Perdido nos espelhos




Celso Donizete Cruz

Núcleo de Letras/UFS-Itabaiana



Eu não tinha este rosto de hoje
assim calmo, assim triste , assim magro.
nem estes olhos tão vazios, nem o lábio amargo.

Eu não tinha estas mãos sem força
tão paradas e frias e mortas
eu não tinha este coração
que nem se mostra

Eu não dei por esta mudança
tão simples, tão certa , tão fácil;
– Em que espelho ficou perdida a minha face?
(Cecília Meireles, “Retrato”)

 

Advertência

Na verdade, o poema em epígrafe seria para este trabalho em princípio apenas um subterfúgio, menos que um mote e ainda menos que uma inspiração. Topei-o no Google, simplesmente, quando andava à cata de referências atualizadas sobre os contos que me propunha comentar, e o verso final me ficou ecoando, muito pela presença do espelho, é claro, mas também e sobretudo por causa de uma palavra, “perdida”. Uma similaridade mais que superficial. Assim como o eu lírico do poema, via-me, e ainda me vejo, perdido, não em um, mas entre dois espelhos. (E todos sabem, ai de mim, que a contraposição de dois espelhos leva a reflexão ao infinito...)

Muito pouco. Nada a ver. Entretanto, na hora e ainda depois, não sei, o equilíbrio porventura, a beleza, com certeza, a serenidade dolorida do poema – algo que (como se vindo de um espelho) a rigor não deve estar lá mas ao qual sou remetido a cada releitura, a cada reolhar, esse algo, não sei, uma vontade de significação, quem sabe, continuou pulsando, tentando, querendo ser uma referência possível. Entre insistências e desistências, incapaz de alcançar um maior entendimento, acabei deixando a epígrafe, por motivo fútil. Como sabia que provavelmente não chegaria a bom termo no percurso, poderia ao menos partir de um bom começo. Lógica canhestra. Mais um descaminho frustrante na impossibilidade iminente de me desincumbir de meu encargo.

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Porém, adotando a epígrafe, devo ter roubado um pouco de sua força para alinhavar umas quantas sentenças mal e mal não contraditórias. Depois, um tempo depois de haver rascunhado o texto, a epígrafe deixava de ser necessária, e o que vai dito passaria muito bem sem ela. Não fossem algumas lições adquiridas, afinal, em mais um eterno retorno ao ponto de partida. Por exemplo, o espelho de Cecília Meireles também é dado a tragar imagens, como os de Machado de Assis e Guimarães Rosa. A imagem perdida – “minha face” – é o retrato idealizado do eu, sua autoimagem introjetada, e assim, como no conto de Machado, trata-se de uma construção, não de algo que é dado. E a mesma coisa em Rosa: a imagem refletida é formada pela projeção de traços que conformam um eu precário, feito de cascas de cebola, meias realidades.

Não admira que o objeto atraia a criação literária. Como seduz os homens, e orienta sua vaidade. Alguns chegam a se aventurar do outro lado, Through the looking-glass – e ao lembrar o título de Lewis Carroll me surpreende a literalidade do étimo inglês, “vidro de olhar”. Nos três autores brasileiros – e três já são um sistema –, uma mesma perplexidade. Olham para esse vidro, e não se acham. Perdidos.

 

Preâmbulo

Tendo, pois, logo de saída, perdido a rota direta e direita, “la diritta via”, dei de ir pra trás, no artifício de questionar os fundamentos da tarefa. Ainda um adiamento. No pouco que sondei, não se discute a pertinência ou cabimento da comparação. Machado e Rosa se aproximam porque são quiçá os dois maiores escritores de nossa literatura e pronto. Integram um mesmo sistema literário, portanto estão relacionados, e antes nesse plano que no plano místico da efeméride, capaz até de sugerir a transmigração da alma do recém-falecido Joaquim Maria no recém-nascido João.

