TOMO. N. 39 JUL./DEZ. | 2021

Ressignificando Bandeiras e Narrativas:
Política, Performance e Estética Sob

a Ótica dos Movimentos Culturais da
Juventude na Cidade de Maceió/AL

João Batista de Menezes Bittencourt*1

Resumo
O artigo busca problematizar os sentidos de “militância” e “engajamen-
to político” articulados por jovens que participam de coletivos e grupos
culturais na cidade de Maceió-Alagoas. Partimos da hipótese de que as
estratégias de ação política construídas pelos jovens cada vez mais se pautam por aspectos locais e estão conectadas com os desafios enfren-
tados por esses agentes cotidianamente, o que tem provocado tensões e reconfigurações nas maneiras como se organizam para transformar a realidade social. Os dados que fundamentam esta discussão foram extraídos de três entrevistas e duas incursões etnográficas realizadas
no ano de 2018. Se a primeira técnica de coleta permitiu a captura de camadas mais profundas dos sentidos articulados pelos interlocuto-res, a segunda forneceu elementos para um melhor entendimento das
estratégias desenvolvidas pelos coletivos.
Palavras-chave: Juventude. Política. Performance. Estética.

* Doutor em Ciências Sociais. Professor do curso de Ciências Sociais e dos Programas de
Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia Social da Universidade Federal de Alagoas. E-mail: joao.bittencourt@ics.ufal.br

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Redefining Flags and Narratives: Politics,
Performance and Aesthetics from the Perspective of
Youth Cultural Movements in the City of Maceió/AL

AbstractThe article seeks to problematize the meanings of “militancy” and “political engagement” articulated by young people who participate in collectives and cultural groups in the city of Maceió-Alagoas. We start from the hypothesis that the political action strategies built by young people are increasingly guided by local aspects and are linked with the challenges faced by these agents on a daily basis, which has caused tension and reconfigurations in the ways they organize themselves to transform the social reality. The data that support this discussion were extracted from three interviews and two ethnographic incursions car-ried out in 2018. If the first collection technique allowed the capture of deeper layers of the senses articulated by interlocutors, the second provided elements for a better understanding of the strategies develo-ped by the collectives.
Keywords: Youth. Policy. Performance. Aesthetic.
Redefiniendo Banderas y Narrativas: Política, Performance

y Estética Desde la Perspectiva de los Movimientos
Culturales Juveniles en la Ciudad de Maceió/AL

ResumenEl artículo busca problematizar los significados de “militancia” y
“compromiso político” articulados por los jóvenes que participan en colectivos y agrupaciones culturales en la ciudad de Maceió-Alagoas.
Partimos de la hipótesis de que las estrategias de acción política cons-
truidas por los jóvenes son cada vez más guiados por aspectos locales y conectados con los retos a los que se enfrentan esos agentes en el día a día, lo que ha provocado tensiones y reconfiguraciones en las formas en las que se organizan para transformar la realidad social. Los datos que sustentan esta discusión fueron extraídos de tres entrevistas y dos

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incursiones etnográficas realizadas en 2018. Si la primera técnica de recolección permitió captar capas más profundas de los sentidos arti-
culados por los interlocutores, la segunda brindó elementos para una
mejor comprensión de las estrategias desarrolladas por colectivos.
Palabras-clave: Juventud. Política. Performance. Estética.
Juventudes contemporâneas e a emergência da
“política-vida”Os dados apresentados neste artigo fazem parte de uma pes-quisa intitulada “Sentidos da resistência juvenil: o cotidiano de jovens na cidade de Maceió/AL e suas relações com a música,
a cultura e a política”, que teve início no segundo semestre de 2016. A primeira tarefa foi buscar uma aproximação dos jovens
por intermédio das atividades culturais as quais eles organi-
zavam e/ou participavam. Desse modo, passei a acompanhar atividades em diferentes espaços com o intuito de entender as formas de ações desenvolvidas, quais públicos buscavam atin-gir e quais discursos se faziam presentes nesses eventos. Com exceção de um coletivo que possuía sede fixa, os demais grupos1 desenvolviam atividades esporádicas em diferentes locais da
1 Inicialmente a pesquisa buscava compreender as ações desenvolvidas especificamente por três coletivos maceioenses: Afrocaeté, Tamanca e NoisQFaiz. O Coletivo Afrocaeté é um grupo formado por pessoas de diferentes idades com o intuito de valorizar e difundir
a cultura alagoana por intermédio de ritmos musicais tradicionais como o maracatu e o afoxé. Eles se apresentam como “guerrilheiros culturais”, cuja trincheira “é a valori-
zação e reprodução dos ritmos alagoanos e do patrimônio cultural local, empunhando gonguês, alfaias, agogôs, xequerês e caixas de guerra” (Cf. Manifesto Afrocaeté no blog: coletivoafrocaeté.blogspot.com). O NoisQFaiz é um coletivo formado por quatro amigos cuja proposta é promover e difundir a cultura hip-hop, especialmente a música rap, a partir de iniciativas como festivais musicais com artistas locais e batalhas de rima (cam-peonatos onde jovens disputam o posto de melhor “rimador” diante de um público que atua como jurado). Já o Coletivo Tamanca, que teve uma breve existência, era formado
por estudantes da Universidade Federal de Alagoas com o intuito de debater questões
relacionadas às temáticas do gênero e da sexualidade por intermédio de atividades como rodas de conversa e exibição de filmes. Ao longo da pesquisa de campo resolvi direcionar meu olhar para as diferentes atividades de cunho cultural e político ocorridas na cidade, me desprendendo um pouco da atuação específica dos coletivos elencados.

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cidade, desde teatros, praças públicas, centros culturais, etc. Em virtude dessa constatação, defini que seria metodologicamente mais adequado “seguir os agentes” (Latour, 2012), ou seja, acom-panhar os(as) interlocutores(as) por intermédio da rede de inte-rações que se formava através das atividades culturais realizadas. Passei a frequentar eventos diversos realizados por coletivos ou
por pessoas que se organizavam temporariamente com o intuito de promover shows onde suas bandas se apresentariam.
É importante destacar que, usualmente, no caso das apresenta-
ções de bandas de rock independente que ocorrem na cidade,
especialmente do subgênero musical punk/hardcore2, são os próprios membros das bandas que se reúnem para promovê-las, seja fazendo campanhas nas redes sociais para angariar fundos, seja oferecendo suporte técnico para a realização do espetácu-
lo. Precisei abrir esse parêntesis para esclarecer que os eventos etnografados durante a pesquisa nem sempre eram produzidos
por coletivos culturais. Ao longo de aproximadamente 15 meses pude acompanhar 8 (oito) atividades e realizar 8 (oito) entrevis-tas. Ambas as estratégias me forneceram pistas para a compre-ensão das diferentes formas de “militância” e “atuação política” elaboradas pelos jovens com intuito de confrontar esquemas de
dominação responsáveis pela reprodução de violências diversas.

