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A epidemia do vírus Zika nas Ciências
Sociais no Brasil:
Um estudo bibliográfico (2016-2018)
Gabriela Freitas*1
Soraya Fleischer**2
ResumoEste estudo bibliográfico compilou as contribuições das Ciências So-ciais no Brasil sobre a epidemia do Zika Vírus (ZV). Foram escrutina-dos os materiais mais produzidos pela área: artigos, resenhas, dossiês e editoriais publicados em periódicos e capítulos publicados em livros autorais e coletâneas. Foram encontrados 38 textos publicados por cientistas sociais no período de 2016 a 2018. Discutimos os principais debates na área a cada ano para mostrar a mudança e amadurecimento dos temas. O conjunto bibliográfico revela uma maioria de pesquisado-ras, vindas de centros acadêmicos do Nordeste brasileiro e cobrindo principalmente os assuntos sobre as famílias atingidas, as políticas pú-blicas, as mídias, a deficiência e as terapias reabilitadoras. Palavras-chave: Zika Vírus. Síndrome Congênita do Vírus Zika. Ciências Sociais. Brasil. Estudo bibliográfico.
* Estudante de graduação em Ciências Sociais/Antropologia na Universidade de Brasília. E-mail: gabbriela.f98@gmail.com** Professora do Departamento de Antropologia na Universidade de Brasília. E-mail: soraya@unb.br
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The Zika virusepidemic in theBrazilian Social
Sciences: A bibliographic review (2016-2018)
AbstractThis bibliographic study compiled the contributions from the Brazilian Social Sciences on the Zika Virus (ZV) epidemic. The main materials pro-duced in this are awere: articles, reviews, specialissues, andeditorials published in journals and chapters published in books and collections. In total, 38 texts published by social scientists were found in the period from 2016 to 2018. We discussed the main debates in the area by year, to show how the meschanged and matured a long time. This bibliographic set reveals a majority of women researchers, coming from academic cen-ters in the Northeast region of Brazil and mainly covering the affected families, public policies, media, disability and rehabilitation therapies.Keywords: Zika Virus. Social Sciences. Brazil.
La epidemia del virus del Zika em las Ciencias Sociales
en Brasil: Una revisión bibliográfica (2016-2018)
ResumenEste balance bibliográfico compiló las contribuciones de las Ciencias Sociales en Brasil sobre la epidemia del virus del Zika (ZV). Fueron exa-minados los materiales más producidos em el área: artículos, reseñas, dossiers y editoriales publicados en revistas y capítulos publicados em libros de autoría y colecciones. Fueron encontrados 38 textos publica-dos por investigadoras de las Ciencias Sociales em el período de 2016 a 2018. Discutimos los principales debates em el área a cada año para mostrar el cambio y la madurez de los temas. El conjunto bibliográfi-co revela una mayoría de investigadoras de centros académicos em el noreste de Brasil y cubriendo principalmente temas sobre las famílias afectadas, las políticas públicas, los medios de comunicación, la disca-pacidad y las terapias de rehabilitación.Palabras clave: Zika Virus. Ciencias Sociales. Brasil.
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Introdução1Zika, uma floresta localizada em Uganda, na África, nomeou a epidemia que eclodiu no mundo entre 2014 e 2015. O arbovírus foi ali encontrado pela primeira vez, no ano de 1947, no soro de um macaco Rhesus da região (Araújo et al, 2017). Macaco, que foi picado por mosquito, que picou humano, que passou a outros humanos, inclusive via migração e circulação pelo globo. Uma cadeia de transmissão se estabeleceu. Há relatos de apenas três surtos dessa doença. O primeiro e o segundo ocorreram em duas ilhas da Oceania, em 2007, na Ilha de Yap e, em 2013, na Poliné-sia Francesa. E o terceiro surto, em 2015, aconteceu no Brasil e se agravou de tal forma que se tornou um problema de saúde pública nacional (Araújo, Guimarães, Lins e Neto, Silva, 2017) e mais tarde uma emergência mundial. Os fluxos de mercadorias também podem ter contribuído, trazendo mosquitos e novos materiais genéticos, aumentando a proliferação desses vírus. Apontamentos levantam suspeitas de que o vírus tenha chegado ao Brasil em 2014, quando se espalhou primeiramente por 14 estados, e depois, em 2016, já havia atingido as 27 unidades da federação (Porto e Costa, 2017). De acordo com Debora Diniz (2017), já existiam pesquisas relacionadas ao Zika desde o sécu-lo passado, mas o interesse científico cresceu a partir de 2015, com a detecção da transmissão vertical e sexual do vírus Zika (VZ) e o surgimento dos primeiros casos de bebês nascidos com o que depois se convencionou chamar de Síndrome Congênita do Vírus Zika (SCVZ). O cenário de uma nova epidemia é composto por um grande con-junto de questões que por muito tempo fica sem explicações ime-
1 Aproveitamos para agradecer a todas as pesquisadoras que compuseram a equipe do projeto de pesquisa “Zika e microcefalia: um estudo antropológico sobre os impac-tos dos diagnósticos e prognósticos das malformações fetais no cotidiano de mulheres e suas famílias no estado de Pernambuco”. Somos tributárias também aos financiadores que permitiram que o projeto pudesse acontecer, a saber, o Departamento de Antropologia, o Programa de Iniciação Científica (PIBIC) e a Finatec na Universidade de Brasília e o CNPq.