As bases da comparação, então, estão nessa proximidade sistêmica, antes de mais nada. A posição de Machado de Assis, líder inconteste nesse sistema, além de despertar a admiração funciona também como meta (às vezes maldição) dos escritores brasileiros. Nem por isso, contudo, a retomada do grão-mestre obedecerá no caso a imperativos de imitação, no sentido de paródia ou cópia, como se verá. Se há essa retomada, ela é discreta e não anunciada, salvo a homonímia dos títulos. Esta, o indício mais evidente de uma possível referenciação de um conto a outro.

Mas se é exequível a remissão do conto de Rosa ao conto de Machado, dentro de um mesmo sistema, então um novo plano de sentido emerge. Revela-se a consciência do sistema no diálogo que um texto literário quer, ainda que à sorrelfa, manter com o anterior. O conto de Rosa é, nesse sentido, como uma resposta ao conto de Machado, o que justifica a comparação. Aqui é parecido com o que acontece na MPB, quando um compositor mais recente responde com uma nova canção a uma canção do passado. E isso é entendido como homenagem, mas é ao mesmo tempo demonstração da consciência do sistema – de uma linhagem histórica a que a obra-resposta dá continuidade.1

 

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Espelhamento

Estão à vista os indícios que permitem uma referenciação, e não me deixam mentir sozinho. O mesmo título, “O espelho”; um mesmo tema, a natureza da alma; um mesmo gênero, o conto; uma mesma forma narrativa, o diálogo. Mas temos também o fato de que são contos publicados em épocas distintas, 1882 e 1962 – assim quem estabelece a relação é necessariamente o conto de Rosa, posterior.

Embora não tenha conhecimento de que algum dia o próprio João Guimarães Rosa tenha admitido a relação, conhecendo os dois contos, me parece natural supor a referência ao conto de Machado.2 É algo que Rosa faria. Condiz com suas artimanhas textuais. Contudo, a bem do rigor, é preciso admitir que a existência do conto de Rosa é ainda só a possibilidade de estabelecer essa referenciação, já que ela não é explícita. É preciso saber dos dois contos para se dar conta do parentesco, em primeiro lugar. O conhecimento dessa “coincidência” de títulos de dois dos mais célebres escritores da literatura brasileira aciona a imaginação crítica dos leitores. E a comparação segue por conta e risco desses últimos. Não é de antemão, a não ser implicitamente, afirmada pelo autor, Guimarães Rosa, que abre essa possibilidade.

O conto de Rosa não seria propriamente uma tradução ou “reescritura” do conto de Machado (uma paródia ou versão). O conto de Rosa não diz novamente, de uma outra maneira, o que diz o conto de Machado. Ambos glosam um mesmo tema, aparentemente, é certo. Mas, se o conto de Machado é de fato suposto pelo de Rosa, o que este diz deve levar em conta o que foi dito por aquele. E nesse sentido o conto de Rosa, como vimos, daria continuidade ao conto de Machado, ou seria uma resposta a este último. Essa resposta pode ser entendida em mais de um plano: no plano ficcional (ou estético), no plano da crítica e da teoria literárias (plano do sistema literário, ou ético), e ainda no plano filosófico (metafísico), se é dada à literatura a capacidade de se pronunciar, à sua maneira, sobre problemas conservados pela rigorosa disciplina filosófica.

A resposta no plano ficcional passa pela consideração da instância narradora. As verdades dos contos são a princípio crenças de seus narradores. Se o narrador-personagem em Rosa ainda é passível, com certa ingenuidade, de uma identificação direta com o autor, tal não se dá com o conto de Machado, que impõe um narrador em terceira pessoa, atrás de Jacobina, o narrador-personagem principal da história, responsável direto por uma das verdades.

Isso pode parecer mero detalhismo técnico, mas não. A construção do foco narrativo garante ao autor alguma isenção em relação ao que a obra diz. E assim é mesmo no caso de Rosa, pois o seu narrador ganha vida em um plano ficcional – “matrix” – cujas leis de espaço e tempo são burladas sem dificuldade. Acredito que Rosa se valha dessa possibilidade para estabelecer, apenas nesse plano ficcional inicialmente, um diálogo entre duas gerações distantes na linha do tempo. Mas vejamos antes os narradores de Machado, aos quais a resposta se dirige.