A hipótese inicial que levei a campo compreendia as chama-das novas formas de atuação política juvenil e partia de alguns elementos encontrados em pesquisas desenvolvidas no país (e fora dele) sobre esse fenômeno (Reguillo, 2000; Nunes & Weller, 2003; Mesquita, 2008; Feixa & Nilam, 2009; Mayorga, Castro & Prado, 2012). De forma semelhante a esses autores e autoras,
entendo que as experiências juvenis no mundo contemporâneo

2 Expressão utilizada para definir a sonoridade abraçada por algumas bandas punks es-tadunidenses no início dos anos 80. Diferente do punk tradicional que possui um ritmo
mais cadenciado, o hardcore tem como marca a velocidade, com canções que geralmente não ultrapassam três minutos. Rapidamente o gênero se popularizou influenciando o
gosto musical de jovens nas diversas partes do mundo.

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foram e estão sendo reconfiguradas, o que implica modificações nas formas de pensar, sentir e agir desses agentes, e como não poderia ser diferente, a atuação política – que vai das narrativas
que dão suporte às lutas passando pela maneira como os jovens se organizam coletivamente para mudar uma realidade – se mo-dificou radicalmente.
Vivemos em um contexto de intensas mudanças sociais, políticas e culturais. Certamente, não se trata de um fato novo, uma vez
que a vida social é dinâmica e as relações sociais sempre estive-ram em constante transformação. A novidade, penso eu, concor-dando com autores como Giddens, Lash e Beck (2012), compre-ende a intensidade dessas transformações. Ou seja, se há dois
séculos essas se davam de maneira mais lenta e gradual, atual-
mente nos deparamos com uma velocidade maior, e isso ocorre em virtude de alterações significativas no tempo e no espaço,
decorrentes principalmente do avanço das novas tecnologias da informação e da comunicação. Como essas mudanças impactam
diretamente no processo de construção das subjetividades, es-tamos presenciando a emergência de novas cartografias juvenis (Mendes de Almeida & Pais, 2006; Rolnik, 2007; Bittencourt, 2015 e 2020) que cada vez menos sofrem influência das tradi-cionais formas de socialização. Cito o sociólogo português Ma-chado Pais:

Perante estruturas sociais cada vez mais fluidas, os jovens
sentem a sua vida marcada por crescentes inconstâncias, flutuações descontinuidades, reversibilidades, movimentos autênticos de vaivém: saem da casa dos pais para um dia qualquer voltarem; abandonam os estudos para retomar tempos depois; encontram um emprego e em qualquer mo-mento se vêem sem ele; suas paixões são como vôos de bor-boleta, sem pouso certo [...] (Pais, 2006, p. 8).

Apesar de sabermos que não é possível generalizar essas carac-
terísticas, pois é imprescindível levarmos em consideração as

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distintas experiências sociais dos agentes, o que significa estar atento aos diferentes marcadores, tais como classe, raça, gêne-
ro, regionalidade, é inegável que atualmente os jovens gozam de maior autonomia. Quando falamos de autonomia não significa afirmar que eles estão livres dos constrangimentos estruturais,
mas, sim, que atualmente possuem uma maior margem de nego-
ciação em relação às regras socialmente prescritas, como também dispõem de um maior repertório de escolhas, o que não significa afirmar que “todas as escolhas estão abertas para todos, ou que
as pessoas tomam todas as decisões sobre as opções com pleno conhecimento da gama de alternativas possíveis” (Giddens, 2002, p. 80). Se antes o percurso dos jovens até a chamada “fase adul-
ta” compreendia quase sempre um conjunto de rituais bem es-tabelecidos, como conseguir um emprego, casar, ter filhos, hoje,
nos deparamos com uma espécie de adiamento dessa entrada no mundo adulto, e, certamente, isso possui relação com o fato
de que o jovem passa a ter mais controle sobre seus projetos de vida. Machado Pais (Ibid) utiliza uma metáfora interessante para balizar as diferentes formas de transição para a vida adulta. Ele
aponta que nas décadas posteriores ao pós-guerra essas transi-ções se assemelhavam a “viagens de estradas de ferro”, quando os jovens, dependendo das posições de classe, gênero e qualificação acadêmica, tomavam diferentes comboios com destinos previa-
mente determinados, ao passo que, atualmente, essas transições
passaram a ser mais comparadas a “viagens de automóvel”, “onde o condutor pode se valer de diferentes itinerários”. É claro que o sociólogo português está fazendo referência ao contexto euro-peu, e não é possível afirmar categoricamente que no Brasil essa
transição para a vida adulta se expressa de maneira semelhante àquela, contudo, muitas pesquisas desenvolvidas no Brasil sobre trajetórias juvenis (Novaes, 2006; Dayrell, 2007; Peixoto, 2010)
têm destacado esse maior poder de decisão por parte dos jovens, daí não ser absurdo fazermos uso dessa metáfora.Elemento significativo das experiências juvenis, a militância e o engajamento político também vêm passando por modifica-

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ções. Às tradicionais formas de ação tais como a participação em
partidos políticos e movimentos estudantis somam-se outras
caracterizadas por lutas mais setorizadas, em que se mesclam elementos estéticos e afetivos. No Brasil, tem-se falado muito de uma despolitização da juventude, argumento fácil de ser con-frontado, pois a crítica se fundamenta em uma baixa adesão dos agentes jovens às formas tradicionais de engajamento, como, por exemplo, partidos políticos. O trabalho “Juventude e a Expe-riência da Política no Contemporâneo” (2012), organizado pelas professoras Cláudia Mayorga e Lúcia Rabelo de Castro e pelo pro-fessor Marco Aurélio Prado, contraria esse discurso pessimista. Os achados confirmam que de fato há um desencantamento com
partidos políticos, porém, esse desinteresse não se estende a to-das as formas de militância e engajamento. Cada vez mais eles se
ligam a organizações com estrutura pouco hierarquizada e com um forte ativismo nas redes sociais. Outra característica impor-
tante compreende a multiplicidade de “bandeiras” e de “causas”
abraçadas, em que podemos destacar a mobilidade urbana, a
divulgação da arte como mecanismo emancipatório, educação
ambiental, engajamento em grupos de hip-hop e bandas de rock,
etc. Vale destacar que as pesquisas que compõem essa coletânea se voltam para a atuação de jovens com os mais diferentes per-fis; no que diz respeito a classe, regionalidade e visão de mundo. Foram ouvidos inúmeros agentes, de estudantes envolvidos com o Passe Livre na região Sul a jovens participantes de grupos de hip-hop na região Nordeste, passando por jovens de sindicatos
rurais a jovens que participam de coletivos diversos.

Os coletivos se apresentam como uma das mais importantes expressões dessa nova forma de agir político. Particularmente
não gosto dessa dicotomia novo versus velho, pois sugere que
não existe continuidade entre os modelos de ação, o que não é correto afirmar. Mas, entendo que existem diferenças que preci-
sam ser pontuadas em ambos os registros. Como, por exemplo, o fato de que a ação coletiva já foi mais orientada por parâme-
tros socioeconômicos e político-ideológicos, ao passo que, cada

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vez mais, ela passa a ser organizada por parâmetros est(ético)--existenciais. Entendo que o despertar do interesse dos jovens
por questões que dizem respeito especialmente ao cotidiano mediante o desenvolvimento de práticas com um forte apelo es-tético faz parte do processo de individualização social que nas últimas décadas se intensificou significativamente. Não se trata
de uma individualização no sentido de uma “racionalização da
vida”, mas, sim, de um processo decorrente de mudanças na ma-
neira como nos relacionamos com as estruturas, ou de “mudan-ças na balança nós-eu” como sugere o sociólogo Norbert Elias (1994). O estético, o emotivo, o prazeroso passam a ter um papel decisivo em nossas ações. Sobre essas novas formas de fazer po-lítica, a antropóloga mexicana Rosana Reguillo (2003) comenta: “La política en los jóvenes pasa por el deseo, la emotividad, la experiencia de un tiempo circular, el privilegio de los significan-tes sobre los significados, las prácticas arraigadas en el ámbito
local que se alimentan incesantemente de elementos de la cultu-ra globalizada” (p. 115).Algumas falas dos jovens entrevistados durante a pesquisa re-forçaram o argumento do desinteresse em relação às formas
tradicionais de engajamento e militância, especialmente aquela
desenvolvida pelos partidos políticos.

