos homens. É católico praticante e,
por ser gay, já teve dúvidas se deveria ou não manter seus com-promissos na comunidade religiosa que frequenta. Assume que
a religião não o ajuda muito, mas, referindo-se a drogas e bebi-das, diz que “a gente precisa procurar um caminho para não ir a
lugar errado”. Trabalha em um supermercado como atendente;
diz ser de classe média.

Marcos, de 24 anos, veio de São Paulo para trabalhar e estudar.
Outros poucos interlocutores também não nasceram na cidade,
mas moram em Campo Grande há alguns anos. Ele faz um cur-
so de pós-graduação em uma instituição pública. Considera-se
de classe média baixa, com formação religiosa no cristianismo,

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mas atualmente não tem religião. É apontado como sendo urso, mas afirma que essas identificações do “mundo gay” são como um “cubo mágico”. Segundo ele, “você vira um lado e a pecinha
que estava se acertando muda completamente e você não é mais nada daquilo”. Ele vê a sua identificação como uma “caixinha”, mas alerta: “Mesmo que eu uso o termo caixinha, é contra a mi-
nha própria vontade, porque não gosto de me colocar dentro de
nada, apesar de saber que estou sendo visto de alguma maneira muito específica por quem está de fora”. Sobre a idade, afirma: “sou jovem, mas sou gordo”. O “mas” representa o quanto o cor-po gordo, comparado a um corpo “sarado”, conforme o que ele
mesmo disse, o faz esteticamente menos jovem, por fugir a uma “caixinha” que é a do jovem que “malha”.Paulo, de 19 anos, define-se como gay, “para não falar aque-
la palavra enorme que é homossexual”. Estuda na modalidade Educação de Jovens e Adultos (EJA), por ter deixado a escola
anteriormente, devido à depressão após a morte da mãe e por ter “servido” o exército depois. Atualmente está desempregado, procurando “serviço”. É espírita kardecista. Em termos de gêne-ro, afirma: “Me declaro afeminado, mas eu não sou afeminado no estilo de roupa, né?”. Ele explica: “Os afeminados se vestem mais
como uma mulher. Eu já me visto mais como hominho, então...
mas assim, eu me visto como hominho, mas eu sou muito para frente”. Demonstrou ter muitas dificuldades em ser aceito pela avó, com quem mora. Disse-me: “Em casa tem hora que eu me
pego chorando de raiva porque eu nasci desse jeito. Eu choro de
raiva porque minha vó não quer que eu seja assim”.A partir dessa apresentação dos dez interlocutores, consideran-
do suas multiplicidades identitárias, destaco a necessidade de
entendê-los como HSH a partir de suas diferenças, não de for-
ma a igualá-los simplesmente como possuindo uma experiên-cia afetivo-sexual comum. Gosine (2008) nos conta a história da
categoria HSH antes da então utilização desse termo, no come-ço dos anos 2000, pelo aparato institucional de pesquisas, es-

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tratégias, políticas, documentos, financiamentos, programas e
outras ações de governos ou da sociedade civil internacional na “prevenção às DSTs11/aids”. Vários anos antes, ativistas e profis-
sionais da saúde criaram o termo como alternativa para as cate-gorias ocidentais “Gays” ou “Bissexuais”. “Na época, isso foi um
gesto radical, uma recusa decisiva das narrativas dominantes so-
bre orientação e comportamento sexuais transmitidas por orga-nizações lideradas por homens brancos, que se identificam como gays” (Gosine, 2008, p. 71). Nesse contexto, seu uso foi na busca
por mostrar que existiam outras maneiras em que a sexualidade
estava organizada e outros meios de expressar a identidade se-
xual que não aquele imposto pelos gays e bissexuais dominantes da cultura metropolitana euro-americana. As organizações onde
esses HSHs negros, latinos e asiáticos estavam inseridos tinham
uma agenda política para além da doença e aliavam-se a outros
grupos para contestar as formas de exclusão baseadas na raça, gênero, classe e sexualidade (Gosine, 2008).Assim, os participantes desta pesquisa podem ser identificados
epidemiologicamente como HSHs. Contudo, a proposta é chamar
atenção para a multiplicidade identitária das produções dessas
experiências diante do hiv-aids; como dito, mais do que agrupá--los como uma possível prática afetivo-sexual comum. Além dis-
so, essa lembrança histórica aqui apresentada ajuda a olhar para a aids para além dela mesma, afinal, “a doença é um processo ‘experiencial’”, isto é, “suas manifestações dependem de fatores
culturais, sociais e psicológicos, operando conjuntamente com
processos psicobiológicos” (Langdon, 1994, p. 115).

Não se trata de atribuir aos participantes aqui apresentados o
papel político daqueles que historicamente propuseram o termo
HSH, mas destacar que continua sendo fundamental pensar as

11 DST é o mesmo que Doença Sexualmente Transmissível. Atualmente essa sigla tem sido substituída por IST, isto é, Infecção Sexualmente Transmissível. A mudança se deu em razão
de uma pessoa poder transmitir uma infecção sem necessariamente ter sinais e sintomas.

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diferenças para além da doença, especialmente em um contex-
to que segue desigual em termos de tantos marcadores sociais.
Quando cito essas marcas da diferença, não estou me referindo à “diversidade”. Segundo Miskolci, “a diversidade serve a uma
concepção horizontal de relações sociais que têm como objetivo evitar a divergência e, sobretudo, o conflito” (2016, p. 52). Por sua vez, esse autor indica que “lidar com as diferenças impõe en-carar as relações sociais em suas assimetrias e hierarquias [...]” (Miskolci, 2016, p. 52). Parte dessas relações sociais e parte dos
marcadores sociais da diferença discuto a seguir.

Das vulnerabilidades do corpo

O uso do conceito de vulnerabilidade, diferenciador da propos-
ta de enfrentamento da epidemia de hiv-aids no Brasil, chama
atenção para o compromisso e a tentativa de pensar esse tema
para além da responsabilização pessoal, apontando as dimen-sões mais sociais como a questão da realidade socioeconômica e cultural, que dificulta ou impede os acessos à informação, aos insumos e aos serviços de saúde pública (Ayres, 1996). As entre-
vistas com os dez jovens indicaram que, de forma unânime, eles
demonstraram conhecer as informações básicas sobre hiv-aids,
principalmente em relação à forma de contágio pelo hiv em re-
lações sexuais desprotegidas e o uso do preservativo masculino
como método preventivo. Também apresentaram experiências
positivas de acesso aos serviços de saúde em relação à testagem
e retirada de preservativos. Todos os participantes já haviam fei-
to o teste anti-hiv pelo menos uma vez. Demonstraram conhecer
os locais do serviço público de saúde para a realização do exame
na cidade e a importância de se fazer o teste quando possuem
práticas afetivo-sexuais desprotegidas. Contudo, não é possível afirmar que não existam dificuldades socioeconômicas e culturais que implicam em vulnerabilidades
dos participantes. Por isso, as informações dadas por eles nas

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entrevistas indicam a necessidade de discutir esse conceito. Aqui, o farei a partir do que o antecede. Segundo Butler (2009),
a vulnerabilidade parece ser a consequência dos nossos corpos
socialmente construídos. Dito de outro modo, interessa-me ana-
lisar parte dos dados a partir da noção de construção do corpo, e
não somente em termos de vulnerabilidade, para, com isso, inspi-rar discussões que reflitam sobre as dificuldades que podem vul-
nerabilizar esses jovens. Não se busca esgotar as possibilidades
de análises sobre o corpo que podem ser feitas a partir dos dados
reunidos. Nem mesmo idealizar, de forma generalizada, um corpo
comum ou mais ou menos compartilhado pelos interlocutores,
mesmo porque a apresentação dos participantes na seção ante-
rior já caracterizou a diferença corporal presente na pesquisa.