 

A – “O espelho” de Machado

O distanciamento guardado no conto de Machado de Assis é estratégico. O narrador em terceira pessoa não se compromete. É a princípio, inclusive, irônico, no sentido popular do termo, na descrição da reunião. Seu distanciamento é condição de seu humor, ainda que discreto. Ele estranha, por exemplo, que a discussão não eleve os ânimos: “debatiam, uma noite, várias questões de alta transcendência, sem que a disparidade dos votos trouxesse a menor alteração aos espíritos”. A dose maior de ironia vem no final do parágrafo, quando os “cavalheiros” são descritos como “investigadores de coisas metafísicas, resolvendo amigavelmente os mais árduos problemas do universo”.

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Penso que essa caracterização inicial da reunião venha a importar para o efeito crítico, também irônico, visado por esse primeiro narrador. Uma roda de “quatro ou cinco” intelectuais sóbrios (filósofos? literatos?), que discutem desapaixonadamente, em que pese a gravidade das questões que abordam. O final do século 19 brasileiro vive uma transição de modismos. Seguindo o que vai pela Europa, deve-se agora abandonar a subjetividade romântica em prol do objetivo pensamento realista. (Ó, dúvida cruel...) Só que essa transição não vem a se completar nunca, e ela pouco importa, afinal, já que o Brasil sempre fica à margem, tanto faz o resultado do debate.

Assim, a caracterização da reunião fictícia reflete a verdade de uma nossa condição, o nosso pensamento miúdo e desengajado. E desengajado porque deslocado, porque instrumento de alienação e não esclarecimento. Não condiz com a realidade, porque as idéias não mudam a realidade. A república não será a de Platão. Se a lógica não justifica a exploração, pior para a lógica. Por isso Roberto Schwarz vai dizer que aqui as idéias estão “fora de lugar”.3 São pura moda mesmo. Trocam-se como vestidos e chapéus. Que venha lá a nova justificação do real, o meu escravo pode ir pegar o livro.

O desengajamento passional pode ser resultado dessa distorção de base. O pensamento não justifica o ato, apenas confirma a relevância de quem o afirma, pouco importa o que venha a afirmar. Temos então um ligeiro retrato cômico, “astuto e cáustico”, da intelectualidade brasileira. O fino humor machadiano está presente. A tese lançada, o “esboço de uma nova teoria”, brota desse solo, como uma súmula da real posição intelectual daquele grupo. Ou ainda, talvez mais certo: a tese de Jacobina é a novidade que vem se juntar ao insosso debate metafísico padrão dos personagens intelectuais da época.

Jacobina, a quem a palavra será delegada, pelo narrador e demais personagens, ocupa um papel de destaque nesse grupo. São “quatro ou cinco” justamente porque Jacobina, embora presente à reunião, não participa da discussão. Supõe-se, a partir da informação de que Jacobina “não discutia nunca”, a regularidade dessas reuniões, e da mania já folclórica desse personagem, glosada com a alusão a um episódio cômico: instado a demonstrar sua razão, Jacobina simplesmente abdica dela. O que, note-se, não contraria o comportamento típico de seus companheiros de noitada, seu desapaixonamento sendo inclusive mais radical que o deles, o que é outro índice de destaque do personagem: se mais desapaixonado, quer dizer mais próximo dos ideais da “nova teoria”? Mais lúcido?