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diatas. Por volta de 2014, na região Nordeste do Brasil, muitas pessoas apresentaram sintomas do que foi chamado à época de uma “dengue fraca”, dada a sua semelhança com a outra arboviro-se, mas numa versão mais branda (Diniz, 2016). Mas, em 2015, o quadro se agravou quando muitas crianças começaram a nascer com um conjunto de graves deficiências auditivas, visuais, moto-ras, gastroenterológicas, neurológicas, entre outras. Muitas foram as explicações para essas anomalias, como vacinas vencidas, agro-tóxicos proibidos, mosquitos transgênicos, etc. Tratava-se de uma novidade no campo das ciências da saúde, intensificando muitas pesquisas científicas a fim de investigar o problema e encontrar soluções (Aguiar e Araújo, 2016; Porto e Moura, 2017; Pinheiro e Longhi, 2017; Carneiro e Fleischer, 2018; Justino, 2018).Somente em 2016 foi oficializado o vínculo entre a anomalia, causada intrauterinamente, e o VZ, transmitido por picada de mosquito ou por contato sexual. Pouco tempo depois, a situação se exteriorizou, desassossegando mais países, principalmente vizinhos ao Brasil. Embora as crianças e suas respectivas famí-lias tenham ganhado centralidade nos estudos das Ciências So-ciais, as formas de infecção e contágio do VZ, mesmo sem conse-quência reprodutiva, continuam no radar científico, já que ainda não se chegou a uma profilaxia definitiva. Afinal, o número de pessoas com o VZ é muito superior ao número de pessoas nas-cidas com a SCVZ. Logo no início da epidemia do VZ, cientistas sociais também despertaram para contribuir com explicações. Aspectos sociais, econômicos, políticos e éticos da epidemia passaram a deman-dar a reflexão das Ciências Sociais. Por isso, a SCVZ se tornou um dos principais focos das Ciências Sociais. O nascimento de quase 4.000 bebês com a síndrome mobilizou que se conhecesse e en-tendesse os processos reprodutivos, conjugais, afetivos, finan-ceiros das famílias atingidas. E, também, os processos de orga-nização dos serviços de saúde, assistência, habitação, transporte e educação. A síndrome demanda que uma rede de direitos seja
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acionada e garantida, da farmácia de alto custo à consulta com especialistas, do benefício de prestação continuada à acessibili-dade urbana para pessoas cadeirantes. Vários níveis de comple-xidade, vários perfis de profissionais e várias fontes pagadoras precisaram se articular celeremente. As Ciências Sociais atentaram para os termos biomédicos e tam-bém burocráticos que surgiram com a instalação da epidemia e da síndrome, chamando atenção para como são herméticos e de difícil entendimento. Ao traduzir e explicar esses termos em suas etnografias, a Antropologia, por exemplo, ajudou a mediar o diá-logo entre as famílias e os especialistas, entre a população e a epi-demia. Além disso, ajudou a descrever o contexto e as relações so-ciais por meio das quais esses estudos vinham sendo produzidos. Apostando na importância das Ciências Sociais para a compre-ensão de fenômenos complexos, como as epidemias, o adoeci-mento, o luto, fomos buscar conhecer melhor a recente produ-ção científica da área. Este é um artigo de revisão bibliográfica sobre o que e como as cientistas sociais2 pesquisaram o VZ e a SCVZ e o que publicaram entre os anos de 2016 e 2018. Um estudo bibliográfico, ao buscar e reunir um amplo conjunto de referências, apresenta-se como um guia de leitura para quem es-tiver iniciando estudos sobre o tema ou para quem, já em estágio avançando, estiver procurando complementar e se atualizar no que foi publicado. Primeiro, vamos apresentar como chegamos a esse retrato da produção. Depois, descreveremos as pesquisas publicadas em 2016, 2017 e 2018. Um estado da arte não apenas reforça a im-portância daquela área para o debate mais geral de certo tema, mas também aponta para as lacunas de conhecimento que pre-
2 Optamos pelo plural feminino não apenas porque grande parte das publicações é as-sinada por cientistas mulheres, como para tensionar a feitura da Ciência, historicamente imaginada como produto dos homens.
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cisam ser avançadas pelas futuras colegas da área. Os estudos das Ciências Sociais, ao reforçarem a complexidade da epidemia como um fenômeno social, nos lembram como a compreensão deve resultar de esforços interdisciplinares e devem tentar che-gar na população atingida e no público mais amplo.
Passos metodológicosO primeiro passo metodológico foi definir os bancos de dados a serem percorridos: Scielo, Google Acadêmico, PUB-MED e Peri-ódicos Capes.O segundo passo foi delimitar um período: 2016 a 2018. O tempo em trabalho de campo, escrita de diários de campo e realização e transcrição de entrevistas, tabulação e organização dos dados – tudo isto difere das colegas das áreas quantitativas. Consideran-do que as Ciências Sociais têm outro estilo de pesquisa e ritmo de análise, consideramos que um triênio contemplaria o início da epidemia e respeitaria o perfil científico desta área. Além disso, naquele período também se concentrou o nascimento da maior parte dos bebês com a SCVZ (Brasil, 2019), fato importante para uma área que tomou as mães e suas famílias como principais in-terlocutoras de pesquisa. A área prima pelo mergulho e continui-dade do contato com os sujeitos de pesquisa, em que as relações em campo precisam ser consolidadas para que a pesquisa possa acontecer. Menos imediata do que as áreas biológicas e médicas, o ritmo de publicações das Ciências Sociais após os surtos epi-demiológicos – 2015 em Pernambuco e 2016 no Rio de Janeiro – demonstra seu interesse continuado com o tema. Rozeli Porto e Patricia Moura (2017) lembram que, em novembro de 2015, ocorreu um boom midiático, e a todo momento havia informações nos meios de comunicação sobre a epidemia do VZ. As autoras su-gerem que tanto as Ciências da Saúde quanto as Ciências Sociais foram informadas sobre a epidemia pela mídia e, também, por conta dela foram despertadas a lançar seus olhares investigativos.
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O terceiro passo foi estabelecer os unitermos de busca: “Zika”, “microcefalia”, “SCVZ”, sempre casados com “Antropologia”, “So-ciologia”, “Ciências Sociais”. O quarto passo foi definir o tipo de material a ser incluído neste estado da arte. Primamos por artigos, resenhas, dossiês, cole-tâneas e editoriais publicados em periódicos científicos e por capítulos publicados em livros autorais e coletâneas. Foram deixados de fora e para os próximos estudos os livros, as entre-vistas, os filmes documentários e as dissertações de graduação e pós-graduação3. Buscamos o que geralmente ganha maior e mais instantânea repercussão no meio acadêmico, o artigo em periódico e os ebooks. E, por fim, embora tenhamos encontrado revistas de diferentes áreas, priorizamos a formação das autoras e não o local de publicação dos seus textos4. Por isso, há algu-mas pesquisadoras que não são brasileiras e seus estudos são escritos em outras línguas (inglês e espanhol), mas que foram incluídas nesta revisão bibliográfica por terem seus artigos pu-blicados em revistas no Brasil.Ao todo, foram encontrados 38 textos de cientistas sociais em revistas de diferentes áreas, como pode ser visto no Quadro 1.