A gente tinha uma desconfiança com a militância, a gente tinha uma desilusão. Quando eu cheguei aqui nas CS, eu co-nheci o CA e o DCE, e sei lá, eram pautas assim muito aquém
das coisas que estavam acontecendo aqui. Tenho um exem-
plo para dar. Ano passado aconteceu aquele negócio na vila dos pescadores. Pronto! Estava acontecendo já faz um tem-po. E a galera estava panfletando sobre a causa da palestina. E eu pensei: véi, o negócio aqui acontecendo e as pessoas panfletando sobre coisas que estão acontecendo em outro país. (Membro do Coletivo Tamanca, 22 anos). Nesse comentário fica patente a crítica a um modelo de atuação

política que privilegia o universal em detrimento do particular.

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Sobre esse imaginário de resistência universalizante, Freire Fi-lho (2007) comenta que ele está ligado a “fermentação de uto-pias – especulação, fantasias e exercícios de imaginação históri-ca que vislumbram uma radical alteridade sistêmica” (p. 16), daí
a concepção de que existe apenas um grande adversário a ser
derrotado, nesse caso, o capitalismo. Além da crítica às pautas
desconectadas dos problemas locais, o jovem também se diz in-
comodado com a postura “reativa” e “homogênea” da militância
tradicional3:

Só que a minha conversa não é aquela violenta. Tipo: foda--se! Você está errado e querer enfiar goela abaixo o que eu penso e acredito. Eu tento mostrar as contradições daquilo, tendo uma conversa bem pacífica. Isso é uma coisa que me
incomoda nesses movimentos de militância, esse discurso violento, intolerante. E continua: Eu percebo esse engaja-
mento político tradicional com um pensamento muito ho-
mogêneo, não sabe lidar com as causas, sabe? Um tipo de pensamento que não agrega a diferença. Eu vejo o Tamanca como um grupo diferente dos outros (…).É inegável que as críticas dirigidas à defesa do universalismo e à postura “pouco dialógica” da militância tradicional são forte-

mente marcadas por uma valorização, especialmente por parte dos jovens, de experiências marcadamente performativas e que
se voltam cada vez mais para o cotidiano. Reivindica-se uma atuação política que não somente esteja atrelada às diferentes vivências dos agentes, mas também formas de resistências que além de eficazes possam ser prazerosas. A participação em ban-
das musicais e coletivos culturais permitem que esses jovens
possam unir dimensões da vida social que por muito tempo foram percebidas como opositoras, tais como lazer e trabalho,
compromisso e diversão, estética e política. Ao ser questionada
a respeito da relação entre compromisso e diversão, uma jovem

3 Estou definindo como militância tradicional as estratégias de atuação desenvolvidas
por atores políticos como partidos, centrais sindicais e movimentos sociais.

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entrevistada, participante de uma banda punk formada exclusi-vamente por garotas na cidade de Maceió, discorre:
Para mim o feminismo chegou mais pela música, assim. Foi mais pela raiva que eu vi nas músicas, de grupos punks. Foi
aí que eu conheci o Riot Girl4 , primeiro eu conheci esse ter-mo, garota rebelde, e depois desse termo é que eu fui ligar o feminismo na música, junto com o feminismo de outras áreas, nas marchas. Um lance bem forte para mim também foi a marcha das vadias, que foi em 2012, eu comecei a pes-
quisar algumas coisas e ler. A marcha das vadias me ajudou nas ideias e no ativismo também. A minha principal forma de ação dentro do feminismo é mais pela música mesmo. A música ocupa um papel significativo na vida dos jovens oci-

dentais pelo menos desde a segunda metade do século XX e po-demos afirmar que a importância atribuída à música entre esses
agentes ganhou um maior dimensionamento em nosso atual contexto. Podemos atribuir esse fato à gigantesca circulação de bens simbólicos (e materiais) proporcionada inicialmente
pela televisão e potencializada pelo surgimento da internet e a consolidação de estilos de vida. A música não é simplesmente
a trilha sonora do cotidiano de jovens, ela, cada vez mais, vem definindo as experiências de juventude e se misturando a as-
pectos da existência que são centrais na constituição das iden-tidades dos agentes. Sobre essa questão, Reguillo enfatiza: “La música representa más que una tonada de fondo; se trata de
un tejido complejo al que vinculan sus percepciones políticas,
amorosas, sexuales, sociales” (2000b, p. 44). A entrevistada, no

4 O Riot Girl foi um movimento político e cultural que surgiu no início dos anos 1990 nos EUA com o intuito de confrontar o machismo presente na cena rock, especialmente na cena punk rock. O termo apareceu pela primeira vez em um fanzine feminista intitulado
Riot Grrrl produzido por Allison Wolfe, na época membra de um grupo punk chamado Bratmobile. Os textos apresentados no fanzine traziam duras críticas à escassa partici-
pação de garotas em bandas e apontava a disseminada visão preconceituosa de que “mu-
lheres não sabem tocar tão bem quanto os homens” como uma das grandes responsáveis pela baixa participação feminina nesses grupos.

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comentário acima, expõe que se interessou pelo feminismo por intermédio da música, especialmente das bandas vinculadas à
vertente Riot Girl, e esse argumento diz muito sobre a impor-
tância política que ela assume no cotidiano dos jovens. Hall e Jefferson (1976), na famosa obra “Resistance Through Rituals: Youth subcultures in Post-War Britain”, observaram nas práticas dos grupos juvenis ingleses dos anos 1970, especialmente punks e skinheads, estratégias de reação às chamadas formas culturais
dominantes, responsáveis pela transmissão dos valores burgue-
ses. Sob a perspectiva dos autores, esses grupos expressavam
um descontentamento que possuía relação com a condição de classe vivenciada por eles. Em outras palavras, seria uma res-
posta estilizada das classes trabalhadoras construída através da música, das vestimentas e das atitudes contestadoras do status
quo
vigente. Se em um primeiro momento todas as atenções se
voltavam para as produções culturais que espelhavam posições de classe, atualmente nos deparamos com manifestações que
agregam, além dessa condição, marcadores como raça, gênero/
sexualidade e etnia.