Marcos, por exemplo, conforme já informado, é jovem e tem o
corpo gordo. O peso do corpo gordo é uma característica que dis-
tancia Marcos do ideal de juventude, consequentemente de um
ideal de beleza. Desde o começo do século XX, a beleza está direta-mente ligada ao corpo saudável, em contínuo treinamento físico:
o corpo não deve ser somente magro, mas também esguio, ágil, musculoso, como nas culturas pré-industriais (Calanca, 2008).
Mas há outras marcas de diferenciação que não apenas a idade e
peso que precisam ser consideradas; por exemplo, o gênero. A masculinidade, no caso de Marcos, mesmo ele tendo um corpo
gordo, agrega valor à sua experiência de ser desejável, reconhecido
como homem atraente a outros homens. Então, para pensarmos em
vulnerabilidade a partir do corpo, não basta, portanto, tomar um marcador como sendo o definidor das experiências, assim como
não se trata de simples somatórias de marcas de diferenciação que,
diante das dinâmicas sociais, alocaria alguém, com um determina-do corpo, em um contexto definitivamente vulnerável.
Ângelo acrescenta que, em relação ao ideal de corpo belo e sau-dável, é preciso considerar também a raça/cor: “O mundo pro-
põe isso, a sociedade propõe. Tipo, o branco com o corpo ma-

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lhado”. Ele, com um corpo próximo daquele idealizado como belo, afirma que o seu corpo contribui para que as pessoas não o identifiquem com um perfil de quem possa ter hiv: “Querendo ou não, eu sei que eu sou esteticamente bonito [...]. Tem mui-ta gente que falou pra mim já, tipo, ‘ah, mas eu não imaginava que você tinha’”. Ângelo, nesse sentido, pondera: “Passava pela minha cabeça ‘como que ele vai julgar uma pessoa, se a pessoa tem ou não hiv, olhando a cara da pessoa?’”. Isso indica o quanto
ainda persiste a imagem de um corpo soropositivo construído
de forma diferente do dele, isto é, de um corpo tido como não
saudável/não belo.

Mesmo diante das constatações, pelas respostas dos interlocuto-
res, de que existe um corpo ideal e dessa experiência de Ângelo ser identificado como alguém que “não tem hiv”, é consenso entre eles de que aids e hiv “não têm cara”. Todos responderam que as
únicas formas de saber se alguém é soropositivo são se a pessoa falar ou “fazendo exame”/“fazendo o teste”. Contudo, consideran-
do um estudo realizado em outro contexto, esse corpo entendi-
do, isto é, construído como saudável/belo, tem implicações para
as questões de vulnerabilidade para a infecção pelo vírus hiv. É possível afirmar isso porque “é o parecer saudável que acena para
uma suposta soronegatividade para o HIV, que abre a possibilida-de para as emoções positivas aflorarem (em oposição ao medo) e o sexo sem camisinha acontecer” (Rios, Albuquerque, Santana, Pereira, Oliveira Junior, 2019, p. 82). Assim, aquelas imagens de
corpos doentes de aids do passado mudaram, mas, ao mesmo tempo, elas se mantêm presentes com certa influência no campo do desejo, afinal, persiste a ideia de que determinado corpo com
hiv tem uma estética não saudável. Essa persistência representa-tiva existe, ainda que, como afirmou Lucas, “hoje em dia não está
escrito na testa de ninguém que eu tenho aids, hepatite, hiv”.Ainda no campo do desejo, a masculinidade também ganha des-
taque no olhar que as pessoas têm em relação a Junior, confor-me já informado, devido à sua profissão. Segundo ele, é comum

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reações de espanto: “Nunca vi gay pedreiro!”. A surpresa existe
apenas quando a pessoa sabe sobre sua sexualidade, indicando que a profissão se torna estranha quando vista a partir dela, mas
não em relação a outras marcas de diferenciação, como raça/cor,
classe, gênero ou idade.Por outro lado, Alaska relata que o fato de ser afeminado, ao
mesmo tempo que o torna conhecido por seu estilo (já pintou
o cabelo de rosa por um tempo), levanta dúvidas sobre sua ca-pacidade intelectual por parte dos seus professores: “Eles meio que me julgavam menos capaz por ser assim”. Para ele, “a melhor vingança é você tirar 10 na prova dele e ir embora bem linda. E só”.
Dênis, sobre esse tema, disse que o corpo afeminado causa repul-
sa nos homens. Segundo ele, na cidade, só existe um momento em que o seu corpo é valorizado e desejado: no carnaval12. Em suas palavras: “No carnaval, quanto mais close13 você dá, parece que mais você chama a atenção [...]. Parece que não tem pudores no
carnaval, mas no outro dia, depois do carnaval, tem”.

O corpo afeminado, então, na maior parte do tempo, acaba não
sendo coerente com as expectativas de gênero direcionadas a esses jovens assignados como sendo do “sexo” masculino ao nas-
cerem. O gênero masculino de alguém que é pedreiro também
quebra expectativas em relação à sexualidade se o trabalhador
não for heterossexual. Essa coerência, quando existe, pode ser entendida como “efeito de um jogo de forças, de práticas (dis-
cursivas e não discursivas) que regulam tanto a formação de gê-
nero como as normas de inteligibilidade através das quais elas assumem visibilidade e significado” (Bessa, 1998, p. 41). Contu-do, tirar 10 na prova do professor preconceituoso, assumir-se
12 A sociabilidade homossexual no carnaval brasileiro é um tema clássico nos estudos sobre sociedade, cultura e sexualidade no Brasil. Green (2000) e Trevisan (2004) são
duas referências nessa temática. Os autores problematizam essa experiência de visibili-
dade e reconhecimento.
13 Nesse contexto, close é chamar atenção, destacar-se, propositalmente não passar desper-
cebido.