3 Vale citar as primeiras dissertações nas Ciências Sociais sobre o VZ: Alano, 2017; Lyra, 2017; Valim, 2017; Bezerra, 2018; França, 2018 e Fernandes, 2018.4 As revistas que publicaram sobre o VZ são: Sexualidad, Salud y Sociedad Revista Lati-noamericana (Rio de Janeiro); Reciis - Revista Eletrônica de Comunicação, Informação e Inovação em Saúde (Rio de Janeiro); Intercom - Sociedade Brasileira de Estudos Inter-disciplinares da Comunicação (São Paulo); Interface - Comunicação, saúde e educação (UNESP); Cadernos de Gênero e Diversidade (UFBA); Anthropologicas (UFPE); Ciência & Saúde Coletiva (Associação Brasileira de Saúde Coletiva, Rio de Janeiro); Anuário An-tropológico (UnB); Cadernos de Saúde Pública (Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz); Amazônica - Revista de Antropologia (UFPA); Revista Pesquisa em Fisioterapia (São Paulo); Cadernos de Campo (USP); Investigação Qualitati-va em Saúde (UFSC); Journal of Science Communication; Revista de Enfermagem (UFPE); Physis - Revista de Saúde Coletiva (UERJ); Epidemiologia e Serviços de Saúde (Brasília).
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Quadro 1: Síntese dos textos de cientistas sociais (2016-2018)
Ano 2016 2017 2018 TotalTextos 11 13 14 38
Número de autoras 14 20 30 64Número de autores 18Autoras da região Nordeste 14 19 33Elaborado por Gabriela Freitas, 2019.
A participação de pesquisadoras é muito maior do que a de pes-quisadores, e esta participação feminina aumentou ao longo dos três anos. Outro aspecto pertinente é o fato de que, no primeiro ano, nenhuma publicação das Ciências Sociais era do Nordeste, mesmo tendo sido a região mais afetada pela epidemia. Já em 2017 e 2018, as publicações nordestinas ultrapassaram as ou-tras regiões. E, diferente do que temos geralmente nas Ciências Sociais, há muita coautoria e coprodução, já que o número de autoras é muito superior ao número de textos.A seguir, passamos aos três conjuntos de textos, relativos aos três anos de nossa busca bibliográfica. Em vez de agrupar textos de diferentes momentos por afinidade temática, optamos por agrupá-los por ano, para vislumbrarmos como, a cada ano, o que mais pareceu progressivamente interessar às pesquisadoras das Ciências Sociais. Isto faz sentido porque a epidemia foi mudan-do muito rapidamente com o tempo, à medida que descobertas biológicas e ambientais sobre o vírus e seu potencial de contá-gio foram sendo anunciadas, que os sintomas das crianças foram sendo melhor avaliados e mapeados, que as políticas públicas foram oferecendo recursos e garantias de direitos demandados pelas “famílias de micro”, como decidiram se autointitular. Não perdemos de vista que, justamente nesse triênio, o país sofreu um golpe político e passou por dois presidentes, quadro político que desestabilizou enormemente a gestão e os recursos públi-cos, especialmente destinados ao SUS, como a maior política pú-blica do País. Com a reunião dos textos em três momentos, nosso
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objetivo é mostrar como a epidemia paulatinamente chegou e foi compreendida pelas Ciências Sociais.
2016: Epidemia, direitos reprodutivos e narrativas de
sofrimentoEsse ano conta com 11 produções (Aguiar e Araújo, 2016; Baum et al., 2016; Camargo, 2016; Camargo Jr., 2016; Diniz, 2016; Di-niz e Brito, 2016; Galli, 2016; Galli e Deslandes, 2016; Pitanguy, 2016; Valle et al., 2016; Ventura, 2016). As discussões nesse pe-ríodo são sobre políticas públicas e vulnerabilidade social; cor-relações entre a epidemia do VZ e outras epidemias, como por exemplo a chikungunya e dengue; e questões diretamente vin-culadas à maternidade, diagnóstico e a chegada de uma crian-ça com deficiência. É bom lembrar que o primeiro epicentro da epidemia, em 2015, foi na cidade de Recife/PE, localizada no Nordeste brasileiro, região que já enfrentava outras arboviroses transmitidas pelo mesmo mosquito que infecta o VZ, o aedes ae-
gypti (Valle et al., 2016). Foi em outubro de 2015 que uma médica paraibana observou em seu consultório o crescimento do número de casos de bebês microcefálicos. Notificou o Ministério da Saúde, alertando para o fenômeno (Camargo Jr., 2016; Diniz, 2016). As Ciências Sociais já estavam ajudando a documentar a chegada do vírus no País, reconhecer os profissionais de saúde que compuseram uma rede de atores que cuidaram dos casos, descrevendo a história da ciência do Zika, portanto. Pelo fato de ser transmitido por um mosquito que se prolifera na água, o VZ se torna uma doença relacionada diretamente ao meio ambiente, saneamento e urbanização. Deisy Ventura (2016) su-gere que a patologia que vira epidemia é de responsabilidade do Estado, ente que deve zelar pelo cuidado das cidades. O descaso com as periferias urbanas, sobretudo, vulnerabiliza esse perfil
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de pessoas, historicamente esquecido. Aqui, fica clara a possibi-lidade de diálogo das Ciências Sociais com outras áreas como a Arquitetura, Administração Pública, Engenharia de cidades, En-tomologia, por exemplo. A autora afirma que:
No Brasil, a securitização da resposta ao Zika fez do mosqui-to Aedes aegypti o maior inimigo da saúde pública. Porém, embora a “guerra contra o mosquito” seja necessária como providência imediata, ela não pode esconder que a lista de adversários da saúde é bem mais longa. Impõe-se a suspen-são imediata de cortes orçamentários na área social, com a priorização de investimentos em saneamento básico e no fortalecimento dos SUS. Só um sistema de saúde eficiente pode garantir, quando finda a emergência, a continuidade da assistência às pessoas atingidas pela crise. (Ventura, 2016, p. 3).De acordo com Kenneth Camargo Jr. (2016), a descoberta da epidemia, aconteceu no momento em que o País enfrentava uma situação de crise, tanto política quanto economicamente. Naquele período, foram realizados cortes propositais de recursos ao SUS e também para o financiamento de pesquisas científicas. Em outras palavras, os serviços estavam se preca-rizando rapidamente e a ciência não conseguia dar respostas com a rapidez necessária. Denise Valle, Denise Pimenta e Raquel Aguiar (2016) apontam que elevar um vírus a uma situação de emergência foi importante para visibilizar os mais desfavoreci-dos na sociedade e reforçar a importância das políticas públicas. Inicialmente o discurso oficial era de que a Zika se tratava de uma doença benigna e que não havia razões de preocupação, uma vez que se observava a evolução para a cura. A prioridade, até aquele momento, era com a dengue que, segundo as autori-dades, de fato, matava (Aguiar e Araújo, 2016, p. 4). E as Ciências Sociais parecem somente ter decolado suas reflexões quando o vírus foi associado à gestação e depois à síndrome congênita, com um alargamento das questões envolvidas. Por isto, muito
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da produção desse ano já trouxe como principal foco as mulhe-res que tiveram crianças microcefálicas. Neste sentido, Débora Diniz, uma das principais antropólogas a evidenciar a relação entre epidemia, raça e gênero, anunciou:
Somente algumas mulheres tiveram a vida precarizada pelo assombro da epidemia: mulheres nordestinas, pobres, de regiões rurais em que há intensa circulação do mosquito, dependentes dos serviços públicos de saúde. Das crianças nascidas com a síndrome neurológica provocada pelo vírus Zika, 88% são da região Nordeste. (Diniz, 201, p. 4).