É importante destacar que não há um consenso entre os jovens,
mesmo entre aqueles que vivem em Maceió, no que diz respeito às “melhores estratégias” de confrontação desses esquemas de dominação. Jovens que foram socializados pela cultura hip-hop,
por exemplo, tendem a reproduzir de maneira mais incisiva a
dicotomia entre cultura e política, como podemos ver neste tre-
cho extraído de uma conversa com um jovem pertencente a uma
posse5 alagoana:

Quando eu conheci o hip-hop eu conheci a militância e eu
percebi que poderia ir bem mais além da cultura hip-hop,
porque ela tem uma certa limitação, limitação do ponto de

5 Grupo formado por pessoas ligadas à cultura hip-hop pertencentes a um bairro, estado ou região, e que trabalham com intuito de difundir os ideais dessa cultura, como também
promover a conscientização política e a auto-estima da juventude.

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vista da discussão, do ponto de vista de atuação também,
porque ela é mais uma coisa cultural, ela não é tanto, políti-ca em si, em sua essência. Quando a gente tenta trazer a dis-
cussão política para dentro do hip-hop, por exemplo, uma campanha política pelo fim do genocídio da juventude...Não
há uma unanimidade dentro da cultura hip-hop que essas
bandeiras elas têm de ser abraçadas. Porque, acredito que a maioria das pessoas que fazem parte da cultura hip-hop, de alguma maneira, dança break, faz um rap, grafita ou é DJ, elas fazem aquilo ali simplesmente porque gostam, por-
que sentem prazer e não por conta do discurso, por conta
da luta da juventude, da luta por melhoria na qualidade de vida dos moradores da periferia. É interessante perceber que na fala do jovem há uma divisão cla-

ra entre cultura e política. Para ele o hip-hop é um movimento cultural porque a maioria das pessoas que dele faz parte não se
engaja politicamente em ações concretas que se voltem para a
resolução dos problemas da coletividade. A busca pela experiên-cia estética, pela fruição, é percebida como a principal motivação dos jovens. O discurso apresentado diz muito sobre a formação
política de meu interlocutor, que desde os 15 anos de idade mi-
lita no movimento estudantil e à época da entrevista participava
de uma organização política de esquerda chamada “Juventude
Revolução6”. Nas palavras de Abramo (1997) “os grupos juvenis que atuam na esfera do comportamento e da cultura não têm
sido considerados como possíveis interlocutores pelos atores políticos, salvo raras exceções, como o movimento negro” (p. 27-28). A autora comenta que organizações como partidos, sindica-tos, centrais sindicais e movimentos sociais tendem a desconfiar de manifestações políticas que confrontem as tradicionais for-
mas de atuação, percebendo essas como sintomas de uma des-
politização juvenil decorrente do processo de individualização

6 De acordo com a descrição extraída do site www.juventuderevolução.com.br, a Juven-
tude Revolução “é uma organização política de jovens que luta contra a exploração, a
opressão e a guerra e pelo socialismo no Brasil e no mundo”. São aderentes da Interna-
cional Revolucionária da Juventude (IRJ) e lutam pelo direito da juventude ter um futuro
de verdade sem guerras, drogas e violência.

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como tendência social. A crítica da autora se volta de maneira
mais incisiva para uma lógica adultocêntrica expressada por es-ses agentes que desqualificam tais ações como inconsequentes
e espontaneístas.

Apesar de o entrevistado não reproduzir o discurso dos atores
políticos no que diz respeito à despolitização das práticas juve-nis, é perceptível a influência desses no que diz respeito à pro-
dução de uma visão cindida e hierarquizada da realidade que
contrapõe o simbólico ao material. Mesmo não sendo objeto de
análise neste artigo, é importante destacar que, para entender as diferentes narrativas apresentadas pelos jovens sobre enga-jamento e militância, é fundamental conhecer as diferentes po-
sições sociais ocupadas por eles. Ou seja, mais do que buscar respostas nos processos de formação política, é imprescindível conhecermos as diferentes trajetórias dos agentes. O processo
responsável pela construção de discursos e ações políticas que valorizam aspectos performativos e estéticos não se expressa de
maneira homogênea sobre todos os jovens, daí não ser possível afirmar que houve uma mudança radical nas estratégias de luta
política encabeçada por esses. Na sequência, apresentarei dados extraídos de incursões etno-gráficas realizadas em dois eventos organizados por coletivos
culturais e organizações políticas na cidade de Maceió, selecio-nei duas atividades que ilustram de maneira significativa as tá-
ticas7 coletivas construídas por jovens com intuito de dar visibi-lidade às suas demandas, são eles: o Slam das Minas e o Festival da Juventude Negra.
7 Utilizo a noção de tática desenvolvida por Michel de Certeau (1998) para definir as
ações de grupos que tensionam as estruturas de poder sem precisarem utilizar o recurso do confronto direto com o adversário. A tática é “míope” e “silenciosa”, ela é desenvolvida no terreno adversário e se vale das brechas e das falhas que as conjunturas particulares vão abrindo. É diferente da “estratégia”, que é o lugar do poder estabelecido e cujo fun-cionamento se dá a partir de um cálculo das relações de força.

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Slam das minas: mobilização de mulheres jovens através
da poesia ritmada

O evento em questão ocorreu no dia 8 de março de 2018, dia em
que se celebra o dia internacional da mulher. Foi produzido por
um coletivo de mulheres e teve majoritariamente mulheres jo-
vens como protagonistas. O Slam, também conhecido como “ba-talha de versos”, é um fenômeno que surgiu em Chicago, nos Es-tados Unidos, na década de 1980, como manifestação da cultura
hip-hop, e consiste em uma espécie de disputa pelos melhores versos apresentados, em que se avalia, além do conteúdo, ele-
mentos como métrica, lírica, impostação vocal, coerência com o tema proposto e performance do(a) slammer. No Brasil, as pri-meiras manifestações ocorreram no início dos anos 2000, sendo
o primeiro organizado por um coletivo hip-hop paulistano cha-mado Núcleo Bartolomeu de Depoimentos, recebendo o nome de ZAP (Zona Autônoma da Palavra). Desde então, os Slams foram se espalhando pelo país e hoje já existem diversas com-
petições regionais. Para celebrar o dia internacional da mulher, ou melhor, para refletir sobre a data, o Ateliê Ambrosina, ONG
alagoana que trabalha na promoção dos direitos humanos das
mulheres, promoveu no Sesc/Centro o evento “Slam das Minas”. As apresentações ocorreram no terraço do SESC que funciona
como uma espécie de teatro a céu aberto, atraindo um grande público de mulheres jovens. Mais do que uma “disputa” por um prêmio (a vencedora representaria Maceió em uma competição regional), o evento tinha como objetivo primordial promover uma integração entre mulheres e problematizar as dificuldades enfrentadas por essas no cotidiano, enfatizando a pluralidade de experiências da condição feminina a partir de marcadores
como classe, raça, gênero e sexualidade. O evento teve uma in-
tensa participação de mulheres jovens e negras, seja na condi-ção de protagonistas da “disputa”, seja enquanto público. A todo
instante as apresentadoras comentavam sobre a importância de atividades como essas, destacando as dificuldades da inserção feminina nesses espaços decorrentes de uma “monopolização”