Sua participação no debate é excepcional, por isso merece mesmo a deferência de figurar num conto. Merece a história. Ele estabelece os termos de seu pronunciamento, e os companheiros o obedecem, sem restrições. De sua caracterização, destaca-se o ser “provinciano” e “capitalista”. Ora, uma roda em Santa Tereza, na capital federal, governada pela pachorra e casmurrice de um provinciano?! Só mesmo sendo capitalista!4 Sua posição na roda é à parte, por manter-se à margem das discussões (outro sinal da desimportância destas?), e, conforme sua vontade própria, ocupar e deixar o centro das atenções. Seguramente desfruta de respeito no grupo, nota-se, e não só pelo dinheiro, provavelmente; os companheiros não lhe acompanham a inteligência (a sério, ou apenas como estratégia). Repare-se nas intervenções desses durante a exposição de Jacobina, sempre pontuais, mínimas, expressões de uma curiosidade não reprimida, e nem sempre satisfeita, pelo narrador-personagem. (Comportam-se como agregados...) Instados a interpretar os fatos, invariavelmente dão opiniões equivocadas. Diante da força da revelação final, ficam embasbacados a ponto de nem notar a saída súbita de Jacobina.

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A atenção a esses detalhes lança outra luz sobre o que está sendo dito. A experiência de Jacobina é didática, impressiona, mas nem por isso é menos estapafúrdia. O “ca[u]so” é referido como “a mais clara demonstração acerca da matéria”, a “natureza da alma”. Algumas hipóteses são apresentadas: que existem duas almas, uma interior, outra exterior; que a alma exterior é mutável; e que perder uma delas (a exterior principalmente) é perder metade da existência, quando não toda ela. A teoria coincide com a crítica machadiana ao mundo das aparências que disfarçam a violência (em geral monetária) por trás das posições de prestígio social (“a teoria do medalhão”). Pode ser também a crítica à nossa carência identitária (ou ainda a tipificação de uma crença metafísica). Por aí se explica o conto, nas palavras de Alfredo Bosi, como “matriz de uma certeza machadiana”, a saber: “só há consistência no desempenho do papel social; aquém da cena pública a alma humana é dúbia e veleitária”.5

Aqui crê-se tocar no núcleo do ceticismo machadiano, de seu pessimismo, de sua descrença no progresso do homem... Contudo, se essa é a “certeza” de Machado, o modo como é apresentada nesse conto não faz com que a levemos muito a sério. Vê-se coerência na teoria de Jacobina. Sua experiência comprova uma verdade que condiz com a doutrina determinista, à qual aliás serve de explicação. Mas, que experiência! Uma falha dos sentidos, se não se admite contrariar “a realidade das leis físicas” (como coloca o próprio personagem). Quase uma loucura! Diante da terrível revelação, Jacobina foge. Foge de uma verdade que não quer, uma verdade que considera insana e, por pura intuição: “uma inspiração inexplicável”, “um impulso sem cálculo”,6 topa com uma verdade superior, que abraça sem hesitar. O problema, de fato, não é físico, não estava no espelho, mas dentro de si mesmo, em sua condição social precária. Vestir a farda e exibir-se para o espelho é uma forma de reafirmar sua identidade mais valiosa. Essa é base da suposição. Se Jacobina é a representação do brasileiro, o coração de sua alma interior – seu núcleo identitário – é só uma mancha difusa, que adquire vitalidade apenas quando absorvida por um papel social (preferencialmente, de prestígio).

É a partir desse ponto que é preciso diferenciar a tese de Jacobina da posição do narrador do conto. O distanciamento estabelecido por este último produz um efeito perturbador, pois exige ao mesmo tempo a adoção e o descarte de uma verdade. Se o objeto dessa verdade, que é sempre meia verdade, for o leitor, o narrador encontrou um jeito de insultá-lo com luvas de pelica. Astúcias da célebre ironia machadiana. Vamos combinar que a alma humana é fundamentalmente a alma exterior, e aí teríamos uma verdade machadiana típica. Expondo-a ao cômico, porém, o narrador do conto atenua o seu valor de verdade. E leva a recepção a um sorriso (verde-)amarelo. Aquela verdade é séria, mas é uma piada; é uma piada, mas é sério. A crítica melhor não vai optar apenas por um dos termos da equação na construção da visão machadiana da sociedade brasileira. Há mais de uma verdade no conto. A tese de Jacobina procede com a definição do brasileiro, mas é ao mesmo tempo pastiche de uma doutrina filosófica dominante à época de redação do conto. E a imagem da sociedade brasileira emerge também da situação de exposição da tese. O bucolismo geográfico compõe um cenário propício ao encantamento místico romântico, que porém a tese exposta contraria desde o princípio de sua exposição. Há aí a considerar ainda a micro-sociedade composta pelos personagens, de onde vem a verdade última: a palavra que vale é a palavra avalizada. Só que essa verdade coincide com a verdade ficcional ironizada, ou é um de seus desdobramentos possíveis. De onde a verdade ficcional deixa de ser comédia. E retorna-se ao ponto de partida.