Beatriz Galli (2016) ao fazer a análise do documentário pro-duzido por Diniz, nota que, a partir dos depoimentos das cin-co mulheres que foram afetadas pelo VZ, há medo, sofrimento emocional e ansiedade, no longo processo até se receber o diag-nóstico da SCVZ5. Neste sentido, a autora também aponta que a epidemia da Zika reacendeu a discussão acerca da autonomia reprodutiva das mulheres, sobretudo a questão do aborto e de sua ainda ilegalidade no Brasil. Diniz (2016), além de apresentar essa discussão por meio de sua produção audiovisual, retoma todo esse debate analisado por Galli em um de seus textos. Diniz conclui que “as mulheres preferem não saber (do resultado do diagnóstico), pois não há o que fazer: sem direito a interrupção da gestação e com muitas incertezas científicas, o diagnóstico precoce é tortura psicológica” (Diniz, 2016, p. 3).No mesmo ano, Diniz, contando com a colaboração de Luciana Brito (2016), pautou a história de um casal do interior da Pa-raíba que teve uma filha com a SCVZ. Por meio da etnografia, as pesquisadoras criam uma espécie de cena que remonta a vida dessa família, partindo dos relatos de seus interlocutores. Elas
5 DINIZ, Debora. Zika. (29m). Direção: Debora Diniz. Produção: Luciana Brito, Sinara Gumieri. Edição: Valesca Dios. Brasília: Imagens Livres, 2016. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=m8tOpS515dA
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apontam aspectos desde a gravidez não planejada, o parto em que o acompanhante – no caso o pai – foi proibido de entrar no centro obstétrico e, por fim, o tratamento discriminatório que sua filha recebeu ao nascer (Diniz e Brito, 2016, p. 3). Dentre al-gumas questões levantadas, as duas autoras indicam que a falta de informação e a ausência de políticas públicas, – para que as mulheres possam escolher os caminhos que julguem ser melho-res para sua própria saúde reprodutiva – a Zika se torna uma realidade que afeta principalmente as mulheres em situações de maior vulnerabilidade social. Jacqueline Pitanguy (2016) também se lança ao tema da saúde reprodutiva de mulheres, com recorte no Brasil. Ela comenta que o movimento feminista brasileiro e internacional tem se em-penhado em evidenciar os laços entre autonomia reprodutiva e Estado (Pitanguy, 2016, p. 2). Mas ao pensar na situação brasilei-ra frente à questão do aborto, ela conclui que:
No Brasil, que tem uma legislação extremamente restritiva no que tange ao abortamento, assiste-se a uma crescen-te politização do dogmatismo religioso, levando a que as dimensões de saúde e direitos sejam encobertas por uma estridente condenação moral ou criminal. Aqui o debate so-bre a expansão de permissivos para o abortamento segue o caminho inverso. A interrupção voluntária da gravidez sofre ameaças constantes de retrocesso, no sentido de serem eli-minadas as três únicas circunstâncias em que a interrupção não é penalizada: em caso de risco de vida da gestante, se a gravidez é resultante de estupro, ou se existe anomalia fetal irreversível e incompatível com a vida. (Pitanguy, 2016, p. 2).Seguindo o mesmo conjunto de ideias indicadas por autoras anteriormente já citadas (Diniz e Brito, 2016; Pitanguy, 2016), Beatriz Galli e Suelly Deslandes (2016) reforçam que o acesso aos direitos reprodutivos de mulheres brasileiras está em situ-ação de constante ameaça. Os direitos poderiam ser atingidos por uma forte onda de retrocesso que naquele momento se arti-
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culava no Congresso Nacional com a bancada evangélica e suas noções conservadoras e moralistas.De acordo com os dados apresentado por Thais Camargo (2016), no ano de 2012, o STF decidiu em favor da Arguição de Descum-primento de Preceito Fundamental (ADPF) para o caso dos fe-tos anencéfalos. O mesmo grupo que agiu nessa ADPF de 2012 preparou uma nova versão, mas desta vez visando articular de modo que garantisse o direito legal e seguro do aborto na rede pública de saúde em casos de fetos diagnosticados com a SCVZ. Considerou-se ser o momento oportuno de avaliar as leis e polí-ticas de saúde, respeitando os direitos humanos e a autonomia das mulheres sobre seus corpos e suas vidas. No começo de 2016, o governo federal lançou o protocolo de aten-ção à saúde e resposta à SCVZ, que logo foi analisado pelas cientis-tas sociais. Paig e Baum em conjunto com outras autoras (2016) apontaram que, embora o protocolo tenha sido centrado na impor-tância dos métodos contraceptivos, sabe-se que estes não chegam democraticamente às mulheres negras e pobres, habitantes de áre-as mais atingidas pela epidemia. Um passo é a gratuidade nas far-mácias públicas, outra bem diferente é a continuidade da política, dois aspectos fundamentais para garantir a eficácia dos métodos contraceptivos. Uma segunda crítica é que esse protocolo ignora que o aborto ilegal seja uma realidade no País e que possivelmente será intensificado com a epidemia. “As mulheres que foram infec-tadas pelo Zika ou que estão vulneráveis à infecção têm direito a receber orientação de qualidade, assistência e informações para tomar decisões informadas” (Baum et al., 2016, p. 2). Foi reportado, nas publicações acadêmicas e na mídia, como as mulheres de maior poder aquisitivo puderam evitar, interromper ou adiar a gestação e optar por parir em regiões sem mosquitos, como no exterior.A atenção jornalística também foi material analisado pelas cien-tistas sociais naquele ano. Em geral, foram várias as críticas fei-tas à cobertura realizada desse início da epidemia. Com qual in-
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tenção os jornais trouxeram narrativas de sofrimento das mães e dos bebês atingidos? Seria esta uma dramatização necessária para se conseguir falar de saúde e de política pública? Como te-ria sido se a epidemia não tivesse atingido tão intensamente as periferias urbanas e regionais? As aspas, colhidas junto às mu-lheres e suas famílias, tiveram autorização de maneira ética? Ou foi realizada uma invasão da privacidade para conseguir man-chetes e venda de jornal? (Aguiar e Araújo, 2016). Em geral, as pesquisadoras acharam que a mídia foi especulativa, ao divulgar notícias ainda não comprovadas sobre o VZ; foi leviana, ao es-palhar pânico e preconceito com a deficiência e o contágio; foi apressada em muitos sentidos, atropelando as reais prioridades enfrentadas pelas famílias atingidas.