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masculina. O Slam das Minas se apresenta como uma alterna-tiva às “batalhas de rima”, eventos que ocorrem em maior fre-quência na cidade de Maceió e cujo público é majoritariamente formado por rapazes8. De forma semelhante ao Slam, a batalha de rimas é uma disputa de MC’s (cantore(a)s de rap) na qual vence o(a) participante que o público considera ter as melhores
rimas. Algumas das críticas elaboradas pelas garotas envolvidas com a cultura hip-hop local compreendem a dificuldade delas se inserirem em um espaço fortemente masculinizado9. Parte da performance masculina encenada nas batalhas de rima possui apelo falocêntrico com constantes referências a uma simbologia que atribui à mulher um lugar de inferioridade, algo que é insis-
tentemente destacado pelas slammers. Na literatura sociológica
e antropológica há trabalhos que problematizam essa baixa inci-
dência de garotas nas chamadas subculturas juvenis, seja porque de fato os homens sempre gozaram de maior privilégio em rela-ção às manifestações vivenciadas no espaço público, seja pelo desinteresse de pesquisadores(as) – muitos deles homens – em
problematizar a participação de mulheres nesses espaços. A in-visibilidade feminina nesses agrupamentos jovens foi teorizada
inicialmente em um texto clássico dos estudos culturais chama-do “Girls and Subcultures”, de Angela McRobie e Jenny Gerber, de 197510. No artigo, as pesquisadoras afirmam que o fato de a
mídia ter privilegiado os aspectos violentos das culturas juvenis,

8 Apesar de não ser um evento restrito à participação masculina, as batalhas que tive a
oportunidade de acompanhar durante a pesquisa contaram exclusivamente com a par-
ticipação de homens jovens.9 Do ponto de vista das Ciências Sociais, não existe algo que seja essencialmente mas-
culino, uma vez que a ideia de masculinidade ocidental é relacionada a um conjunto de comportamentos apreendidos por seres humanos, ou seja, trata-se de uma formação
social, histórica e cultural, produzida numa relação direta com a noção apreendida de feminilidade (Kimmel, 1998; Vale de Almeida, 1995). Quando os(as) interlocutores(as) afirmam que um espaço é “masculinizado”, busca-se transmitir uma ideia de que as pes-soas que ocupam esse lugar tendem a reproduzir discursos que reforçam a desigualdade
entre os gêneros.10 Esse texto faz parte da coletânea “Resistance Through Rituals - Youth Subcultures in Post-War Britain” (1976), organizada por Stuart Hall e Tony Jefferson.

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fez com que as mulheres se tornassem uma categoria social pou-co celebrada pelos teóricos e críticos radicais. No Brasil, apesar de assistirmos nas últimas três décadas um aumento considerá-
vel de investigações sobre a atuação de mulheres nesses grupos,
ainda temos poucos trabalhos nos campos da Sociologia e da An-tropologia, nos quais destacamos as pesquisas de Magro (2003), Weller (2005), Melo (2008), Camargo (2010) e Facchini (2011).Esse descontentamento não é compartilhado somente por pesquisadores(as). Garotas engajadas em estilos de vida jovem
como o hip-hop ou o punk/hardcore também têm se posiciona-
do constantemente em relação aos obstáculos que elas precisam enfrentar para garantir representatividade na cena. Numa roda
de conversa dentro da programação do evento Abril Hip-Hop,
que aconteceu em Maceió no ano de 2018, pude ouvir o seguinte relato:

Eu gosto, eu gosto muito de estar aqui, mas eu estava ques-tionando o PH (participante da roda de conversa) na hora
que estava voltando. Mano, porque toda vez que tem uma
troca de ideia ou alguma coisa relacionada ao hip-hop, por que só eu de mulher, pô? Eu estou sempre no meio dos cue-cas, eu queria que tivesse outras minas aqui, pô, para falar
de hip-hop também!

Foi inegável o constrangimento dos participantes da roda de conversa, mas, o público presente, composto em sua maioria por homens, demonstrou concordar com o discurso proferido pela
jovem, que também não poupou críticas a uma certa cumplicida-
de masculina presente na cena hip-hop maceioense.

Existe a diferença entre o elemento e o hip-hop, tá ligado? Porque tem gente que só faz rap, o cara não é do hip-hop. Aí ele: “Ah, eu sou do hip-hop”. O quê? é hip-hop? Aí você vai
ouvir o som do cara, o cara “comeu” trinta mulheres em um dia só, o cara estava com… que não sei o quê, não sei o quê,

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o cara nunca pegou numa espingarda de parquinho, velho. O cara toca o terror nas músicas, pô… esse é o hip-hop que infelizmente é visto. Eu quero trinta mulheres para me ban-
car, eu sou gostosão. No trecho, ela faz duras críticas a um rapper alagoano que pos-sui letras de música nas quais as mulheres são percebidas como objetos sexuais e defende que é preciso saber separar o hip-hop

dos seus elementos, ou seja, na concepção da jovem nem todas as pessoas que se dizem “rappers” ou “grafiteiros” fazem par-
te do hip-hop. Participar de tal cultura, sugeriria, dentre outras
coisas, uma compreensão mais abrangente da realidade social a qual se encontra inserido, o que significa, dentre outras coisas, ter um olhar crítico sobre as diferentes formas de desigualdade que a população pobre e periférica vivencia. Desse modo, ha-
veria uma inconsistência entre se assumir parte do hip-hop e
escrever letras machistas. Durante o evento Slam das Minas, a mesma jovem, que na ocasião fora convidada pelo coletivo Ateliê
Ambrosina para atuar como “mestra de cerimônia”, conversan-
do com a plateia e apresentando as “minas” que naquela noite
participariam do Slam, também fez duras críticas ao machismo que se expressa nas situações cotidianas. Durante uma perfor-mance, narrou o caso de uma garota que fora impedida de fazer
uma pixação11 por um homem – que também era pixador. Com uma lata de spray na mão, ela falou: “Por que você não me deixa pixar? Por acaso seu spray é maior do que o meu?”, colocando
o objeto no meio das pernas, simulando um pênis, ironizando a defesa do falocentrismo como argumento de superioridade masculina. Ao final da performance, revelou o nome da jovem que sofrera tal sanção e que, para surpresa das pessoas presen-tes, se encontrava na plateia. Em um lençol branco estendido no muro, foi pixado “A revolução será feminista!”, ação que gerou
gritos e aplausos das participantes.

11 Aqui manterei a grafia piXação com “X”, tal como é utilizado pelos adeptos dessa prá-tica em diferentes partes do país. Ver: Pereira, 2018.

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A performance - Registro do Slam das Minas (08/03/2018)

Foto: João Bittencourt
Houve um pequeno momento de tensão durante a intervenção artística. O funcionário do SESC que estava de plantão naquela noite ficou incomodado e pediu que a pixação não fosse reali-
zada, pois temia que a tinta sujasse o muro, indicando que as normas do estabelecimento fossem respeitadas. O público não gostou da postura do funcionário e foi ensaiado um coro de “ma-chista! machista!”. Esse fez questão de se retratar, informando
que na ocasião ele “não estava representando um gênero, mas, sim, uma pessoa jurídica”. Encerrado esse episódio, a mestra de cerimônias informou que a batalha de poesias entre garotas
começaria, porém, antes explicou detalhadamente as regras do
jogo, dando atenção especial à atribuição de notas para as parti-cipantes. O júri, que também era composto exclusivamente por mulheres, atribuiria seu conceito em folhas brancas que foram
previamente distribuídas pela comissão organizadora. Também foi lembrado que não se tratava de uma competição visando construir diferenciação entre as mulheres, e que a atividade ti-

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nha sentido de fortalecimento e sororidade12. Ao final das ins-truções, um último aviso: o grito de guerra naquela noite seria
“Mulheres no topo!”.