Miram-se, no espelho de Machado, tanto o brasileiro quanto o humano ocidental, tanto o ser da metafísica quanto o próprio filósofo metafísico. Isso para não falar no “eu” psicológico, se este merecer um estatuto à parte. Desse modo a obra de Machado ecoa para além dos círculos do sistema literário brasileiro. Convida à reflexão agentes de outros sistemas aos quais também terá algo a revelar. Acredito que a mesma coisa possa ser dita a respeito do conto de Rosa.

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B – “O espelho” de Rosa

O conto de Rosa pode até ser uma resposta direta a Machado. Mas talvez o narrador missivista do primeiro esteja respondendo ao narrador-personagem do segundo. Pois a experiência do narrador de Rosa é oposta, ou inversamente proporcional, à de Jacobina. Senão vejamos:

1) Jacobina foge da visão de sua alma interior, ao passo que o narrador de Rosa a persegue.

2) Para um, “os fatos são tudo”; para o outro, “Tudo é a ponta de um mistério. Inclusive, os fatos”.

3) Um reconstrói cotidianamente, ao menos nos seus últimos dias de solidão, ao vestir a farda, sua alma exterior. O outro exercita-se tentando, com sucesso, eliminar os traços de seu “eu” exterior.

4) A dedicação e a adoção de um método, rigorosamente seguido, pelo narrador de Rosa, contrasta com a intuitiva e espontânea descoberta de Jacobina.7

Para manter esse paralelo entre as estórias, concebe-se um plano ficcional capaz de dissipar o anacronismo. Se o conto de Rosa retoma o de Machado, o faz a princípio nesse plano ficcional. A porta de passagem para esse plano, entre outras, pode ser o espelho, objeto de destaque nas duas narrativas.

Apesar de sua importância na conscientização de Jacobina, e de ser um índice seguro para a datação daação narrativa, o espelho aparece bem menos no conto de Machado. Primeiro aparece como relíquia, o bem mais precioso da casa de tia Marcolina, sinal de distinção que é transmitido ao alferes, e, como ápice da paparicação, representa a pá de cal na alma “de homem” do jovem Jacobina, ex-Joãozinho. Depois, no final do conto, retorna o espelho como a fonte da revelação da teoria da dupla alma, e ainda como objeto de conforto, que projeta a alma exterior e funciona para Jacobina como a sociedade, que dá sustentação à sua identidade mais forte.

Já no conto de Rosa, o espelho está sub judice, também é um dos temas conexos ao tema principal, a natureza da alma. Por isso sua presença é mais constante. O conto principia questionando o conhecimento que temos dos espelhos. Sabemos, afinal, o que são os espelhos, para além das leis da óptica? Sabemos do que eles são capazes?

Creio que já dê para arriscar uma hipótese sobre a estratégia criativa de Rosa nesse conto, no que diz respeito à sua relação com o conto de Machado. O narrador de Rosa investiga a experiência de Jacobina nos seus fundamentos científicos. E aqui topamos com a brincadeira, a “jogada” de Rosa. A situação em Machado, em parte uma grande piada, é levada a sério. O narrador de Rosa, como Jacobina, vive uma experiência semelhante de desidentificação, o que confirmaria em si as teorias deterministas, ou as novas teorias que entendem que o que vemos no espelho é a projeção idealizada por nós mesmos de nossa imagem. Acontece que esse narrador, de Rosa, quer assumir uma posição de neutralidade. Ele diz: “Eu, porém, era um perquiridor imparcial, neutro absolutamente”. A revelação não lhe confirma teorias, pelo contrário, é fonte de dúvidas. Ao reviver a experiência de Jacobina, e colocá-la em dúvida, o narrador de Rosa abre uma outra possibilidade de exploração do tema comum aos dois contos. Tomando a piada a sério, Rosa complexifica a relação.