2017: Políticas públicas, cuidados e organização das “mães
da micro”Nesse ano, 13 publicações foram encontradas (Amarillo, 2017; Araújo et al., 2017; Cardoso et al., 2017; Carneiro, 2017; Carva-lho, 2017; Fleischer e Carneiro, 2017; Fleischer, 2017; Lira et al., 2017; Pereira et al., 2017; Pinheiro e Longhi, 2017; Porto e Moura, 2017; Scott et al., 2017; Silva et al., 2017). Retomaram assuntos abordados em 2016 e trouxeram outros: a estimulação precoce receitada como principal terapêutica às crianças nasci-das com SCVZ; a organização política das mães de micro; o racis-mo ambiental; e os benefícios sociais como o BPC. As narrativas das “mães de micro” continuam em evidência, re-velando os impactos do VZ e da SCVZ sobre suas vidas e de seus filhos. Após o nascimento dessas crianças, a rotina familiar se transformou repentina e drasticamente. A deficiência com ní-veis variados é determinante nesse sentido:
Essas crianças têm apresentado um complexo conjunto de sintomas para além da cabeça pequenina: distúrbios de
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ordem ortopédica, oftalmológica, odontológica, cardíaca, motora, dificuldade de alimentação e respiração, paralisias cerebrais e a ocorrência de convulsões estão entre os sinto-mas mais observados. (Fleischer, 2017, p. 19).Várias pesquisas descreveram as rotinas das famílias de micro, cada vez mais exaustivas, considerando os desafios da locomo-ção de casa até os hospitais e terapias de reabilitação, de casa até os balcões do Estado para pleitear direitos e concessões, de casa até as ONGs e locais de doações de medicamentos, leite em pó e fraldas. Soraya Fleischer (2017) descreve três ações cotidianas realizadas por essas mães na região da Grande Recife/PE, segu-rar a criança, caminhar pela cidade e falar a diferentes interlo-cutores, aparentemente simples, mas cruciais para conseguirem cuidar de seus filhos. Luciana Lira et al. (2017), dialogando com esses termos, destacam que o segurar a criança “é um conheci-mento pelo tato, um conhecimento que resulta do contato entre os corpos e da rotina de cuidados que torna as mães-cuidadoras capazes de discernir os humores, os sintomas, as necessidades e vontades das crianças” (2017, p. 228). As autoras sugerem a “criação de corpos extensivos, que se constituem nas interações físicas, emocionais e técnicas entre mães de micro e seus filhos/filhas” (ibid, p. 229). Vários dos artigos desse ano se aprofundaram em estudos de caso. Além de Fleischer (2017), Diego Pinheiro e Marcia Longhi (2017) apresentaram uma mãe de micro a partir da sua mili-tância política em busca de direitos do seu filho. Essa liderança, acompanhada de outras mães, aproveitou as reuniões em salas de espera de hospitais, nos transportes e nas sedes das organiza-ções não governamentais para partilhar conhecimentos gerados pelos cuidados intensivos. O artigo não apenas mostra a atuação de uma mãe, mas o movimento social e a pressão política que vá-rias delas têm empreendido. Como construir a agência feminina diante das exigências do cuidado com a infância e a deficiência também são o tema de outro trabalho, que teve como foco uma outra organização da região recifense (Scott et al., 2017).
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Além das consultas médicas, essas crianças foram encaminhadas aos profissionais da reabilitação para as atividades de estimula-ção precoce. Segundo esses especialistas, a plasticidade própria da primeira infância deveria ser amplamente aproveitada para que o desenvolvimento fosse alcançado progressivamente. No entanto, foi apenas após muita luta que essas mães consegui-ram obter atendimento público acessível (Fleischer e Carneiro, 2017). E, ainda assim, as vagas para as crianças com SCVZ nem sempre foram prioridades, como mostraram essas duas autoras. Éverton Pereira e seus colegas (2017) foram conhecer sobre o acesso e a distribuição do Benefício de Prestação Continuada (BPC) concedido às crianças com micro. Como lembram:
A Constituição Federal de 1988 introduziu, no artigo que discorre sobre a política de assistência (Artigo 203), a ga-rantia de um salário mínimo para pessoas com deficiência e idosos que não possuem condições próprias ou familia-res de prover seus meios de subsistência. Este benefício foi instituído pela Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS) nº 8.742/931 e nomeado como Benefício de Prestação Conti-nuada (BPC). (Pereira et al., 2017, p. 3558).
Nesse sentido, Everton Pereira et al. (2017) já anteviram que, com o crescimento das crianças, outros direitos logo precisa-riam ser acionados e consolidados para essas famílias, não ape-nas o de complementação de renda: “No caso das crianças com microcefalia, além da assistência social (por meio dos CRAS e do BPC), é preciso construir uma rede de saúde e educação capaz de acolher a diversidade e possibilitar a real inclusão na pers-pectiva dos direitos humanos” (2017, p. 3564). Claudia Amarillo (2017), referindo-se ao caso colombiano, ob-servou que certos setores culpabilizaram as mulheres pela ex-pansão do VZ e da SCVZ. Foram acusadas de serem incapazes de controlar a própria reprodução. Como no ano anterior, os artigos
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continuam a mostrar como uma epidemia ressuscita imagens historicamente consolidadas sobre raça, gênero e sexualidade. A autora não nos deixa perder de vista como um contexto cristão e controlista está por trás dessas manifestações de culpabilização, atmosfera não muito distante nem diferente do Brasil. A mídia continua inquietando as cientistas sociais. Porto e Mou-ra (2017) mostraram como a mídia primou por reforçar as ques-tões morais, religiosas e políticas que sugiram com a epidemia do Zika. Os jornais analisados também apontaram para o desca-so por parte das autoridades com a saúde e a ausência de sanea-mento básico nas regiões mais afetadas pela epidemia. Ademais, os textos de 2017 trouxeram questionamentos sobre novos pontos. Layla Carvalho (2017), por exemplo, nos provo-cou a pensar com a epidemia desperta uma discussão sobre “ra-cismo ambiental”, já que a falta de saneamento público coincide com as áreas de moradia da população negra:
O racismo ambiental, que no Brasil é uma das razões para as desigualdades de acesso a saneamento básico – acesso à água encanada, tratamento e coleta de esgotos –, está na base do adoecimento de grupos sociais específicos, reite-rando os ciclos de pobreza e marginalização de famílias ne-gras no país. (2017, p. 154).