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gay pedreiro ou “dar close” no carnaval são práticas entendidas
aqui como uma possibilidade de agenciamento do corpo.A agência nos possibilita compreender o quanto, no caso do que
estou discutindo aqui, a diferença corporal é uma questão con-
textualmente contingente, por um lado, no que se refere à desi-
gualdade, exploração e opressão, e, por outro lado, a igualitaris-
mo, diversidade e formas democráticas de ação política (Brah, 2006). Afinal, a agência tem relação direta com a possibilidade
intencional de agir socioculturalmente, em contextos particula-
res de relações de poder, não sendo, portanto, simplesmente au-tossuficiente, mas também não sendo sempre impossível de ser correspondente a projetos particulares de vida (Ortner, 2007).Assim, por exemplo, considerando as relações de poder, não
basta ter um corpo afeminado para que a agência esteja dada
em termos de enfrentamento de situações que possam torná-lo
vulnerável. Paulo é outro interlocutor que nos ajuda a pensar na
contextualidade dos agenciamentos corporais. Ele é o que mais
demonstrou temer as consequências da não correspondência de
gênero, isto é, de ser afeminado, principalmente em sua família, que ele identifica como “muito preconceituosa”. Ele disse que so-freu muito sendo “duas pessoas”; “mais discreto em casa” e na rua “mais pra frente do que capô de fusca”, isto é, alegre, falando com todo mundo, chegando nos homens e dizendo que estava “a fim”,
não se importando em chamar atenção enquanto gay afeminado.
Mas em casa buscava corresponder às expectativas de gênero. In-
clusive buscou demonstrar desejo por mulheres para despistar
qualquer reação preconceituosa dos familiares. Paulo, devido ao sofrimento em “ser duas pessoas” por medo do preconceito fami-liar, opina: “Eu falo que a gente é uma raça diferenciada porque
a gente é tratado que nem cachorro, então minha raça mesmo”. Esse corpo que é “tratado que nem cachorro”, portanto, racializa-
do como um animal, indica o quanto a coerência de gênero pode
produzir corpos humanizados, assim como a sua não correspon-

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dência pode produzir abjeção. Segundo Butler (2003), essa não correspondência é coerente quando “sexo”, gênero e desejo tor-
nam inteligíveis enquanto corpos heterossexuais. Lucas também
contou que a sua família é preconceituosa, inclusive disse não
frequentar lugares gays por medo de algum amigo fotografar e
divulgar nas redes sociais, o que poderia chegar até algum dos seus familiares. Ele já ouviu em casa a frase “se tivesse um filho
gay, mataria ele”.

Conforme indicado até aqui, o corpo existe a partir dos marca-
dores sociais da diferença em relação entre si e através dessa
relação, ainda que de modos contraditórios e em conflito (Mc-Clintock, 2003). Por isso, as experiências de construção corporal
aqui apresentadas apontam para a importância dessas diferen-
ciações, principalmente por se darem em contextos particulares
de relações de poder, o que pode nos colocar diante de processos
bastante particulares de vulnerabilidade a partir de determina-
do corpo. Mas, infelizmente, nem sempre essa marcação diferen-ciadora que define a produção corporal – e, consequentemente,
as experiências de vulnerabilidades – é percebida por parte dos
interlocutores.

Um exemplo disso tem relação com a percepção dos participan-
tes negros deste estudo. Independentemente dos fenótipos que
os caracterizam, entre os interlocutores que se autodeclararam “pardo”, “moreno”, negro e preto foi unânime a ideia de que o fato
de serem negros não interfere nas relações afetivo-sexuais, ou
mesmo nos processos de reconhecimentos mais amplos. João, inclusive, afirmou que ser preto não interfere em sua identidade
gay, nem mesmo na relação com as outras pessoas. Juliano vai na
mesma direção que João, mas traz um outro elemento para a re-flexão sem que eu tivesse me referido a qualquer conflito racial: “Sou da família dos negros e não tenho nada contra os brancos, graças a Deus”. A ideia de raça aqui é a socioantropológica, isto é, “um conceito carregado de ideologia, pois como todas as ideolo-gias, ele esconde uma coisa não proclamada: a relação de poder

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e de dominação” (Munanga, 2003, n.p.). Na apresentação de Dê-
nis, na seção anterior, já indiquei o quanto alguns corpos podem
ser racializados de formas distintas conforme o contexto. E, se fixarmos no próprio corpo, a interpretação autoatribuída de Ju-
nior, por exemplo, traz elementos ainda mais complexos para a questão fenotípica. Disse ele: “É claro que tenho partes do corpo que são mais claras... mas 90% delas é parda”.A percepção de que fenótipos raciais não interferem nas relações
com as demais pessoas, nem na própria identidade, é mais um in-
dicativo de que, sendo a sociedade brasileira complexamente ra-
cista14, eles tornam-se corpos vulneráveis, afinal, seus corpos são
compreendidos por eles mesmos, em termos de raça/cor, fora das relações de poder. Em um sentido contrário, Alaska aponta para o que chama de “fetichização” dos seus fenótipos por parte de al-guns homens, afirmando ter escutado várias vezes a frase “adoro
um japinha”. Segundo ele, ocorre a mesma coisa com negros e in-dígenas, pois “tem muita fetichização de raças”.Assim, compreender a vulnerabilidade a partir da construção
dos corpos tem relação direta com as redes de poder em que es-
tão inseridos. Mesmo conhecendo métodos preventivos, serviços
de saúde acessíveis e informações sobre a transmissão do vírus,
o processo de vulnerabilidade dos corpos precisa ser compre-
endido a partir dos corpos em risco, isto é, para além do acesso a informações, insumos e serviços da área da saúde. Ainda que
o hiv-aids esteja demarcando as experiências da homossexua-
lidade, a ponto de João dizer que ele acha que homens héteros
nem pensam em aids, a sexualidade não pode tomar a centrali-
dade das discussões isolada de outras marcas de diferenciação.
Dito de outro modo, os marcadores sociais da diferença e suas

14 Corrêa (2010), a partir da figura da “mulata” e do “mulato” na cultura brasileira, apre-senta uma reflexão sofisticada a respeito das relações entre sexualidade e raça que ofe-
recem a dimensão da complexidade da construção dos corpos e dos aprendizados dos
desejos.