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Repito: o que em Machado é tratado como delírio (olhar no espelho e não se enxergar) é uma possibilidade real em Rosa, alcançável com um treinamento específico. Rosa radicaliza a teoria jacobina para chegar no pólo oposto. Se o que somos – nossa alma, nosso eu – é uma coleção de projeções sociais – das imagens projetadas pelos outros (e o espelho é um outro também), então, além dessas projeções, nada existirá. E a experiência do narrador de Rosa comprova isso! Ele olha no espelho e não enxerga nada, nem mesmo uma mancha difusa, “sombra da sombra”, como enxergou Jacobina.

Na verdade, é a sua primeira experiência de desidentificação que o aproxima de Jacobina. Então, em lugar da mancha, o narrador de Rosa vislumbra um monstro. A partir dessa experiência, os narradores tomam rumos opostos. Jacobina abdica de imediato da dúvida, por uma certeza. O narrador de Rosa fica na dúvida, mas vem a comprovar empiricamente, embora às avessas, a intuição de Jacobina: só existe, no visível, a alma exterior; para além, nada há.

Então, novamente se comprova a teoria da supremacia da alma exterior. Se Jacobina estava certo, e a experiência do narrador de Rosa o comprovou na prática, e ainda mais com todo o rigor e neutralidade que se exige da ciência, por que o tom de dúvida do narrado? Por que a tentativa constante de contrariar o senso comum? O narrador de fato se revela um mau contador. Põe mesmo o carro na frente dos bois, “e os chifres depois dos bois”. Porque o que consta no fim de seu relato, sua experiência final, é o que justifica sua missiva (é a “chifrada”, no duplo sentido, com e sem “h”). Não iria esse narrador incomodar o seu interlocutor se não tivesse algo a acrescentar ao tema. Ou, se fosse para prestar admiração depois da comprovação empírica de uma teoria, o tom do narrado seria outro.

O narrador de Rosa, afinal, não comprova a teoria de Jacobina. Primeiro, ele recupera a intuição sob condições de controle – e daí a adoção de um método científico (além do que este se revela afim ao seu caráter). O que chamo de intuição é a revelação que se segue ao episódio de desidentificação no jogo dos espelhos. Melhor dizer que foi o acaso quem proporcionou a não visão de Jacobina e a visão monstruosa do narrador de Rosa. Esse acaso é elevado ao primeiro plano no conto de Rosa, ao passo que tem papel acessório no relato de Jacobina. E a partir desse ponto, vamos ter a construção de uma complementaridade. O narrador de Rosa vai tratar do que Jacobina não tratou. Mas isso porque, após comprovar a teoria de Jacobina, o narrador de Rosa vive outra experiência, de encontro com uma possível alma (“luzinha”) interior. Esse narrador encontra o seu verdadeiro rosto não, como Jacobina, na reconstrução de sua figura social – e essa é a novidade de seu relato, e o que dá profundidade à sua crença num sentido para a existência para além da aparência social. No plano sistêmico, a visão rosiana será tomada como a esperança de construção de um eu autêntico por trás das máscaras.

 

Reflexões finais

A comparação dos contos pode se dar simplesmente no plano ficcional, e podemos considerar a referenciação tão-só uma homenagem do grande artesão ao grande bruxo. Mas também foi notado que, ao reviver a experiência do narrador de Machado, o narrador de Rosa segue um trajeto complementar. Se é possível enxergar no “Espelho” de 1882 a crítica machadiana às teorias de seu tempo, e sua visão pessimista quanto à identidade do homem ocidental, o brasileiro em particular, não será possível ver também no conto homônimo as posições complementares de Rosa? Uma sugestão de troca do pessimismo pelo otimismo?