No mesmo sentido, sumariou Rosamaria Carneiro, “o governo não necessariamente assumiu que a falta de saneamento bási-co, urbanização, igualdade ambiental e a insistência do racismo, machismo e desigualdade social tivessem contribuído na eclo-são da epidemia” (2017, p. 18). Ana Claudia Silva, Silvana Matos e Marion Quadros (2017) atentaram-se para os limites do inves-timento tecnológico nos focos para proliferação do mosquito. Questionam se são medidas efetivas, se a tecnologia continuará a ser fomentada quando a emergência epidemiológica diminuir, como se dão as relações do Brasil com outros países no inter-
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câmbio científico e no controle de epidemias que geralmente ignoram fronteiras nacionais. As Ciências Sociais ofereceram aportes sobre o VZ de modo mais interconectado, em que várias facetas se interinfluenciam. Retratos mais amplos e complexos vêm sendo apresentados. Kizi Araújo et al. (2017) notaram o aumento de publicações so-bre o tema do ZV de 2016 a 2017 e reforçaram a importância do sistema de acesso aberto à produção científica, sobretudo no caso de epidemias e consequências globais. Lembraram da im-portância de a mídia fazer a priorização e a tradução dos resul-tados científicos ao público amplo. Em outro artigo que também tratou do papel da mídia nesse cenário, Janine Cardoso et al. (2017) afirmaram que, por exemplo, o Jornal Nacional, no con-texto de epidemia da dengue de 2008, usou argumentos mais dramáticos, mostrando famílias pobres sofrendo com a doença causada pelo mosquito. As autoras atentaram para as metáforas e significados que são considerados na composição das notícias. Em outra pesquisa, Parry Scott et al. (2017) analisaram duas as-sociações, Aliança das Mães e Famílias Raras (AMAR) e a União de Mães de Anjos (UMA), ambas no Recife/PE, e se voltaram para discutir os diferentes tipos de atritos políticos que com-põem a atmosfera da SCVZ. As autoras constataram que, dentre os vários atritos existentes, parte deles é motivada pelo Estado e suas políticas públicas adotadas de modo insuficiente. Para além dessa verificação, elas também observaram que:
As tensões que coadunam diferentes percepções de pers-pectivas de feminismo, de deficiência, e de cuidado/aten-dimento que identificamos são: como lidar com saúde reprodutiva na presença de uma população dependente demandante; como articular demandas de excepcionali-dade emergenciais com demandas de excepcionalidade rotinizadas; e como construir a agência feminina diante da exigência de cuidado. Há tensão sobre aborto, tensão sobre empreendimento e empoderamento; tensão sobre exercício
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de maternidade; tensão entre deficientes históricos e defi-cientes zikas, entre rotina e emergência, na nomeação dos deficientes, na lógica do atendimento do Estado e na lógi-ca e emoção de pessoas que são cuidadoras, tensão entre a concessão de alta e a necessidade de continuidade do tra-tamento, tensão na prevenção e atendimento básico no sis-tema de saúde, sobre responsabilidade e cidadania, e sobre estados cognitivos e emoções em geral. (2017, p. 87-88).
Por fim, com intuito de analisar as permutas que acontecem en-tre pesquisadoras e campo de pesquisa, Luciana Lira et al. (2017) publicaram um artigo que traz importantes contribuições para as Ciências Sociais e suas metodologias aplicadas na prática. As pes-quisadoras notam que a partir de suas experiências com as mães de micro, elas conseguem gerar determinado conhecimento mui-to próprio e muito potente devido ao intenso exercício de com-preender a realidade do outro partindo do lugar de afetação, seja sobre a criança, a família, o Estado (2017, p. 226).
2018: experiências sobre maternidade, deficiência e
direitos sociaisEm 2018, contamos com 14 publicações (Alves, 2018; Andrade et al., 2018; Carneiro e Fleischer, 2018; Castilhos e Almeida, 2018; Cruz et al., 2018; Gonçalves et al., 2018; Fleischer, 2018; Justino, 2018; Linde e Siqueira, 2018; Moreira et al., 2018; Moreira et al., 2018a; Scott et al., 2018; Valim, 2018; Williamson, 2018). Os temas centrais discutidos nos dois anos anteriores persistiram e se densificaram. Nesse ano, um dos assuntos que recebeu maior destaque foi a deficiência em decorrência da SCVZ.Em 2016, a OMS declarou o “fim” da emergência de saúde públi-ca. Mas Eliza Williamson, que fez pesquisa com famílias de micro em Salvador/BA, lembrou que “tudo o que se havia deixado de lado ao anunciar isto é o fato de que as crianças que nasceram com a síndrome congênita (...) sofrem ainda os reflexos que po-
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dem se perdurar por longos anos ou até a vida inteira” (2018, p. 686). Então, a ideia de “pós-epidemia”, amplamente usada pela OMS e outras autoridades, se torna algo questionável, quase irô-nico e irresponsável. Não estamos num momento “pós”, nada terminou, nada sumiu. Ao contrário, as consequências do VZ continuam cada vez mais intensas. Além disso, Williamson afirma que a deficiência ainda é um tema pouco explorado dentro da Antropologia e a epidemia nos revelou esta lacuna na área. Ela sugere que há muitas tempora-lidades dentro da deficiência, o VZ nos faz pensar no tempo da criança (com a “janela no cérebro” e a corrida pela “estimulação precoce”), da família (na luta pelos benefícios e direitos), das políticas públicas (para casar recursos, infraestrutura e vonta-de política), da produção científica (que junta financiamentos, currículos, espaço e material orgânico para trabalhar), dos mo-vimentos sociais, etc. A equipe de antropólogos da UFPE, liderada pelo professor Parry Scott, se concentrou no estudo das políticas públicas que já existiam e foram acionadas para o contexto da SCVZ. Acom-panharam, especialmente, as mães na luta diária por exigir os aportes necessários do Estado (Scott et al., 2018). André Justino (2018), seguindo a linha de Pinheiro e Longhi (2017), no ano anterior, discutiu sobre o papel importante que as ONGs desem-penham na luta empreendida por essas mulheres.