As participantes do slam eram em sua maioria mulheres jovens
que, provavelmente,13 estavam situadas numa faixa etária de
20 a 30 anos, mas também havia mulheres com mais de 50 que apresentaram suas poesias. O conteúdo dos discursos variava, mas todos tinham como foco a condição feminina. Algumas re-
produziam estereótipos como “leveza”, “doçura”, “cuidado”, ou-tras versavam sobre a liberdade feminina, especialmente sobre
as experiências das mulheres negras, que eram maioria naquela noite. O público reagia às apresentações com gritos e aplausos
e em nenhum momento houve vaias, mesmo diante dos discur-
sos “essencialistas”. Durante o intervalo, a Mestra de Cerimônia
mantinha a plateia animada, seja contando piadas, cobrando uma participação mais inflamada, seja discursando sobre as-
suntos sérios, como, por exemplo, o machismo na cena hip-hop local. Em certo momento destacou as diferenças entre o Slam das Minas e a Batalha de Rimas, evento que tem participação
majoritária de garotos. “Se um cara quer dizer que o outro não
tem uma boa rima, ele chama o outro de “mulherzinha”, “viadi-
nho”, ou tenta menosprezar o adversário dizendo que “pegou sua mina” (Trecho extraído do diário de campo - 08/03/2018). De maneira incisiva falou ao microfone que as batalhas eram machistas, misóginas e homofóbicas, sendo fortemente aplaudi-da pelo público presente. Durante as apresentações também ha-via uma forte comunicação entre as slammers e a plateia. Gritos
e aplausos surgiam sempre que aparecia uma crítica mais con-tundente ao machismo ou quando se exaltava a força feminina. O evento Slam das Minas foi extremamente importante para o
12 Trata-se de um conceito bastante utilizado por feministas e compreende uma aliança
entre as mulheres baseada em valores como empatia e companheirismo.
13 Utilizo a expressão “provavelmente” porque na ocasião não apliquei um questionário entre as participantes visando a obtenção de uma faixa etária.

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desenvolvimento de uma análise mais abrangente sobre os sen-tidos da resistência elaborados pela juventude alagoana, pois foi
possível perceber algumas táticas construídas pelas mulheres jovens para confrontar lógicas de dominação de gênero e raça
que visam subordiná-las e invisibilizá-las. A seguir apresento
outra importante atividade ocorrida na cidade de Maceió e que
nos ajuda a entender a pluralidade das ações juvenis em suas conexões com a música, a cultura e a política: trata-se do evento Festival da Juventude Negra.
O Festival da Juventude Negra e a celebração da cultura
periféricaNão faz muito tempo que a periferia deixou de ser percebida nos estudos sociológicos e antropológicos como uma simples forma-ção espacial construída em oposição a uma ideia de centro. No Brasil, os estudos sobre as dinâmicas urbanas e a produção social dos espaços se iniciaram ainda na década de 1970, fortemente influenciados pela dicotomia centro/periferia, como assinalam os trabalhos de Frúgoli Jr. (2005) e Magnani (2005). A aderên-
cia de muitos pesquisadores à teoria marxista ao longo dos anos 1970 foi um elemento decisivo para uma leitura crítica da cidade
que era percebida como uma variável dependente das determi-nações econômicas e políticas (Frugoli Jr., Ibid). Lúcio Kowarick (1979), um dos grandes representantes dessa perspectiva, de-fende no livro “A Espoliação Urbana”, que a periferia resulta de
um processo que combina acumulação econômica e especulação
imobiliária. Desse modo, essa se constituiria como “o aglome-
rado distante do centro onde passa a residir a crescente mão--de-obra necessária para girar a maquinaria econômica” (1979, p.31). Desde meados dos anos 1990 temos assistido a processos
de apropriação e reelaboração do conceito, seja por parte dos pesquisadores(as) que se dedicam aos estudos dos fenômenos
urbanos, seja por parte dos próprios agentes que habitam essa territorialidade. Se por muito tempo a periferia fora percebida

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como uma espacialidade marcada exclusivamente pela miséria e
pela violência, com a ascensão de gêneros musicais como rap e o funk no final dos anos 1980, começamos a assistir à lapidação de uma concepção de mundo que posteriormente ficaria conhecida como “cultura periférica”. Gradativamente, conceitos como “periferia” e “periférico/a” pas-
saram a ganhar conotações positivas, se distanciando de percep-ções negativistas, o que não significa dizer que pesquisadores(as)
e habitantes dessas especialidades passaram a relativizar os
processos de segregação espacial e desigualdade socioeconô-mica responsáveis por essa formação, mas, sim, que esses(as) passaram a olhar de forma pormenorizada o cotidiano e as per-cepções elaboradas por suas populações. Quando falamos de “cultura periférica” é quase impossível não fazer referência ao hip-hop, manifestação cultural e política que se tornou símbolo de resistência para muitos jovens moradores de favelas, morros
e grotas espalhados pelo país. Os agentes engajados no hip-hop tornaram-se uma espécie de porta-vozes da população perifé-
rica, sendo pioneiros na produção de uma narrativa estilizada sobre a periferia. Nascimento (2010) destaca que o movimen-
to de estetização do espaço e do cotidiano implementado pelos indivíduos e grupos que atuam no hip-hop, em suas diferentes expressividades artísticas (música, literatura e artes plásticas), produziu narrativas que, se por um lado, reforçam uma percep-
ção homogeneizante sobre as práticas e problemas sociais vi-venciados na periferia, por outro, alarga a percepção sobre as experiências de “ser periférico(a)”, mostrando que, além do en-frentamento das adversidades cotidianas, há também compar-
tilhamento de um ethos e formação de redes de sociabilidades.Apesar do hip-hop e o funk figurarem como expressões artís-
ticas privilegiadas do que comumente é designado de cultura periférica, elas não são as únicas. São muitas as manifestações,
especialmente se pensarmos na diversidade existente nas pe-riferias brasileiras. Foi o que pude observar no Festival da Ju-

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ventude Negra que aconteceu em Maceió, e que fora organizado a partir de uma parceria entre o INEG/AL (Instituto Negro de Alagoas), a CIA Hip-Hop e a Associação Cultural Sorridente. O
evento que havia sido cancelado duas vezes em decorrência de
problemas técnicos e econômicos que inviabilizaram a sua re-alização, finalmente ocorreu no dia 17 de março de 2018. O lo-cal escolhido foi a praça Padre Cícero (conhecida popularmente como Praça da Formiga), localizada no bairro Benedito Bentes,
o maior e mais populoso bairro da capital alagoana, de acordo com o último censo do IBGE realizado no ano de 2010. O bairro, que possui dezenas de conjuntos habitacionais, também figura
como o mais violento da cidade, de acordo com dados da Secre-taria de Segurança Pública do Estado de Alagoas14. Ao lado da
imagem negativa de “bairro violento”, vemos surgir uma outra que confronta essa percepção: a de “polo efervescente da cul-tura alagoana”. Benedito Bentes é conhecido também por suas expressividades artísticas, que reúne grupos de rap, bandas de rock, grupos de pagode, quadrilhas juninas, grupos de folguedo, entre outros, e eu tive a oportunidade de conferir alguns desses
artistas em ação no evento que agora passo a descrever.Cheguei no bairro por volta das 17h40, e de longe já avistara
uma pequena aglomeração em um canto da praça, de onde tam-
bém era possível ouvir um som mecânico tocando rap. Desci do
carro e apressei os passos, pois imaginava que já tinha perdido
muita coisa do evento, uma vez que ele estava marcado para
começar às 15 horas. Ao chegar no local me deparo com alguns
rostos conhecidos, cumprimento-os de longe e me dirijo para
próximo do palco, onde uma banda se prepara para se apre-sentar. Enquanto eles afinavam seus instrumentos musicais re-
solvi caminhar um pouco pelo entorno da praça, e pude notar que, além do público que se concentrava nas proximidades do palco, havia outras pessoas que não estavam “participando efe-tivamente” do evento: jovens skatistas que faziam manobras
14 Para mais informações ver: http://seguranca.al.gov.br/estatisticas/