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dinâmicas de intersecções15, para além de uma somatória fixa de
marcação, ajudam-nos a pensar nos contextos particulares das
experiências, sejam de agenciamento ou não, desses jovens tão
diferentes. Essas experiências, tomadas nesse sentido, indicam
inclusive que a sexualidade pode não ser a marca de diferencia-
ção de HSH em relação a preconceito e violência. Junior, por exemplo, contou que hoje em dia “é mais fácil expor
que é homoafetivo do que da umbanda”. Ele disse que é mais fácil para as pessoas aceitarem “um homem dormir com outro do que
uma pessoa incorporar um... mensageiro de luz... um espírito... Pombajira”. Assim, esses marcadores sociais da diferença apon-
tam para uma dinâmica de vulnerabilidade a partir da constru-
ção dos corpos que não se restringe a um binarismo heterossexu-
al ou homossexual, mesmo o assunto sendo hiv-aids. Isso parece dar ainda mais sentido à afirmação de que hoje “a aids não é uma
epidemia nem homossexual nem heterossexual, mas uma epide-mia que explora vulnerabilidades” (Santos, 2015, p. 33). Esse é
um cenário possível para compreender o hiv-aids nessa geração,
especialmente quando se considera as práticas de medicalização. Sobre isso, aprofundarei a reflexão na próxima seção.
Da medicalização da vidaA política de tratamento em relação ao hiv-aids no Brasil teve um marco importante em relação à medicalização quando, em 1989, apareceu o AZT (Azidotimidina). São Paulo foi o primeiro estado a ofertar o remédio na rede pública. “Antes do AZT, a sobrevida
não passava de seis meses e só se podia garantir o tratamento
de doenças oportunistas, aquelas decorrentes da infecção pelo

15 A abordagem interseccional tem tido diferentes direções. Neste texto sigo uma pers-pectiva do feminismo pós-colonial, didaticamente apresentada por Piscitelli (2008), indicando que “poder” e “agência” permitem uma visão construcionista, isto é, menos
estrutural/sistêmica, das posições dos sujeitos tidos como diferentes.

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HIV. Não havia testes, o diagnóstico era clínico” (França, 2008, p. 926). Anos antes, a gravidade da doença e a dificuldade de aces-so à medicação fizeram com que comissários da companhia aé-rea Varig, falida em 2006, criassem uma “rede de solidariedade”
para trazer medicamentos do exterior, especialmente dos Esta-
dos Unidos, onde, com as receitas, conseguiam remédios mais baratos ou por meio de doações. Algo parecido já acontecia com
a medicação contra o câncer16. Foi apenas em 1996 que o SUS, via Lei 9.313 (Brasil, 1996), ofertou a medicação de forma gra-tuita. A partir da implementação de um programa de acesso uni-
versal aos medicamentos antirretrovirais, isto é, da referida lei,
o reconhecimento internacional da resposta à epidemia ocorreu (Grangeiro, Silva e Teixeira, 2009).
O efeito histórico e a capilaridade desse programa aparecem
nas respostas dos interlocutores, pelo menos no que se refere
aos conhecimentos básicos sobre a importância do tratamento e
do uso dos antirretrovirais para quem já é soropositivo. Ângelo, por exemplo, afirma: “Aqui no Brasil [...] o tratamento pra quem
tem hiv é gratuito. Com o SUS, tipo, ele te dá consulta, ele te dá
remédio, ele te dá exames”. Contudo, apenas Ângelo sabia sobre a Profilaxia Pré-Exposição (PrEP) e a Profilaxia Pós-Exposição
(PEP). Ele já tinha feito uso da PEP.A PrEP é a ingestão de medicação antes do evento de exposição
ao hiv, enquanto a PEP é a ingestão de medicação depois do
evento de exposição ao hiv, diferenciando-se também no tem-
po de ingestão da medicação, sendo a PrEP de uso contínuo e a PEP com prescrição de 28 dias (Brasil, 2017). Elas são estra-
tégias preventivas do Ministério da Saúde para indivíduos não
infectados por hiv17. A implementação da PrEP na cidade de
16 Mais informações disponíveis em: https://www.terra.com.br/noticias/brasil/os-
-comissarios-da-varig-que-contrabandeavam-remedios-para-ajudar-pacientes-com--aids,053df05f5633299ddf7f633aea56a19bqif2pl5r.html. Acesso em: 30 jan. 2021. 17 Além dessas duas estratégias de prevenção, uma terceira é conhecida como “Trata-mento para Todas as Pessoas” (TTP), assumida como “[...] o principal exemplo de salva-

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Campo Grande foi realizada em junho de 2019, momento em
que a maior parte das entrevistas já havia sido feita. Na inter-net, em sites jornalísticos ou específicos voltados à população
LGBT, antes de as entrevistas serem iniciadas, já circulavam in-
formações sobre a PrEP. Mas todas as entrevistas foram feitas
com o município já tendo disponibilizado a PEP, que teve início no ano de 2014. Ângelo alerta sobre a sua experiência com a PEP: “Não vai achan-
do que é, tipo, tomar quarenta gotas de dipirona à noite antes de dormir, porque não, não é”. Ele teve enjoo e ânsia de vômito du-
rante o tratamento. Mas valoriza a existência de tal estratégia de
prevenção. Os demais, assim que eu expliquei o que era a PrEP
e a PEP, também tiveram reações positivas diante da possibili-
dade de se prevenir pela medicação. Sobre a PEP, Marcos disse “achar maravilhoso”, mas lamentou: “Eu... acho uma pena que eu
não soubesse disso... assim como eu acho que tem várias pes-soas que se beneficiariam muito sabendo disso... de forma mais clara”. Lucas, além de elogiá-la, perguntou: “Onde, assim, a gente
acha esse remédio?”.A valorização e um certo desejo por medicação preventiva para
o hiv-aids, mesmo entre aqueles que acabam de saber sobre essa possibilidade, indicam o quanto certas tecnologias médicas “não
são mais apenas tecnologias da saúde, mas tecnologias da vida” (Rose, 2011, p. 16). João, inclusive, chama atenção para o quan-to tomar a medicação “é melhor do que ficar em casa esperan-
do algum sintoma”. Segundo a sua primeira avaliação, esse tipo de prevenção ao hiv é “muito bom”. Não é à toa que o próprio
Ministério da Saúde aponta que essa política de prevenção que envolve a profilaxia, assim como aquela que disponibiliza antir-

guarda da transmissão do HIV mediante uso regular de ARV pelas PVHIV, como redução significativa da transmissão do vírus pelas pessoas infectadas em tratamento antirretro-viral regular” (Brasil, 2017). ARV significa “Antirretrovirais” e PVHIV significa “Pessoa
Vivendo com Hiv”.

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retrovirais para quem já é soropositivo, tem como um dos seus objetivos melhorar a “qualidade de vida”18.

Sobre esse atual momento das tecnologias médicas envolvidas
no tratamento da pandemia de hiv-aids, Seffner e Parker apon-tam para o quanto “a medicalização traz consigo uma ontologia individual liberal” (2016, p. 301), diferentemente do seu início,
em que a resposta brasileira à pandemia, a partir de uma for-
te conexão com os direitos humanos e ênfase na solidariedade, “apontava para uma ontologia social que enfatiza: a interdepen-
dência dos seres humanos, a importância das comunidades, a
importância do espaço público como lugar de respeito à diversi-dade e negociação das diferenças” (2016, p. 301).A crítica aqui não é necessariamente contra a medicalização das
práticas de prevenção ou tratamento do hiv-aids; antes, contra
a forma como o discurso preventivo de prevenção ao hiv-aids constitui-se como uma mudança da “resposta brasileira à aids”.
Ele parece deixar de lado, ou, pelo menos, fragilizado, o que Se-ffner e Parker identificam como “conexão aos direitos huma-nos” e “ênfase na solidariedade”. Simões aponta para o mesmo sentido que eles, afirmando que o sentimento de urgência que
a epidemia de hiv-aids despertou no passado recente no Brasil “hoje parece contido pela adesão confiante à política geral de
universalizar testes e tratamento, minimizando os esforços de
informação, educação e prevenção sobre sexualidade e práticas sexuais” (Simões, 2018, p. 334).
Conforme já dito, os interlocutores deste estudo tinham infor-
mações básicas sobre a temática do hiv-aids. Segundo eles, es-
sas informações chegaram por meio das escolas ou da televisão. Carlos disse lembrar “do tempo da escola”, em que a Secretaria
Municipal da Saúde desenvolvia ações educativas de preven-