É também potente pensar que no intenso processo de estabelecimento de redes de apoio, essas mães e cuidadoras estejam construindo e mobilizando saberes que passam ao largo, algumas vezes, da biomedicina. Elas se empoderam e se armam do conhecimento produzido na lida cotidiana com seus bebês para adentrar na arena biomédica em posições mais firmes e estabelecidas, fazendo frente aos discursos biomédicos que insistem em pré-estabelecer limites para os bebês nascidos com a Síndrome Congênita. (Justino, 2018, p. 179).
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O cuidado, a rotina pesada, a dedicação e cobrança da materni-dade continuam como foco e análise desse conjunto de cientistas sociais. Mudança radical de suas vidas, incerteza futura com a de-ficiência, insegurança sobre o alcance das terapias disponíveis são temas que surgiram com mais força nesse ano da produção. Parry Scott et al. (2018) se perguntaram se a assistência oferecida e o investimento científico estavam sendo acertados, priorizando as realidades apresentadas pelas mães e suas famílias. Ao longo desse ano, os direitos reprodutivos, inclusive o aces-so à interrupção gestacional, se mantiveram sendo discutidos. Washington Castilhos e Carla Almeida (2018) destacaram como as mídias deram voz para o assunto, mas centrando principal-mente nos especialistas, como médicos e juristas. Mesmo sendo importantes, não são os principais atores para falar da realidade reprodutiva no País. As autoras afirmam que as vozes das mu-lheres, que são de extrema importância nesse debate, continua-ram silenciadas. Ainda nessa perspectiva, Rosamaria Carneiro e Soraya Fleischer (2018) também notaram uma generalizada cul-pabilização das mulheres pela infecção, gravidez e transmissão vertical do vírus. Assim como Amarillo (2017) já havia mostrado na Colômbia, no ano anterior, a opinião pública concluiu que es-ses corpos femininos “não se cuidaram”, “não usaram repelente”, “não evitaram os focos de proliferação do mosquito aedes”, etc. Martha Moreira et al. (2018) notaram uma pronunciada desi-gualdade de gênero dentro dos relacionamentos conjugais des-sas mulheres. As autoras foram entender as repercussões sobre a descoberta da transmissibilidade sexual do VZ. A participação masculina ganha outra dimensão, gera outros conflitos e põe as cientistas sociais para pensar em outros níveis. As autoras mos-tram que, surpreendentemente, diante das outras formas de transmissão viral, “a transmissão sexual sofre um apagamento, que parece reavivar o apagamento sobre discutir sexualidade e direitos reprodutivos, e, se for para discuti-los, será para domes-ticá-los” (Moreira et al., 2018, p. 705).
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Dentre os temas novos nesse ano, vimos a religião, as equipes de saúde e economia. Ao largo dos estudos de ciência hard, a reli-gião é reconhecida pelas Ciências Sociais como podendo interfe-rir positivamente na vida das mães de micro (Linde e Siqueira, 2018). Pode funcionar como um canal facilitador contar com líderes religiosos como intermediadores e apoiadores da situa-ção vivida por essas famílias, inclusive ajudando na conquista de direitos e tratamentos para as crianças com a SCVZ. Luciana An-drade et al. (2018) também voltaram suas pesquisas com recor-te nas questões religiosas e espirituais. Nesse estudo, a equipe de pesquisadoras partiu do objetivo de analisar as concepções de profissionais, líderes religiosos, gestantes puérperas acerca da influência da religião/espiritualidade perante a epidemia ZV. Como resultado, elas observaram nos discursos de seus inter-locutores alguns apontamentos relevantes e por vezes tomados como contraditórios. Cada conjunto de interlocutores pontuou algo diferente:
A concepção dos profissionais da saúde é tecnicista e não reconhece a influência da religião/espiritualidade no con-texto da epidemia Zika vírus. Gestantes e puérpera enfati-zam a influência da religião/espiritualidade em suas vidas, reforçadas pelos depoimentos dos líderes religiosos, de-monstrando que a religião/espiritualidade oferece meios que auxiliam o enfrentamento da condição patológica, como na epidemia Zika vírus, e pode complementar a atuação tec-nicista apresentada pelos profissionais da saúde. (Andrade et al., 2018, p. 334).Gênesis Cruz et al. (2018) atentaram para a atuação dos profis-sionais da saúde no cenário da SCVZ, especificamente os enfer-meiros: “Na superação dos desafios diários exigidos por essa nova condição crônica de vida, os enfermeiros necessitam dis-por de conhecimentos específicos, bem como de um olhar que valorize as suas demandas, para um agir integral e humanizado, mesmo que em sua realidade local haja fragilidades de capacita-ções e treinamentos” (2018, p. 1263).
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A situação econômica dessas famílias afetadas pelo VZ é muito fragilizada, como destacaram Amanda Gonçalves et al. (2018). Essa pesquisa mostrou como as mulheres se encontravam de-sempregadas, já que precisaram abandonar os seus trabalhos para se dedicarem ao cuidado de seus bebês. Sem renda fixa, acabavam não conseguindo arcar com todas as despesas da casa. O endividamento tem crescido entre essas mulheres. Dentre os gastos, se destacam os altos valores de medicamentos, a alimen-tação por leites especiais (via sonda), os equipamentos de rea-bilitação usados em casa, o transporte em carros particulares e mais confortáveis e pontuais, etc. Embora sempre mencionados genericamente, os aspectos econômicos ainda não se firmaram como foco dessas Ciências Sociais do VZ e sugerimos mergulhos futuros neste sentido.Nesse ano de 2018, surgem outros tipos de textos: resenhas, fo-tografias e diários de campo. Thais Valim (2018) publicou uma resenha crítica do filme “Elas” (2017), da antropóloga e cineasta olindense Stephane Ramos6. O filme apresenta narrativas de sete mães pernambucanas, no contexto do sofrimento da invisibili-zação da SCVZ e do abandono paterno. O filme também mostra o papel que as ONGs têm desempenhado na vida dessas mulheres, proporcionando acolhimento emocional como também a opor-tunidade para trocas de conhecimentos e experiências sobre a maternidade, a deficiência, os direitos sociais. A maternidade já é habitualmente moralizada, repleta de vigilância e cobrança e, no caso da deficiência, o peso parece aumentar ao se lidar com uma sociedade preconceituosa e não inclusiva.Em esforço conjunto, Martha Moreira et al. (2018a) revelaram contrastes que se dão com o fim da emergência internacional, declarada pela OMS e, também, pouco depois, pronunciada pelo
6 RAMOS, Stephane. Elas. 2017. (24min). Direção, produção e fotografia: Stephane Ra-mos. Edição: Carlos Cezare. Recife/PE. Disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=I2SQ781fICI&feature=youtu.be>.