A crítica, como o narrador de Rosa, toma a sério a teoria exposta no conto de Machado. Transforma-a em sua crença e em sua visão de mundo aplicada à sociedade brasileira. Nessa nova edição da “teoria do medalhão” vamos assim, simplificadamente, saber que o brasileiro não tem uma “alma” interior, e que a única possibilidade de preservar alguma identidade é agarrando-se às aparências. E aparências refletidas num espelho da época de D. João (nunca fomos tão brasileiros...). Já a alegoria de Rosa, embora reconheça o vazio por trás da máscara, aponta para a possibilidade de um rosto próprio, ainda menino, a ser completado (mais uma encarnação do mito fundador? O país do futuro?).

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São alegorias demasiado simplistas, reconheço. Observem-se, porém, as instâncias mediadoras. Apartir das relações estabelecidas no plano ficcional, sob a mediação de um narrador, as verdades refletidas ambigualizam-se (se não tendem ao infinito do oxímoro, ao “nada que é tudo”, cumprindo a metáfora do espelhamento...). Diferentemente da crítica, Rosa responde a Machado na mesma moeda. Responde ao problema com um outro problema. E abre com seu interlocutor um diálogo metafísico.

A “teoria do medalhão” é a aparência cômica de uma verdade mais profunda. Aproveitando a lição de Schwarz, diria que é um modo de resolução de um descompasso cujo impasse só se soluciona na ordem do emocional ou do cômico. Esse impasse pode ser detectado em mais de um plano, do Brasil em relação à sua identidade, do ser diante de sua essência, do eu diante de sua reflexão. À medida que se penetra nesses planos, o conto adquire mais densidade.

O conto de Rosa é resposta a todos esses planos, cum grano salis. Deve haver um propósito no fato de não remeter seu conto diretamente ao de Machado. Pode ser que não quisesse que a comparação se desse apenas no plano do sistema literário. Os elementos que permitem uma aproximação no plano ficcional sustentam respostas a questões estabelecidas pela crítica literária brasileira. Mas há sempre o risco de adesão imediata e impensada à óbvia alegoria. Aí entra o grão de sal de Rosa (uma armadilha para a crítica?).

Assumindo um mesmo plano ficcional, a resposta de Rosa escapa à alegoria ao se querer metafísica. Se a cifra (“chiffre”, em francês) que estabelece a relação entre as estórias for desvendada no plano ficcional, amplifica-se o alcance da comparação. Aí é que está. Por exemplo, no conto de Rosa é através do amor que se chega à identificação de um princípio positivo de si mesmo, vindo da luz. É ridículo, mas a religiosidade depreendida do entrecho serve como caracterização de um caminho de salvação bastante condizente com o perfil do brasileiro. Contraposta à alegoria do conto de Machado, não a contradiz, acrescenta. A verdade jacobina é véspera de redenção.

Ora, o mesmo raciocínio deve valer se o que está em jogo é, além da condição do brasileiro, a condição do humano ocidental. Nesse ponto o debate chega à metafísica e tanto a falência quanto a glória da metafísica alcançam representação em um e outro conto. Um é o que o outro não é. A esse respeito, ainda, é preciso notar que os contos se estruturam a partir da forma “diálogo”, modo original de veiculação da filosofia platônica, entre outras. Visto no plano filosófico, o que é narrado funciona como demonstração prática de idéias metafísicas. Por trabalhar nos limites do verossímil, a literatura tem como pôr teorias à prova, e mesmo expor o ridículo de algumas posições.