18 Disponível em: http://www.aids.gov.br/pt-br/publico-geral/previna-se. Acesso em: 30 jan. 2021.

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ção na sua instituição de ensino. Dênis disse que em sua escola “distribuíam panfletinhos”. Sobre a TV, ele conta que lembra de
campanhas muito rápidas, que não discutiam muito o que fazer quando se tem hiv, apenas diziam “para tomar cuidado”.
Poucos se referiram à internet e nenhum exclusivamente à inter-net. Juliano destacou a televisão e os panfletos que pegou quan-
do foi ao médico fazer o teste anti-hiv. Isso indica o quanto esses processos educativos citados por Simões (2018) tiveram efeitos
importantes de disseminação de conhecimento sobre preven-ção ao hiv-aids e práticas sexuais entre esses jovens. Ao mesmo tempo, aponta para o quanto a “era digital”19 não tem sido, pelo
menos entre esses entrevistados, dessa região, com essas idades
e com essa marca de classe social, decisiva para o acesso a infor-
mações sobre prevenção ao hiv-aids. João foi o único que comen-
tou fazer buscas no Google para se informar a respeito do tema. Carlos, por sua vez, disse que “quem é jovem não quer ir atrás de doença, [...] quer ir atrás de prazer”, por isso, segundo ele, é
importante as campanhas chegarem até a juventude, sem que se
espere que os jovens busquem por informações sobre o assunto.

Na direção da crítica apresentada pelos autores Seffner, Parker (2016) e Simões (2018), citados anteriormente, Greco (2008) afirma que o acesso à educação, recursos e cuidados de saúde fundamentais para o controle das doenças “só ocorrerá após consideráveis modificações na ordem internacional, por exem-
plo, mais justiça, equidade, melhor distribuição de renda, prote-ção social” (Greco, 2008, p. 90). Segundo esse autor, os impactos sociais da epidemia do hiv-aids, os impactos científicos e econô-micos, questões como eficiência a todo custo, concentração de
riqueza e o enfraquecimento das políticas sociais precisam ser

19 Período em que há uma conexão em rede por meios comunicacionais tecnológicos, “que se definem cotidianamente como digitais e que envolvem o suporte material de
equipamentos como notebooks, tablets e smartphones, bem como diferentes tipos de redes de acesso, conteúdos compartilhados e, por fim, mas não por menos, plataformas de conectividade” (Miskolci, 2017, p. 23).

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compreendidos como contribuindo “para transformar a noção
de nação em um grande mercado global, no qual as políticas e as ações são decididas pelos países centrais” (2008, p. 74).
Essa crítica faz sentido considerando que, por exemplo, o go-
verno brasileiro está ligado ao Programa Conjunto das Nações Unidas sobre HIV/AIDS (UNAIDS), que lidera e inspira o mundo
para alcançar sua visão compartilhada de zero novas infecções
por hiv, zero discriminação e zero mortes relacionadas à aids20. Foi em 2014 que foram lançadas metas para conquistar esses
objetivos. Elas propunham atingi-los em cinco anos21. O Brasil
reiterou o compromisso com essas metas, que, na prática, pro-punham ter até o ano de 2020 “90% de pessoas vivendo com HIV/Aids com conhecimento do seu estado sorológico; 90% das pessoas HIV em tratamento; 90% das pessoas em tratamento com carga viral indetectável” (Brasil, 2014, p. 3).
Mais do que o não cumprimento do compromisso, chamo a aten-ção para o quanto a ideia de nação enquanto “um grande merca-do global” (Greco, 2008) tem relação direta com o farmacopoder transnacional, que caracteriza o que Preciado (2018) chama de farmacopornografia, isto é, um regime pós-industrial, global e mi-diático. Ainda que a questão da medicalização anti-hiv como pre-venção não estivesse no horizonte reflexivo de Preciado (2018), parece rentável pensá-lo neste atual contexto temático. “O ter-
mo se refere aos processos de governo biomolecular (fármaco-) e semiótico-técnico (pornô) da subjetividade sexual, dos quais a Pílula e a Playboy são dois resultados paradigmáticos” (2018, p. 36). Para Preciado, “o biocapitalismo farmacopornográfico não
produz coisas, e sim ideias variáveis, órgãos vivos, símbolos, de-sejos, reações químicas e condições de alma” (2018, p. 38).
20 Mais informações disponíveis em: https://unaids.org.br/2017/07/unaids-brasil--publica-relatorio-2016/. Acesso em: 30 jan. 2021.21 Mais informações disponíveis em: https://unaids.org.br/2014/11/metas-90--90-90-podem-evitar-28-milhoes-de-novas-infeccoes/. Acesso em: 30 jan. 2021.

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A reação dos interlocutores deste estudo, descrita anteriormen-
te, ao saberem sobre a PEP e a PrEP indica o quanto essa expe-riência chamada de farmacopornográfica parece fazer sentido
nesse contexto local. Mais um exemplo é a relação entre corpo
e desejo que Juliano faz ao se referir a soropositivos que fazem
uso de medicação contínua como tratamento. Ele minimiza os
problemas de saúde, isto é, os perigos para o corpo que o hiv--aids pode gerar: “Eu acho que, pra mim... pra mim o hiv não é
tudo isso que todo mundo fala porque quem eu conheço é boni-
to, é forte, é musculoso, entendeu?”. E prossegue se colocando da seguinte forma em relação à aids: “É uma doença complicada se
você não se tratar? É, mas tem tratamento”. Ângelo vai na mesma direção: “Hoje em dia esse tabu não está tão grande: ‘Ah vamos transar sem preservativo? Vamos’, porque o hiv tem tratamento,
entendeu?”.