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na pista de skate ao lado, adultos e idosos que se exercitavam
caminhando e correndo em volta da praça, crianças acompa-
nhadas de seus pais que brincavam correndo de um lado para outro, o que dava pistas sobre os diferentes usos e finalidades atribuídos ao espaço. A banda começa a tocar e o público se
aproxima ainda mais do pequeno palco para interagir com os músicos. A sonoridade era uma mistura de reggae, rock e rap, com letras cantadas em português, cujo conteúdo trazia uma forte crítica social. Muitos skatistas que antes apenas obser-vavam de longe, se juntaram ao público que se espremia na frente do palco para dançar ao som da banda, logo viu-se as
primeiras rodas de “pogo”15. O vocalista, em alguns momentos, descia do pequeno palco para participar da performance com os demais, instigando os presentes a intensificarem o ritmo da
dança. Alguns caiam quando se chocavam de maneira mais in-
tensa, mas logo eram levantados pelos outros participantes. Ao final da apresentação, ele agradeceu à organização do festival e ao público, e reforçou a importância de eventos que priorizam a música produzida na periferia. Nesse momento descobri que a banda se chamava Babylon Fia e que se tratava da segunda atração do festival. Findada a apresentação, o mestre de ceri-
mônias, militante do movimento negro e membro do coletivo Cia Hip-Hop, pegou o microfone para discursar. Comentou so-bre as dificuldades de fazer o evento em decorrência da falta de apoio institucional e agradeceu ao público participante que ti-
nha ido prestigiar os artistas e celebrar a produção cultural da periferia. Falou que o festival congregava as diversas expres-sividades da cultura negra e periférica, que não se limitava ao rap ou ao reggae. E na sequência anunciou a próxima atração da noite, um grupo de swingueira16 chamado Swing Love.
15 Pogo é uma dança presente nos shows de música punk e que se caracteriza por um
intenso contato corporal entre os participantes.16 É uma variante do gênero musical pagode surgido na cidade de Salvador, Bahia. É
também conhecido como “pagodão”, “pagode baiano” ou “quebradeira”.

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Estava curioso para ver como o grupo seria recebido pelo pú-
blico, uma vez que havia muitos estudantes universitários, fãs de rap e de rock. Os dançarinos, dois rapazes e uma garo-
ta, se posicionaram no centro da quadra esportiva, e rapida-
mente uma pequena multidão se aglomerou em volta do trio. Quando a música começou a tocar e os dançarinos iniciaram a performance viu-se grande empolgação do público em volta, que cantava as músicas e tentava acompanhar a coreografia. As músicas executadas eram em sua maioria “swingueira” e “bregafunk”17, ritmos populares nas periferias brasileiras, mas que nos últimos anos passaram a ser bastante consumi-
dos pela população jovem das camadas médias. A dança pos-
suía movimentos sincronizados em que os quadris e nádegas
ganhavam destaque, especialmente nos movimentos repeti-dos pela dançarina. Em um determinado momento eles resol-veram interagir com o público, convidando algumas pessoas para participar da performance. Inicialmente, foram trazidos
para o centro da quadra aproximadamente uns sete volun-tários do sexo masculino: homens adultos, jovens e algumas crianças, que foram colocados de joelho. Quando a música
teve início, a dançarina que já estava bem próxima dos par-
ticipantes, levava o quadril próximo ao rosto deles, promo-vendo euforia no público. Em seguida, foram as mulheres que ficaram de joelho para que os dançarinos e os convidados re-produzissem a performance, mas apenas duas se voluntaria-ram a participar. De forma semelhante, eles levavam o quadril
próximo ao rosto das garotas. Algumas jovens que assistiam a apresentação ficaram incomodadas com o que viram. Cheguei
a ouvir comentários em “tom de reprovação”, tanto pela par-
ticipação das crianças como pelo papel atribuído pelas mu-lheres na performance. Apesar do visível descontentamento
17 Subgênero do funk carioca surgido na cidade de Recife no ano de 2011 a partir da junção do funk com o eletrobrega, ritmo bastante difundido em Belém do Pará. É im-portante destacar que apesar da influência direta do gênero musical paraense, existem especificidades que precisam ser apontadas, como, por exemplo, o conceito de brega, que possui distintas conotações nas diferentes cidades.

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expresso nos rostos e nas palavras de algumas mulheres, não houve nenhuma reclamação formal ou algum esclarecimento por parte do mestre de cerimônia. Uma reflexão interessante
que pode ser realizada sobre esse episódio diz respeito aos diferentes regimes de moralidade acionados pelos presen-
tes, em que muitos deles eram estudantes universitários e/ou participantes de movimentos sociais (feminista, negros e negras, LGBTQIA+, etc.). O incômodo foi externalizado justa-
mente por mulheres jovens que possuíam ligação com algum desses movimentos. Não consegui perceber um mal-estar
generalizado, pelo contrário, algumas garotas davam risa-das e aplaudiam a performance. Independente do julgamen-to que pode ser feito em torno do envolvimento de crianças
em uma dança com “apelo erótico”, é interessante notar como as percepções sobre o que é moralmente aceitável (ou não) possuem diferentes nuanças em que se misturam condição socioeconômica, escolarização, educação familiar, influência
religiosa, posicionamento político, etc.

Findada a apresentação do grupo de dança, chegou a hora da ra-pper Arielly Oliveira subir ao pequeno palco montado na praça.
A jovem artista é um nome de destaque na cena hip-hop alago-ana e possui um público fiel, especialmente de garotas. Arielly é uma jovem negra que faz de sua música um veículo de denún-cia contra diversas formas de violência, especialmente aquela
praticada cotidianamente contra as mulheres. A rapper parecia estar bastante emocionada naquela noite, pois faziam apenas dois dias da morte de Marielle Franco, vereadora do PSOL e mi-litante dos Direitos Humanos que fora assassinada na cidade do
Rio de Janeiro. Ao término da primeira canção, ela agradeceu os
presentes e recitou uma poesia em homenagem a Marielle, na
qual comentou sobre as características que a aproximavam da jovem vereadora, ambas mulheres, negras e periféricas. Arielly
expunha que se sentia ligada a Marielle e que mulheres negras em todo país “também foram mortas” naquela noite. Foi um mo-mento bastante emocionante. Era possível ver nos rostos de al-

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gumas pessoas as marcas da tristeza. Ao final da poesia, gritou no microfone “Marielle, presente!”, sendo ovacionada pelo públi-co. Logo em seguida apresentou a canção “Ela”, cuja letra expõe os obstáculos enfrentados pelas mulheres em um contexto so-
cial marcado pelo machismo e pela misoginia.