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Ministério da Saúde brasileiro. As pesquisadoras friccionam o fato da emergência para o Estado ser uma e para as famílias afe-tadas outra. A preocupação do primeiro é de controlar a situa-ção de adoecimento no País, se baseando nos dados epidemio-lógicos de ZV. Enquanto a aflição das famílias se deve ao fato de suas emergências não serem estáticas. Seus filhos crescerão e novas demandas, como creches e escolas, surgirão. Ao concluí-rem a pesquisa de quase três anos, Moreira e suas colegas, além de terem observado os impactos sociais e econômicos, também refletiram sobre o cansaço exaustivo em cuidar dos filhos e a ne-cessidade de trabalhar ao mesmo tempo.Já Raquel Alves (2018) apresentou uma sensível fotoetnografia. Dois temas costumeiros na vida dessas mães de micro são apre-sentados com imagens: o cuidado e o cansaço. Com fotografias tiradas no dia em que acompanhou uma mãe e a sua rotina de te-rapias do filho, Alves explicou: “É uma rotina solitária e cansati-va, cuja noção do tempo se perde aos cuidados de um(a) filho(a) com microcefalia” (2018, p. 976). A imagem foi hiperutilizada pela mídia, sobretudo nos primeiros anos da epidemia (Porto e Moura, 2017), e é interessante que as Ciências Sociais tenham conseguido retratar essas famílias sem ter que expor ou vulne-rabilizar ainda mais suas vidas.Soraya Fleischer (2018) retoma com mais força e centralidade os seus diários de campo, produzidos durante a pesquisa sobre a SCVZ no Recife/PE. Trazer os diários (na forma editada), em vez de análises ou simples menções ou citações deles, pode ajudar a imaginar o cenário de pesquisa e de vida das interlocutoras. A autora escolheu oito trechos dos diários, organizou-os numa sequência que propositalmente traduziam atividades recorren-temente enfrentadas pelas mães e crianças de micro e deixou que esta montagem fosse sua tinta analítica.
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Considerações Finais Ao realizar este estado da arte, pudemos reunir a produção de cientistas sociais atuando em departamentos de Antropologia, Sociologia, Ciência Política, Saúde Coletiva, Enfermagem, Econo-mia, por exemplo, ou, se fora da universidade, trabalhando em ONGs feministas, secretarias municipais de saúde e assistência, institutos de pesquisa. Uma formação que tem lhes permitido lançar o olhar crítico e reflexivo das Ciências Sociais para a re-alidade dessa epidemia que começou aparentemente branda e tomou dimensões dramáticas e humanitárias. Além de reunir as pesquisadoras, também foi possível conhecer os grupos de pes-quisa e principais núcleos de produção sobre o VZ e a SCVZ. Dois grupos se destacaram na quantidade de publicações ao longo desse triênio e vale lembrar que, com equipes maiores, talvez seja possível ganhar uma envergadura de pesquisa, autoria e publica-ção. Participar de uma equipe facilitou para que graduandas e pós--graduandas publicassem seus resultados. Os dois grupos foram o FAGES - Família, Gênero e Sexualidade (UFPE), com o projeto, “Et-nografando cuidados e pensando políticas de saúde e gestão de serviços para mulheres e seus filhos com distúrbios neurológicos relacionados com Zika em Pernambuco, Brasil”, coordenado por Parry Scott, e a CASCA - Coletivo de Antropologia e Saúde Coletiva (UnB), com o projeto “Zika e microcefalia: Um estudo antropológi-co sobre os impactos dos diagnósticos e prognósticos das malfor-mações fetais no cotidiano de mulheres e suas famílias em Recife/PE e Brasília/DF”, coordenado por Soraya Fleischer.A publicação em línguas estrangeiras e a presença de pesqui-sadoras estrangeiras nesses periódicos brasileiros nos mostram como o tema do VZ tem potencial e, mais importante, a neces-sidade de internacionalizar debates e intercâmbios científicos. Muitos debates embalaram as Ciências Sociais para pensar o VZ e a SCVZ, mas particularmente as políticas públicas e as rotinas
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de cuidados com as crianças ganharam centralidade. A luta das mães, as principais cuidadoras, a sua organização política em ONGs para lutar pelos direitos das crianças, a ausência dos ge-nitores e do Estado, os limites das terapias e serviços de saúde, educação e assistência foram temas importantes também. As mães de micro têm uma centralidade empírica na grande maio-ria dos artigos desses três anos resenhados. Nesse período de pesquisas, as desigualdades socioeconômicas se fizeram bastan-te presentes nos debates das Ciências Sociais sobre a epidemia, sobretudo as repercussões da relação entre saúde, raça e defici-ência. Diferentes aspectos – classe social, cidade, geração e gê-nero, por exemplo – foram considerados pelas cientistas sociais para analisar os dados. As publicações ganharam um peso e um papel de descrição, detalhamento e, também, denúncia dos pro-blemas enfrentados pelas famílias atingidas. Contudo, ainda existem muitas lacunas que precisam receber a atenção das Ciências Sociais. As pesquisas se concentram, em geral, em dados vindos do Nordeste brasileiro, mas sabemos que o Sudeste e o Centro-Oeste também tiveram muitos casos de VZ e SCVZ. A paternidade e a masculinidade face ao cuidado e à de-ficiência; a situação financeira das famílias de micro; a creche e a escola que começam a ser procuradas para essas crianças; a ciência e os cientistas envolvidos no estudo do vírus e síndrome; o papel do Estado no cuidado dessas crianças e famílias agora num desenho de austeridade neoliberal e com fascismo de direi-ta são alguns dos temas que ainda precisam ser aprofundados pelas cientistas sociais, brasileiras ou não. Serão dados impor-tantes para entendermos o fenômeno bio-político-social do VZ e certamente contribuirão para que nenhum direito ou benefício seja retirado dessas famílias.
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A EPIDEMIA DO VÍRUS ZIKA NAS CIÊNCIAS SOCIAIS NO BRASIL
TOMO. N. 38 JAN./JUN. | 2021
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Recebido em 29/03/2020Aprovado em 30/08/2020