Esses dados levantados a partir das entrevistas com Juliano e Ân-
gelo, relacionando medicação e beleza (corpo saudável e desejá-
vel, como já discutido anteriormente), assim como uma prática
sexual sem camisinha porque existe remédio para o tratamento
do hiv-aids, corroboram a ideia de que, em contextos farmaco-pornográficos, “o desejo sexual e a doença compartilham a mes-ma plataforma de produção e cultivo: sem os suportes técnicos,
farmacêuticos e midiáticos capazes de materializá-los, eles não existem” (Preciado, 2018, p. 56).Contudo, durante a entrevista, muitos deles refletiram sobre
uma possível experiência de medicalização para a prevenção ao hiv-aids e foram bastante críticos. Junior disse que “é melhor
prevenir do que remediar”, isto é, prefere usar camisinha. Paulo colocou dúvidas sobre a eficácia da medicação: “É novo, ninguém
conhece, então vai que dá um erro lá. O negócio não dá certo, né? Acaba pegando aids mesmo. Eu não acho que não vai dar certo isso não, mas é bom pra quem confia, né?”. Carlos, ao se referir à PrEP, disse que não se vê tomando remédio todos os dias “só para isso”, isto é, para fazer sexo sem camisinha: “Eu prefiro usar

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o preservativo a ficar me medicando sem a necessidade”. Mas, ao pensar sobre a PEP, disse ser diferente: “Eu já me expus, é neces-sário”. Dênis também diz preferir não se medicar: “Eu acredito
que tomar remédio todo dia não faz bem para o corpo”22.

Considerando esses últimos dados aqui apresentados, seria in-gênuo acreditar na generalização de Preciado ao afirmar que “em
biotecnologia e pornocomunicação não há objeto a ser produzi-do. O negócio farmacopornográfico é a invenção de um sujeito e, em seguida, sua reprodução global” (2018, p. 38). Afinal, ainda
que possamos estar conectados, enquanto nação, a processos de um “um grande mercado global” (Greco, 2008), há escapes, ou,
em uma perspectiva foucaultiana de relações de poder, tem re-sistências à medicalização (Foucault, 1988). Independentemen-
te delas, esse novo momento das políticas de prevenção traz ou-
tras implicações em relação à doença e às experiências desses
jovens. Sobre isso, discutirei a seguir.

“Dos bichos de sete cabeças”A questão do estigma associado à sexualidade e ao hiv-aids é
uma das temáticas importantes nas respostas dadas pelos en-
trevistados. Sobre isso, Paulo constata que, devido à sexuali-dade, para “o gay já é difícil de arrumar um serviço, agora gay
com aids não arruma serviço nenhum. É raro arrumar”. E que, devido ao preconceito, ao estigma, muitos “têm medo de pegar essa doença mesmo”. Carlos, justifica o estigma dizendo que “até
hoje está esse estereótipo, dos gays colocarem a aids no mundo”. Também por isso, Simões afirma que “a pessoa com HIV convi-ve constantemente com grande aflição quanto ao que pode lhe acontecer se sua condição for revelada” (2018, p. 333). Segundo
22 Nesse parágrafo, Junior e Carlos, segundo os dados levantados na entrevista, associaram
o uso da PrEP ao não uso do preservativo, mas a orientação técnica é para que usuários de
PrEP não abandonem o uso da camisinha, visto que existem outras IST, não apenas o hiv.

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a pesquisa desse autor, a aflição é “de ser desacreditado, de per-
der amigos, de perder empregos, de ser obrigado a limitar ou re-nunciar a seus projetos de vida” (2018, p. 333). Os efeitos disso? A “família, escola, trabalho, amizades, vizinhança, qualquer es-paço público, podem se tornar ambientes hostis” (2018, p. 333).A reflexão sobre o estigma tem em Goffman (1988) um dos mais
conhecidos posicionamentos teóricos. Destaco, contudo, que exis-te uma influência do estrutural-funcionalismo nas reflexões desse autor. Essa influência não dialoga com a proposta teórica deste estudo em tela. No entanto, o fato de, em suas reflexões, as normas
e convenções constitutivas da interação terem muito mais a nos dizer do que os indivíduos em si justifica o seu uso aqui. Para ele, o
estigma é um tipo especial de relação entre atributo e estereótipo,
relação essa que deve ser contextualizada historicamente.

Um exemplo dessa dinâmica histórica entre atributo e estereótipo para pensar o estigma está na afirmação dada por Dênis. Segundo ele, as pessoas mais velhas passaram “por momentos em que teve
um preconceito maior sobre o uso da camisinha com homens, ou passou por mais informações sobre hiv e aids”. Ele exemplifica: “Eu não fui tão bombardeado em um momento da minha vida”. O
que Dênis aponta faz sentido quando historicizamos a questão do estigma, afinal, entre gays, desde o início da epidemia no Brasil
e no mundo, essa questão tem aspectos moral-sociais próprios, conforme apontou Perlongher (1987), diante do pânico nos anos 1980: “chegou-se longe demais, paga-se agora a culpa pelos ex-cessos libidinosos! Um retorno ao casal, uma volta à família, a morte definitiva do sexo anônimo e impessoal...” (1987, p. 52). Desde a década de 1980 muitas coisas mudaram no campo das
relações afetivo-sexuais entre homens, mas a crítica de Perlon-gher (1987) ainda parece atual. Afinal, em uma cidade como Cam-
po Grande, a homossexualidade parece ser algo condenável em
termos de valores morais. Marcos, sobre isso, fala que os gays da cidade não têm tantos problemas em dizer-se gay, mas “gostam

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de parecer héteros”. Ele percebe isso devido a uma imagem local,
mas também bastante difundida, de que o estado lembra o homem “cowboy”, “boiadeiro”, “o cara macho”. Lucas, sobre essa imagem
de homossexuais na cidade, disse que, pensando que seus amigos
eram heterossexuais, contou sobre sua própria sexualidade, mas
surpreendeu-se ao descobrir que eles eram casados com homens.

Contudo, mesmo diante de homossexuais incansavelmente em busca de aceitabilidade via o padrão “excludente” de normalida-de, penso que vale a afirmação feita por Hocquenghem de que “a homossexualidade atormenta o ‘mundo normal’” (2009, p. 22). Hoje, a questão pode não ser necessariamente os “excessos li-
bidinosos”, mas o afeminamento já discutido ou o não cuidado
individual do sexo com camisinha e/ou a recusa ao tratamento
com PreP ou PEP. Nesse sentido, conforme apontado anterior-
mente, Dênis refere-se à sua própria geração como sendo aquela
que não teve um momento pontual em que as informações sobre
a doença começaram a ser intensas e moralizantes, pelo contrá-rio. Em suas palavras: “Desde a minha infância eu ouço falar so-
bre hiv e aids. É como se fosse – desculpe, eu vou menosprezar a
doença –, é como se fosse uma gripe. Entende?”.