Mataram seus desejos
Tiraram seus direitosNunca deram respeito
O mundo é desse jeito
Procura a saída
Ter paz em sua vidaNão quer mais ser usadaNão mais, ser estuprada.

As músicas da rapper abordam as diferentes facetas da vida na periferia de Maceió, que não difere muito da realidade vivenciada em outras periferias brasileiras. Canta sobre as mazelas enfren-
tadas cotidianamente pela população, mas sem perder de vista
as resistências, a solidariedade, o senso de comunidade presente nesse espaço. As experiências femininas ganham destaque no con-junto das composições, especialmente a de mulheres negras; suas dores e suas pequenas vitórias no dia a dia. O público que cercava o pequeno palco ouvia as músicas com bastante atenção, alguns fe-
chavam os olhos enquanto cantavam, outros balançavam a cabeça em sinal de afirmação concordando com os discursos proferidos pela artista. Quando nos deparamos com essas demonstrações por parte do público conseguimos perceber a força mobilizadora da música, que ao mesmo tempo que embala os corpos se apresenta
como um canal privilegiado para a transmissão de ideias. Em determinado momento da apresentação, percebi que algu-
mas pessoas olhavam a todo instante para o outro lado da praça,
como se algo as preocupasse. Foi então que avistei alguns poli-ciais se dirigindo lentamente para o local do show e algumas via-
turas estacionadas com as luzes apagadas. Apesar da apreensão

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visível nos rostos dos presentes, os agentes da lei ficaram ape-nas observando de longe e o show transcorreu normalmente. O Festival da Juventude Negra, além de uma oportunidade de la-zer para os jovens que vivem no bairro do Benedito Bentes, foi também um momento de reflexão e celebração das manifestações da cultura negra e periférica. Eventos dessa natureza reafirmam a tese desenvolvida por Jacques Rancière (2005) de que políti-ca e estética são elementos indissociáveis. Nas últimas décadas temos assistido a mudanças consideráveis nas formas como os
grupos se organizam politicamente, como também nos discursos que por muito tempo orientaram essas ações na esfera pública, e
umas das chaves explicativas está no cotidiano enquanto tempo
e espaço privilegiado de expressão das condições de existência. Rancière (1996) não rejeita por completo a concepção de políti-
ca que se apoia na representação e na racionalidade argumenta-
tiva dos agentes, porém, indica que essa não pode prescindir de
uma economia estética que tensiona constantemente as normas e os lugares da representação. O filósofo francês aposta em uma
“poética da comunicação”, produzida por corpos que se deslocam
dos lugares que lhes eram designados e que tensionam constan-temente as normas da representação, fazendo emergir novas lin-guagens que redefinem a experiência de comunidade. Apesar de
o evento ter sido organizado por pessoas ligadas aos movimentos sociais, especialmente o movimento negro, não se pode afirmar
que a maioria dos espectadores compartilhava do mesmo enga-
jamento. Muitos estavam no local por se tratar de uma possibili-
dade de lazer concreta, uma oportunidade para apreciar atrações
artísticas ou para simplesmente encontrar os amigos. Contudo, mesmo diante das diferenças, existia uma “partilha do sensível”18 (Rancière, 2009) que conectava os presentes transformando-os
em uma comunidade política, mas não com uma pretensão identi-

18 Rancière define como partilha do sensível “o sistema de evidências sensíveis que re-vela, ao mesmo tempo, a existência de um comum e dos recortes que nele definem luga-res e partes perspectivas” (2009, p. 15).

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tária. A política, de forma semelhante à arte, se funda em um mun-
do sensível, a partir de um encontro discordante de percepções individuais, logo, é possível afirmar que, mesmo não coadunando
com os discursos e práticas acionadas, os presentes estavam liga-dos por um circuito de afetos comuns. O exercício de estar-junto, mesmo que de forma “descompromissada”, é, nas palavras do fi-lósofo francês, uma condição decisiva para o desenvolvimento de futuras reivindicações e lutas por direitos, pois ele instaura nos
agentes possibilidades de invenção e consequentemente, outras formas de fazer política.
Conclusão

Ao conversar com alguns jovens e acompanhá-los nos eventos
pude perceber que a preocupação com a política está longe de
ser subvalorizada como apontam algumas análises mais apres-
sadas e pessimistas. A política não deixou de ser importante para
o jovem, mas, sim, um modelo de política que não dialoga com
a sua realidade. As chamadas “pautas individuais” ou “identitá-
rias” passaram a ser abraçadas de maneira mais intensa pelos jovens nos últimos anos, trazendo para o centro do debate ca-tegorias como “performance” e “estética”. Para muitos analistas,
nação e classe, ideias centrais na construção de um projeto revo-lucionário, deixaram de ter um peso significativo nos discursos
e ações dos agentes, que agora seriam guiados por uma agenda política fortemente centrada em categorias como raça, gênero
e sexualidade. Discordo que a noção de classe tenha perdido a importância, o que houve foi um alargamento da percepção so-bre a desigualdade que agora passa a englobar outros fatores
importantes que antes eram secundarizados ou analisados de forma individualizada. A noção de interseccionalidade19 se apre-

19 O termo foi cunhado pela intelectual afro-estadunidense Kimberlé Crenshaw para proble-matizar as experiências de mulheres negras a partir de uma percepção que une distintas for-mas de opressão como o racismo, o capitalismo e o cisheteropatriarcado. Ver: Akotirene, 2019.

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senta como uma chave explicativa de grande relevância para a
compreensão das experiências dos grupos subalternizados no
mundo contemporâneo. A ressignificação de bandeiras e narrativas por parte dos jo-
vens acompanha uma tendência mundial, em que cada vez mais
grupos reivindicam reconhecimento a partir dos seus mais di-
versos pertencimentos, algo que já estava presente, por exem-
plo, no slogan “o pessoal é político” do movimento de mulheres nos EUA ao longo dos anos 1970. Giddens (2002) chama de
política-vida o conjunto de reivindicações de natureza política
que “surgem a partir de processos de autorrealização em con-textos pós-tradicionais, onde influências globalizantes pene-tram profundamente no projeto reflexivo do eu e, inversamen-te os processos de autorrealização influenciam as estratégias globais” (p. 197). Penso que essa ideia pode nos oferecer uma pista interessante para a leitura dessas manifestações, uma
vez que nos deparamos com uma “estilização da política” que leva a sério a performatividade, o gosto musical, o cotidiano
e a busca por autorrealização. Se quisermos compreender de fato os sentidos de resistência – e insurgência – colocados em
prática pelos jovens no contexto contemporâneo precisamos
nos desvencilhar de modelos de análise que tendem a separar o mundo entre essência e aparência, profundo e superficial,
pois, se tratando de juventude, a chave para a compreensão do
problema pode estar justamente no que se considera “banal” e
“secundário”.

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Recebido em 29/12/2020Aprovado em 15/04/2021