Os dois contos possuem assim uma intenção filosófica. Ambos querem demonstrar uma teoria metafísica. O de Rosa, inclusive, esforça-se para não ser tomado como ficção. Há um deslize, quando o narrador faz uso da tradicional forma ficcional “Um dia...”, mas ele logo se corrige: “Desculpe-me, não viso a efeitos de ficcionista, inflectindo de propósito, em agudo, as situações”. O narrador de Rosa busca um tom científico, racional, não um tom confessional, ao qual tem que ceder, contudo, uma e outra vez. O deslize ficcional, por outro lado, é a revelação da condição irônica do conto. É uma obra de ficção que quer fazer crer que não é (mas isso o narrador de Rosa talvez não saiba...). Enfim, se abstrairmos de reduções ideológicas simplistas, parece que ambos os contos ganham alguma densidade filosófica – se admitirmos que é possível à literatura sustentar uma filosofia, lúdica que seja –, e nesse sentido são ambos exemplos de um outro diálogo possível, entre a literatura e a filosofia.

Chego ao final sem ir pra lado algum. Deixando as pontas desamarradas. A contraposição das histórias multiplica de fato suas possibilidades interpretativas, como as imagens se multiplicam na oposição de dois espelhos. A aproximação acaba como começou, perdida, com boas perspectivas, mas ainda incerta da estabilidade dessa “terceira margem” de onde somos convidados a mirar.



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1 Vide, por exemplo, “Deixa a menina”, de Chico Buarque, como resposta a “Sem compromisso”, de Geraldo Pereira e Nelson Trigueiro; ou “Dom de iludir”, de Caetano Veloso, respondendo a “Pra que mentir”, de Noel Rosa e Vadico. E outros mais. Aliás, falando em Noel, é célebre a polêmica que travou, também por meio da canção, com Wilson Batista, outro compositor da época, isso num momento de formação do sistema que nos possibilita hoje falar até em uma “linha evolutiva” da MPB. Ora, vem a parecer que a possibilidade de um diálogo, áspero que seja, como veio a ser o das canções de Noel e Wilson, é a prova de que já existe um sistema comum, no qual cada canção ganha um, ou mais de um, duplo sentido além de seu pretenso sentido imanente.

2 Dada a força sistêmica da obra de Machado, deve ser impossível, creio, escrever obra de mesmo título inocentemente.

3 Cf. Ao vencedor as batatas, 4. ed., São Paulo, Duas Cidades, 1992, p. 13-25. (Reeditado pela Ed. 34, de São Paulo.)

4 Pode ser que haja uma simpatia maior do narrador por Jacobina. Talvez ambos partilhem a mesma astúcia e causticidade. Mesmo que, ao fim do conto, a experiência de Jacobina possa ser apenas cômica, o primeiro narrador do conto não deixa claro se aquela tese é séria ou mero deboche. O sinal de respeito é ambíguo – dado e ao mesmo tempo subtraído. Isentando-se de julgar, aproveitando o distanciamento por ele mesmo estabelecido, esse primeiro narrador confunde o leitor, minando a seriedade do debate em favor do cômico.

5 Machado de Assis: o enigma do olhar. São Paulo: Ática, 1999, p. 102.

6 O fato de não haver “cálculo” em seu impulso é significativo, no contexto machadiano. Pois os personagens de Machado são em geral dados apenas a ações calculadas, e seu exemplar mais característico e hipertrofiado talvez seja José Dias, o agregado de Dom Casmurro. Como não há cálculo na ação de Jacobina, subentende-se um raro espontaneísmo e honestidade, e justo no momento da revelação principal, a pedra fundamental de sua tese. Nova ironia machadiana: a prova estapafúrdia é fruto de uma total sinceridade...

7 Quer dizer, para ser mais preciso, ambos os personagens vivem um momento de revelação que tem o espelho como pivô. Esse momento é fruto do acaso, e fonte das inferências teóricas. A dúvida do narrador de Rosa é “quem é o eu por detrás de mim”? Jacobina não tem dúvidas, e aposta suas fichas no alferes. É porque tem dúvidas a responder que o narrador de Rosa adota um método.

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Obs.: A paginação aqui é aproximada (em relação à versão em PDF).