Na visão desse interlocutor, o hiv-aids será um potencializador
para as relações desprotegidas entre gays mais velhos que ele,
indicando que o risco da infecção pode ser favorável ao dese-jo de não usar o preservativo. Ainda que esse posicionamento
do entrevistado possa ser lido como sendo preconceituoso ou
generalizador em relação às práticas afetivo-sexuais de homens
mais velhos com outros homens, essa referência a esse tipo de
comportamento de não uso do preservativo é um dos indicado-res de o quanto “a medicina não pode lidar com o desejo, pois
escapa às prescrições segundo um impulso que não é racional nem formalizável” (Perlongher, 1987, p. 81).
Mesmo entre os mais jovens, o uso do preservativo não é uma
prática sempre presente nas relações sexuais quando o assunto é

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desejo e prazer. A maioria dos entrevistados disse já ter feito sexo
sem essa proteção. Nesse sentido, conforme discutimos na seção anterior, “a construção de corpos e subjetividades sempre foi um
processo dinâmico, produto de intensas lutas que se dão nos seios
das redes de poder, com diferentes forças e interesses” (Sibilia, 2015, p. 143). Muitas vezes, essas forças e interesses se enfrentam de formas contraditórias ou até mesmo opostas (Sibilia, 2015).
Considerando parte dessas forças de interesses, para muitos da
geração daqueles que participam da pesquisa, a medicalização pode ser um sinal de o quanto estão livres da camisinha, afinal, de forma unânime, afirmaram que ela é “ruim”, “tira a sensibi-lidade”, “dá muito trabalho” ou “incomoda”. João foi além: “O gosto dela é ruim [risos do entrevistado e do pesquisador]”. Por
tudo isso, para Dênis, o estigma está com a camisinha (o insu-
mo preventivo – aquilo que, por interesses e forças sanitárias,
deveria proteger), e não com a aids (a doença – aquilo que, por
interesses e forças sanitárias, deveria ser prevenido). Em suas palavras, “parece até que... o perigo também parece uma forma
de prazer para algumas pessoas”23. Lucas indica ainda um outro aspecto estigmatizante da camisinha: ela pode revelar que você
está transando com homens. Por isso, ele tenta ir comprar em
uma farmácia onde ninguém o conhece – não compra no bairro
onde mora, nem próximo ao local de trabalho.

Outra forma de compreender o estigma em torno do hiv-aids vai na direção da culpa e da vergonha. Conforme reflete Terto Ju-nior (2002), esses dois sentimentos que homossexuais sentem
têm relação com as representações de que todo homossexual é potencialmente um “doente de AIDS” e responsável pela dis-
seminação do hiv em outros grupos populacionais. Sobre essas representações, Paulo refere-se ao preconceito que tem “na ci-
23 O sexo desprotegido intencionalmente entre pessoas que sabidamente podem se in-fectar pelo hiv envolve muitos sentidos e significados. Parte dessas experiências estão reunidas no estudo de Silva e Iriart (2010).

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dade, no Brasil e no mundo sobre a aids” como existindo a partir da influência da mídia, por certos “comerciais” espalharem que a aids “é aquilo, um bicho de sete cabeças. Todo mundo realmen-
te tem medo da aids, né?”.Nos termos goffmanianos, essa ideia de aids ser “um bicho de
sete cabeças” e ter relação com a homossexualidade é uma es-
pécie de atributo imputado a um certo estereótipo. Esses senti-
mentos como vergonha e culpa, inclusive o medo, podem estar embutidos nas mensagens de prevenção ao hiv-aids, afinal, elas podem recomendar “o sexo mais seguro como um mandamen-
to a ser cumprido à risca, sem chances de falhas” (Terto Junior, 2002, p. 152). As falhas, “quando acontecem, são vistas como
irresponsabilidade, negligência ou fracasso do indivíduo em ne-gociar e praticar o sexo seguro (Terto Junior, 2002, p. 152).
Juliano é um dos interlocutores que faz esse tipo de julgamen-
to moral sobre a pessoa soropositiva. No contexto da resposta
sobre a sua opinião em relação à PrEP e à PEP, ao dizer que os tratamentos são “legais”, destacou que “a pessoa se cuidan-
do”. Mas, ao se referir àqueles que já são soropositivos, disse que “aqueles que já têm, foi porque não prestaram atenção, não se cuidaram. Deixaram a vida levar, entendeu? Aí levou, levou, le-vou até que um dia leva até daqui, né? Aí ‘viado’ morre de uma vez”. Prosseguiu dizendo que quando “a pessoa tá se tratando, tá
fazendo seu tratamento, tá ok. Só padece, só cai, só cai aqueles
que não fazem o tratamento, aqueles que não procuram ajuda
médica, entendeu?”.

É importante destacar que os dados apontam para o fato de que,
com avanço dos remédios e das técnicas médicas de prevenção,
há uma mudança de representações em torno do hiv-aids e da
homossexualidade no que se refere à responsabilização em tor-
no da doença, daquilo que foi construído, e parece ainda pre-
sente entre parte dos interlocutores como estando ligado a esse “bicho de sete cabeças”. Mas também persistem continuidades

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representacionais. Juliano, nesse sentido, afirma que “o mundo
gay também é complicado” em relação à sua própria segregação, nesse caso, entre soropositivos e não soropositivos. Alaska tam-bém identifica essa forma de tratamento a ponto de assumir: “Eu teria medo de rejeição se eu fosse soropositivo”. Para João, “é a parte que fala que não tem cura que assusta mais as pessoas.
Por não ter nenhum tipo de medicamento que vai ser curável”.

Essa marcação de posições identitárias em termos de sorologia, isto é, o que significa ser ou não soropositivo, leva-me a pensar no que Valle (2010) chamou de “identidades clínicas”. Confor-me outras construções identitárias, elas dizem respeito a “ca-
tegorias, imagens, representações culturais e discursos sobre
a soropositividade, que têm sido produzidos por meio de uma
combinação de forças sociais e culturais de origens e formações amplamente diferenciadas” (Valle, 2010, p. 40). Parte dessa
construção, além da responsabilização individual pela infecção
e pelo próprio tratamento já citados, tem relação direta com o estigma ainda presente no “mundo gay”. Alaska explica: “‘Ai! A pessoa é soropositiva! Não chega perto dela’. Como se fosse um
vírus da gripe, que você pega pelo ar”. Juliano diz que mesmo as pessoas do “mundo gay” acham o hiv um “bicho de sete cabeças”.
Ele também disse ter pessoas que pedem para não serem toca-
das por soropositivos. Mas pondera que, para ele, que conhece gays soropositivos, “são as pessoas mais maravilhosas que tem
no nosso mundo gay, entendeu?”. Ele se coloca de forma dife-rente dessas outras pessoas a quem se refere em sua resposta: “Pra mim não é um bicho de sete cabeças, pra eles é, entendeu?”. Juliano se justifica afirmando que sabe que “tem tratamento” e, por isso, não vê o hiv ou a aids como um “bicho de sete cabeças”.Ângelo, como Juliano, parte da justificativa do tratamento para encarar o hiv-aids como não sendo um “bicho de sete cabeças”: “Na minha opinião, minha família sempre trabalhou na área mé-dica, então eu sempre fui um tanto conhecido [conhecedor]”. E prossegue dizendo que ter conhecimento sobre “DST”, sobre

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“saúde”, fez com que o hiv-aids não se tornasse um “tabu”. Mas pondera: “Tem muitas pessoas hoje que têm vergonha de ir ao
médico, ir no posto de saúde e falar que quer fazer um exame do
hiv. Então depende; pra mim é tranquilo, mas tem pessoas que
podem ver isso, nossa, como um bicho de sete cabeças”. Sobre o
exame, Carlos apresenta outro sentimento que contextualiza a imagem do “bicho de sete cabeças”: “Eu nunca fiquei com tanto
medo como na espera de um resultado de um exame, porque
você não sabe se está ou não está, entendeu? Então isso aterrori-za”. Alaska diz não ter medo; ainda assim, não afasta o que os ou-tros interlocutores estão chamando de “bicho de sete cabeças”: “Sempre que dá aquele susto eu vou lá fazer exame”. “Aquele sus-
to”, nesse contexto, é a consciência em ter se exposto ao risco de
infecção pelo hiv por não ter feito sexo com preservativo.Ainda sobre esses sentimentos e reações, Paulo também faz uma diferenciação, dizendo que a aids é, para ele, “de boa”. Mas torna--se “um bicho de sete cabeças” para quem pensa que vai morrer
por causa dela, isto é, para quem tem o hiv, não para ele, que não
tem e que sabe que tem tratamento. Ele também se refere ao fato de essas pessoas, que encaram o hiv-aids como “um bicho
de sete cabeças”, pensarem assim por acharem que irão infectar todo o mundo. Junior chama a atenção para esse fato: “Ter um
relacionamento sério hoje em dia é praticamente impossível.
Para uma pessoa saudável, que não é portadora do vírus, já é difícil, quem dirá um portador do vírus”. Ele diz que isso ocorre porque “ninguém quer ficar doente”, isto é, ser infectado pelo hiv. João, sobre esse tema, relativiza: “Na amizade é tranquilo, as
pessoas não ligam muito, mas se for pra ter um relacionamento com a pessoa [soropositiva], ela já dá uma evitada”.A referência a “um bicho de sete cabeças” foi trazida pelos in-
terlocutores em suas respostas a diferentes perguntas sem que
fosse, por parte deste pesquisador, citada ou sugerida em ne-nhum momento das entrevistas. Os usos diversificados dessa
expressão, seja em relação ao estigma da homossexualidade,

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seja à medicalização como minimização da gravidade do hiv-
-aids, indicam o quanto essa doença é compreendida de forma
multifacetada entre os participantes da pesquisa. Dito de outro modo, “[...] o que as pessoas percebem como doença e os sinto-
mas a ela associados são modulados pelo sistema cultural, assim
como as ações curativas tomadas e as avaliações subseqüentes” (Langdon, 1994, p. 118).
Considerando o aspecto relacional do estigma e dos processos
de reconhecimento social, a defesa de que o hiv-aids, para al-guns, não é mais “um bicho de sete cabeças” indica o quanto a
homossexualidade também precisa ser localizada em proces-
sos históricos que apontam para mudanças em relação aos seus
próprios atributos e estereótipos. Não se trata de minimizar a violência e o preconceito ainda sofrido pelos interlocutores, afi-
nal, ele existe e é real. Lucas, por exemplo, vive uma situação de sofrimento porque a única pessoa “que sabe”, e com quem ele poderia contar, virou evangélica e agora o critica. O “que sabe”,
citado por ele, sem nomear do que se estava falando, não é iso-
lado na entrevista de Lucas; ele é o único entrevistado que não usou durante suas respostas categorias como “gay” ou “homos-
sexual” para se autorreferir ou para falar sobre o que se pergun-tava. Ainda assim, com o presente estigma, é preciso considerar
as mudanças em relação a essas experiências da sexualidade. Miskolci (2012) explica que aconteceu uma mudança de um mo-
delo marcado pela exclusão e invisibilidade nas relações afetivo--sexuais entre pessoas do mesmo “sexo” – por serem entendidas
como doença mental e/ou um crime passíveis de prisão ou in-
ternamento – para um modelo direcionado ao disciplinamento e
à normalização, que regem a visibilidade do modelo epidemioló-gico. Segundo o referido autor, o primeiro foi classificado por for-
ças repressivas, coercitivas e externas, enquanto no segundo as
forças são de outra ordem, isto é, de disciplinamento, controle e
internas. Para ele, não há mais a ameaça do juiz ou do médico, ao invés disso, temos a “necessidade reconhecida individualmente

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do autocontrole e do autoajustamento, em um processo histó-
rico em que quanto mais visíveis, mais as homossexualidades
foram normalizadas a partir do modelo heterossexual reprodu-tivo” (Miskolci, 2012, p. 45). A partir dessa crítica, o que parece
é que o desejo e o estigma em torno do hiv-aids mudaram, mas podem ter mantido e/ou trazido novos “bichos de sete cabeças”.
Considerações finaisAs análises aqui realizadas permitiram apresentar homens jovens
que fazem sexo com homens, moradores da cidade de Campo
Grande (MS), em suas multiplicidades identitárias, favorecendo a
discussão de o quanto a categoria HSH faz sentido para pensar-
mos hiv-aids e vulnerabilidades quando não utilizada de forma generalizante ou pouco diversificada. Além disso, a reflexão sobre
a construção do corpo como antecedendo as possibilidades de
pensar sobre vulnerabilidades parece apontar de forma estraté-
gica para as experiências diante do hiv-aids, considerando os con-
textos de diferenciação em meio às relações de poder.As dez entrevistas permitiram a teorização sociocultural da do-
ença de forma a não se esgotar as possibilidades de interpreta-
ção e análise dos dados, indicando o quanto essa metodologia e
perspectiva teórica seguem sendo produtivas para a discussão a
respeito da temática saúde-doença, mas também para a histori-
cidade de atributos e estereótipos em torno da homossexualida-
de e do hiv-aids. Essa geração de entrevistados indica o quanto continuidades e descontinuidades em torno de “um bicho de
sete cabeças” persiste no contexto de medicalização da preven-
ção, com pouco investimento na educação, no fortalecimento da
solidariedade e nos direitos humanos; e com mais apostas nos
processos liberais de enfrentamento à epidemia aqui discutida.

O enfoque interseccional nos marcadores sociais da diferença trouxe uma dinamicidade reflexiva para pensar sobre as relações

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desde jovens no âmbito sociocultural, familiar, afetivo-sexual e
com diferentes instituições. Isso permitiu discutir agenciamen-
tos e, ao mesmo tempo, processos de diferenciação e normaliza-
ção por vezes contraditórios diante do hiv-aids. Esses processos
seguirão demandando investimentos analíticos das Ciências So-
ciais, por mais que os avanços em direção à cura da doença se desenvolvam. Afinal, a homossexualidade parece seguir sendo
uma ameaça presente na vida de jovens que fazem sexo com ou-
tros homens após um longo processo histórico de culpa, medo,
vergonha e responsabilização pela epidemia de hiv-aids. Dito
de outro modo, para enfrentar o estigma, a medicalização é in-suficiente, ainda que há décadas tenha interferido, inclusive no aspecto político, no significado da doença e das diferentes iden-
tidades afetivo-sexuais em nossas sociedades.

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Recebido em 01/02/2021Aceito em 31/05/2021